sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Cineas Santos - Da inutilidade do fazer

Na semana passada, fui procurado por uma bela jornalista que me pediu uma entrevista, tendo como foco a questão editorial no Piauí. Proseamos um pouco e, para encerrar a conversa, a jovem me perguntou: Que diferença o senhor apontaria entre o panorama editorial hoje e a época em que se iniciaram suas atividades como editor? Respirei fundo, oxigenei os dois neurônios que me restam e, desencantado, respondi: Mudou muito, minha jovem, para que tudo continuasse igual. Ante o espanto da cidadã, expliquei: quando comecei a publicar os autores piauienses, em meados da década de 70, não havia livros nem leitores. Hoje, temos centenas de livros editados, e o número de leitores continua o mesmo. Como não existe literatura sem leitores, estamos exatamente na estaca zero.

Seria ótimo se fosse apenas força de expressão. Não é. Quando iniciei minha carreira (melhor seria chouto) de professor, praticamente não existiam textos de autores piauienses disponíveis na praça. Havia uma pequena antologia poética – Caminheiros da Sensibilidade – organizada por J. Miguel de Matos, e dois romances do O. G. Rego de Carvalho: Ulisses entre o amor e a morte e Somos todos inocentes, ambos editados pela Civilização Brasileira, no Rio de Janeiro. Dependendo do humor do livreiro Antônio Nobre, proprietário da DILERTEC, era possível encontrar Beira rio beira vida, de Assis Brasil. Nada além. Ásperos tempos.

Eu poderia simplesmente ter imitado meus colegas de geração, que não ensinavam literatura piauiense por “falta de material didático”. Por minha conta e risco, criei uma editora de fundo de quintal, com um nome pomposo: Editora Nossa. Com a cumplicidade do jovem poeta Paulo Machado, editei em 1976 a coletânea Ciranda, contendo textos de seis poetas piauienses: Chico Miguel de Moura, Hardi Filho, Dodó Macedo, Domingos Bezerra, João de Lima e Paulo Machado. Edição mimeografada com a capa colada com grude. 

Professor em todos os cursinhos de Teresina, não tive dificuldade para vender os livrinhos. Ao longo desses anos, editei todos os escritores piauienses de expressão, de Da Costa e Silva a Elias Paz e Silva. Ao todo, publiquei mais de 100 títulos. Raimundo Nonato Monteiro de Santana não fez menos: com a minha modesta colaboração, editou 92 livros, de Odilon Nunes a Padre Chaves. Kenard Kruel vem publicando livros há bastante tempo. Sabe o que aconteceu? Nada.
O ensino da literatura piauiense tornou-se “obrigatório” nas escolas públicas e privadas do Estado (Art. 226 – Constituição do Piauí). Letra morta. O que os estudantes leem, ou melhor, devoram no período dos vestibulares são os nefastos “resumos” das obras literárias que figuram nos programas. Há uma verdadeira indústria capitaneada por vendedores de bizus, melhor seria: mercadores de alienação.
Terminei a entrevista com uma aula de desencanto: Minha jovem, sem a minha contribuição, a literatura piauiense teria o tamanho que sempre teve. E mais não me foi perguntado.


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Edna Lopes - Amar se aprende amando*

No retorno ao trabalho reencontrei uma colega que me pediu para conversarmos um pouco sobre o trabalho que a mesma realiza com adolescentes sobre orientação afetivo-sexual. Os problemas se repetem ano a ano: meninos e meninas com os hormônios em ebulição e a comunidade escolar despreparada para lidar com isso.

Comentamos principalmente como tem sido difícil lidar com a questão. Aparentemente a modernidade parece que já deu conta disso, pois bem ou mal a mídia tem ocupado o lugar dos pais e da escola em relação à educação das relações de convívio. 

Em minha opinião de mãe, educadora e mulher, ocupado mal, pois apenas despeja sem reflexão nenhuma algumas questões ligadas ao exercício da sexualidade. A informação é fundamental, mas não determinante para que meninos e meninas compreendam e, no tempo certo, possam viver sua sexualidade de forma saudável e responsável.

Da minha experiência como Coordenadora Pedagógica lembro o quanto os professores alegavam dificuldades para trabalhar determinadas questões em sala de aula, principalmente os conflitos que ali surgiam. Lembro que, salvo exceções, lidei com professores (as) constrangidos (as), sem habilidade para abordar os assuntos e na maioria das vezes, desinformados (as), preconceituosos (as).

Além das informações básicas é preciso, principalmente, superar o preconceito para abordar questões que podem ser embaraçosas, num primeiro momento, mas absolutamente necessárias para que pais e educadores exerçam, responsavelmente, seu papel.

Um problema que tem se agravado é o da Gravidez na Adolescência embora as campanhas para orientar o uso de preservativos (e até a distribuição gratuita) sejam constantes, mas para um trabalho realmente educativo, não basta apenas orientar o uso nem fornecer o preservativo. Orientar para o exercício da sexualidade com responsabilidade exige uma consciência das consequências de todos os atos que a envolvem.

Vejamos esses dados:

* No Brasil, 28% dos Partos do SUS ocorrem em garotas entre 10 - 19 anos. Isto significa que a cada 100 bebês que nascem em nosso país, 28 são filhos de mães adolescentes.
* Evasão Escolar - 25% das meninas entre 15 e 17 anos que deixa a escola fazem isso por causa da gravidez.
* Aumento da Pobreza- A Escolaridade da mulher é um fator relevante na avaliação do índice de desenvolvimento humano de uma população. Fonte: http://www.kaplan.org.br

Talvez esses argumentos não sejam suficientes para que todas as escolas se empenhem nessa tarefa, colocando nos seus projetos pedagógicos e nos currículos, estratégias para abordar uma questão tão séria e preocupante, entretanto é dever de pais e mães e todos os (as) educadores (as) fazerem sua parte, exigindo das mesmas que esse trabalho se inicie o quanto antes, lembrando que as dimensões do Cuidar e do Educar não são restritas a Educação Infantil, mas diz respeito a toda Educação Básica.

Amar se aprende amando, diz o poeta. Viver uma sexualidade saudável e responsável também se aprende na escola e na vida, mas é preciso mais que hormônios em ebulição para exercê-la. É preciso informação, disposição, saúde, sensibilidade para se entender/conhecer e entender/conhecer o outro. É preciso sobretudo seriedade e um olhar verdadeiramente humano e sensível para o que realmente importa.

*Amar se Aprende Amando é o penúltimo livro do poeta Carlos Drummond de Andrade publicado em vida, e que traz cerca de 70 poemas.

Resumo do livro:
Há de tudo neste desconcertante e caliente "mafuá" que agora se lê sob o título de Amar se Aprende Amando, no qual se colhem de imediato duas raras lições: uma primeira, de ousada simplicidade e que se dá logo à tona de seu enunciado, onde o autor permite a audácia de reunir três verbos, cada um deles em voz distinta; e uma outra, mais funda e talvez difícil, que nos ensina essa prática (tão trivial não fosse hoje absurdamente anacrônica) cuja eficácia reside apenas na elementar e irretorquível verdade de que só se aprende mesmo fazendo. http://www.coladaweb.com


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Cineas Santos - Da arte de aborrecer estagiárias

Às vezes, tenho a impressão de que os editores de jornais adoram humilhar estagiários ou focas, como se dizia antigamente. Incumbem os infelizes das tarefas mais esdrúxulas. Deve fazer parte da pedagogia do sofrimento. Um exemplo: no último final de semana, fui procurado por uma jovem (com idade para ser minha neta) repórter que me pediu uma entrevista. Depois de todas as obviedades e sandices que venho repetindo há séculos, não sei que “novidade” poderiam arrancar de mim. Preparei-me para o de sempre. A moça, armada com um minúsculo gravador, perguntou timidamente: O que o senhor faria se acertasse ,sozinho, os números da Mega-Sena? Respondi de bate-pronto: faria todas as besteiras que venho fazendo ao longo da vida e mais algumas, bem sinistras. Desapontada, a cidadã me olhou como se dissesse: “tenha piedade”. Apelei para a filosofice: senhorita, a verdadeira vocação do ser humano é bobagem. Por sorte, somos obrigados a trabalhar, o que nos impede de passar o dia inteiro pensando e fazendo besteiras. 

Contrafeita, a repórter arriscou: Como assim? Tentei ser o mais didático possível: filha, basta ler as revistas de fofocas para perceber quantas besteiras os ricos fazem num dia. A razão é simples: como não precisam ralar para ganhar a vida, sobra-lhes tempo para o exercício da bobagem em tempo integral. Percebi que a jovem não estava satisfeita com o rumo da prosa. Parti para os exemplos: não faz muito tempo, morreu uma milionária inglesa. Sabe para quem ela deixou toda a fabulosa fortuna que acumulou? Não sabe? Para uma cadelinha poodle. Até hoje, ninguém sabe se a cachorrinha milionário gastou a grana toda com salmão ou se a distribuiu com os vira-latas de Londres. Visivelmente decepcionada, a estagiária esboçou um sorriso incrédulo. Voltei à carga: moça, você já ouviu falar de um artista plástico chamado Demien Hirst? Naturalmente, não. Eu explico: trata-se de um inglês espertalhão que faz fortuna produzindo e vendendo “esculturas” bizarras para milionários excêntricos. São caveiras cravejadas de diamantes; tubarões conservados em formol e coisas menos nobres. Veja o último golpe dele: vendeu pela bagatela de 18,6 milhões de dólares um bezerro empalhado, com cascos e chifres de ouro. Uma peça kitsch, brega mesmo, para ser mais claro. Um milionário a comprou e saiu feliz da vida. 

Pelo ar que fez, percebi que a paciência da candidata a jornalista esgotara-se. Talvez ela esperasse algo mais consequente, edificante. Uma resposta do tipo: fundaria uma instituição para cuidar de crianças carentes, ou construiria um belo museu, etc. Resolvi assoberbar de vez: anote aí, moça: se eu acertasse sozinho os números da Mega-Sena, fundaria uma igreja – Igreja Universal dos Anjos Decaídos da Primeira Hora - com sede em Miami. Abriria sucursais na Ásia, África e América Latina e, a exemplo dos espertalhões que obram milagres em cultos televisionados, triplicaria a minha fortuna enganando os desenganados, como diria o poeta Dobal. Sem se despedir, a jovem foi procurar alguém menos frívolo. Aprender dói!




sábado, 19 de fevereiro de 2011

Do Presidente da Repúblia ao Pernas-Tortas

Era uma manhã de sábado e a garotada jogava bola de gude no meio da rua. Cada um dos garotos segurava uma lata de leite em pó, onde guardava seu estoque de bolas. No final da brincadeira algumas latas sairiam mais pesadas e outras mais leves. Como sempre, os patos pagariam o pato. De repente um barulho ensurdecedor rompeu o bate-boca da molecada e um monstro de ferro sobrevoou em voo rasante, espalhando as bolas de gude no chão, deixando todos parados extáticos com o tamanho do pássaro de ferro voador. 

– É o pavão misterioso – gritou Cacique, o mais novo da turma. O apelido se devia à sua mania de se vestir feito índio. Andava apenas de cueca.
– É um teco-teco! – arremeteu Dito.
– É um “helicope” – corrigiu Carlinhos, o mais velho e o mais sabido da turma – E parece que vai descer no campo de bola... Ei, devolva minhas gudes, Dito! – Dito havia se aproveitado da distração da turma para recolher as bolas de gude espalhadas pelo vento e colocar todas em sua lata.  
– Ladrão de gude! – gritou Iridilton, irmão de Dito.

Os dois se engalfinharam em briga de moleque de rua, conforme diziam as mamães zelosas do comportamento dos filhos. Hélio, o irmão mais velho, apareceu e arrastou os dois pelas orelhas para dentro de casa. 

Todos correram para o campo de bola. Uma multidão também corria para ver a novidade. Quando finalmente as hélices do helicóptero pararam, a polícia formou um círculo ao redor. O prefeito e o delegado se aproximaram. Parecia que eles já sabiam da chegada do visitante ruidoso. A porta do helicóptero se abriu e desceu um senhor bem vestido, simpático, sorridente, rodeado de homens sisudos e de terno preto. Primeiro o homem simpático abraçou o prefeito. Depois acenou para o delegado. Chegou mais polícia e fez um cordão de isolamento. Ninguém mais poderia se aproximar do ilustre visitante. A multidão se indagava curiosa:

– Quem é ele? Ele é quem? Que avião esquisito é esse?

Um funcionário graduado da Prefeitura se aproximou do povo se dando a devida importância que o momento requeria. Falou com todos os efes e erres conforme manda o manual de funcionário graduado:

– Ele é o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco que veio a Alagoinhas pra trazer o progresso.
– E quem é esse tal de Marechal Castelo Branco? – perguntou alguém no meio da multidão.
– Tá doido de fazer uma pergunta dessa, cara?! Tá querendo ser preso como subversivo e apanhar mais que mala velha?! Este é o glorioso general presidente da república – respondeu o funcionário graduado da Prefeitura. E mais não disse, virando as costas para a massa ignara, certamente se achando o próprio sábio chinês.


Segunda-feira, na escola, os alunos que disseram ter visto o Presidente e que puderam comprovar, receberam cinco pontos em todas as matérias. 

Isso sim, é que era um presidente porreta! 

A minha prova cabal foi uma bandeirinha do Brasil que estava sendo distribuída para o povo agitar na passagem do Marechal. Dito e Iridirton ficaram em casa de castigo no sábado e não ganharam os pontos extras. 

Meses depois tivemos que decorar outro nome de presidente. Sem pontos extras nas matérias. 

Em 1971 tivemos o resultado concreto da visita do Marechal Castelo Branco naquela manhã tranquila como eram tranquilas todas as manhãs de Alagoinhas: um estádio de futebol que não devia nenhum favor aos estádios de interior do Brasil. Fora construído no mesmo campo que serviu de heliporto para o marechal-presidente e recebeu o nome de Estádio Municipal Antônio Carneiro, prefeito idealizador e executor da obra.

O Estádio Antônio Carneiro, mais conhecido como Carneirão, foi inaugurado no dia 24 de janeiro de 1971 com um jogo amistoso entre Bahia e Corinthians Paulista. Nesse mesmo ano o Atlético de Alagoinhas, clube criado em 1970, entrou para o campeonato baiano graças à intervenção do Governador Luiz Viana Filho na Federação Baiana de Futebol. 

Até então o Fluminense de Feira de Santana reinava absoluto no futebol do interior baiano e era um dos mais destacados pela imprensa esportiva. E foi justamente o Fluminense o primeiro time do interior a pisar no gramado do Carneirão em jogo amistoso contra o Atlético de Alagoinhas, que também estreava o gramado do estádio. O Atlético ganhou de 1 a 0.  Esse placar repercutiu no noticiário esportivo e despertou a fúria dos feirenses, acostumados a reinar absolutos. Com o bom desempenho do Atlético no ano de sua estreia, os ânimos entre as torcidas se acirraram e culminou numa batalha campal noutro jogo, desta vez pelo campeonato baiano de 1972, em Feira de Santana. Os jogadores e os torcedores do Atlético que foram ao Estádio Joia da Princesa, além das costelas e pernas quebradas pela torcida do Fluminense, tiveram seus carros depredados. No jogo de volta, em Alagoinhas, a torcida e o time do Fluminense foram recebidos com flores.

Mas por que escrevo sobre um fato que pouco diz respeito aos meus três leitores? É porque, na crônica abaixo, Luís Pimentel relembra o dia que Garrincha foi a Feira de Santana mendigar sobrevivência e isso aflorou as minhas lembranças da infância e adolescência. Mané Garrincha também jogou em Alagoinhas, em jogo caça-esmola, mas não na excursão do Flamengo. Foi um jogo amistoso do Atlético contra o Santos, e Garrincha vestiu a camisa do Atlético. O Santos ganhou de 2 a 0, mesmo assim os atleticanos não se sentiram derrotados, pelo contrário, ficaram maravilhados com a partida. O time paulista levou o time titular e, mesmo cambaleante, o pernas-tortas deu um show de bola. 

Depois desse jogo a camisa 7 do Atlético foi merecidamente aposentada em homenagem e respeito àquele homem que cobriu o Brasil de orgulho. 




quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Luís Pimentel - Um homem chamado Mané

Eu era menino e vendia laranja na porta do Estádio Municipal Jóia da Princesa, em Feira de Santana, quando vi um Deus bem de pertinho. Em um domingo, o Clube de Regatas Flamengo chegou por lá, em meio a uma excursão que fazia pelo Nordeste, exibindo, além da mística do manto sagrado, um mito do futebol brasileiro: Mané Garrincha encerrava a carreira em melancólicos jogos de exibição.

Ao vê-lo descer do ônibus na porta do estádio, abandonei o cesto de laranjas e me dependurei na mão do anjo das pernas tortas, que caminhou devagarinho ao meu lado até o portão de entrada dos atletas. Despediu-se de mim e de outros meninos que o cercavam com um sorriso que jamais esqueci.

Tive ali meus cinco ou seis minutos de glória.

Chamava-se Manuel Francisco dos Santos, nascido na cidade de Pau Grande, estado do Rio de Janeiro, no dia 28 de outubro de 1933. Ganhou o apelido ainda bem pequeno, da irmã mais nova, porque era miudinho e arisco como o pássaro Garrincha. Sabe-se também que, quando menino, adorava caçar passarinho. Não escapavam os coleiros, nem as rolinhas, sabiás, cardeais, canários, bem-te-vis, zabelês, juritis e, por que não?, garrinchas. Dizem que mais tarde veio a justificar o apelido dentro de campo, pela maneira engraçada com que passava “voando” pelos marcadores, que por mais que o caçassem jamais conseguiam colocá-lo na gaiola.

Começou a correr atrás de bola ainda menino, beirando os quatorze anos, no Esporte Clube Pau Grande – pertencente ao dono da fábrica de tecidos onde tentava aprender a ser tecelão. Não conseguiu, ainda bem. E atrás da bola, com suas pernas tortas, tronchas e arqueadas, uma para dentro e outra para fora, correu por muitos anos.

Atrás da bola e às vezes na frente, diante de zagueiros – e às vezes atrás – de todos os tamanhos e todas as nacionalidades, passou boa parte de sua vida. Jogou três copas do mundo, ganhando duas. Conquistou inúmeros títulos estaduais com a camisa alvinegra do Botafogo, vestiu a camisa rubro-negra do Flamengo no final da carreira, em jogos de exibição, e se perdeu no campo da vida quando a bola deixou de correr à sua frente.

Carregou até o fim dos dias a fama de reprodutor indomável. E teve 13 filhos, com três mulheres diferentes (uma delas, a famosa cantora Elza Soares). Triste, solitário, infeliz e quase sempre embriagado, viveu seus últimos anos entre consultórios médicos, clínicas de desintoxicação e até hospitais psiquiátricos. O fígado e o coração resistiram até o dia 20 de janeiro de 1983. Tinha 49 anos de idade.




terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Edna Lopes - Pétalas, Uma antologia de bolso de Cineas Santos

De Pétalas - Cineas Santos


Nos primeiros dias das férias, em Salvador, o presente chegou pelas mãos da bela piauiense Lívia, namorada do nosso sobrinho e dono da casa que nos hospedava. O dono do mimo não sabia onde “andava” os óculos e lá fui eu ajudar a procurar. Bem depois entrei no quarto e perguntei “é bom” e a resposta foi “É”. Guardei a resposta. Ela me seria útil para a escolha de companheiros de viagem em mais alguns dias.
Mala pronta, coloquei o livro na bolsa e durante os cinco dias da viagem li-o umas quatro vezes. Li, sofregamente, no vôo, ouvindo bossa nova com o fone nas alturas e as lágrimas escorrendo, para espanto e consternação dos passageiros do lado. Certamente chorar e rir, sozinha, sem um motivo aparente deve ser uma cena que causa curiosidade a qualquer pessoa. Mas li também aleatoriamente, nas filas intermináveis para o almoço ou jantar durante o congresso da CNTE e, religiosamente, a cada vez que me enfiava nas cobertas no quarto do hotel, nesse meu começo de ano, em Brasília.

Leio Cineas Santos desde a primeira postagem neste blog, onde, semanalmente, nos presenteia com um texto. Presente para quem se fez seu leitor, pois é um excelente cronista, nos emociona às lágrimas na mesma proporção que nos faz rir, com seus textos impecáveis, com seu olhar poético, bem humorado e lindamente humano, fotografando o cotidiano.
Ler Pétalas do poeta Cineas foi como tomar um gole de água pura e fresca num meio dia de calor escaldante. Pequenos grandes poemas se espraiaram aos meus olhos ávidos, sedentos por lamber o mel do amor que escorria em cada um deles, mesmo os mais tristonhos, os mais saudosos.

Perdão, amor:
Na pressa de fruir-te inteira,
Fruto mil vezes proibido
Eu não te disse:
O melhor de mim não se mostra. (Bilhete II)
(...)

Deixa que eu te habite
Antes que o galo cante
E por três vezes me negues
E, para sempre, eu te renegue. (Habitar-te)
(...) 

Faz frio na terra do nunca
E a menina pede pouco
Colo, sopa, pão...
Presa na tela
ela sempre será a mesma:
Triste, solitária, eterna
Com sua fome de infância. (Sempre)

Pétalas é um livro excepcional, daqueles que parecem ser produzidos para presentear, encantar, pois exala um raro perfume: a beleza da alma de um homem comprometido desde sempre com a palavra, seus mistérios e encantos.
Cada escrito que li de Cineas, prima pela qualidade, pela coerência e sabedoria de alguém que olha a vida com a ternura e a leveza que só a poesia produz. Vale destacar, ainda, que as Pétalas de Cineas publicadas nessa despretensiosa “antologia de bolso” vêm de outros canteiros. Estão espalhadas por aí em outros livros de sua lavra e como ele bem disse em uma de suas crônicas “... em Teresina, até as pedras sabem que não respiro bem sem a minha cotidiana ração de poesia” eu cá fico torcendo para mais e mais e sempre dessa “ração” de beleza e sensibilidade.

Cineas por ele mesmo
Um pouco sobre mim

Cineas das Chagas Santos nasceu em Campo Formoso, município de Caracol (PI), em setembro de 48. Vive em Teresina desde 65. Professor, editor e livreiro, fundou, com alguns companheiros de geração, o jornal alternativo “Chapada do Corisco” (76/77). É proprietário da Oficina da Palavra e coordena o grupo A Cara Alegre do Piauí. Publicou: Miudezas em Geral (poesia); Tinha que Acontecer (contos); ABC da Ecologia (cordel); Aldeia Grande (humor) e o Menino que Descobriu as Palavras (infantil).
http://www.portalsrn.com.br/cineas_santos28.htm

O livro:
Pétalas / Cineas Santos.Teresina: Oficina da Palavra, 2010.

Nota do blog: do Cineas Santos recebi a informação de onde onde as cobras dormem...
 
Meu irmão:
O livrinho é encontrável na TOCCATA DISCOS - Rua Angélica -1467  (cep:  64049-280) Teresina (PI). Endereço eletrõnico: toccatadiscos@yahoo.com.br. Fone (86)323-2151. O livrinho é barato que nem bolo frito em fim de feira : 12 reais. Grande abraço do Ancião






domingo, 13 de fevereiro de 2011

Atenda o chamado, irmão!


“Jesus vai voltar”
Pichadores de Cristo nos muros das cidades.

Dizem que abrir uma igreja, seja lá a que deus vá servir, é mais fácil do que abrir um botequim. Deve ser. Durante a minha viagem de férias, em janeiro, visitei mais de três dezenas de cidades, de Maceió a Santa Cruz de Cabrália, e nessas andanças vi mais igrejas do que botecos, algumas humildes, outras, verdadeiros monumentos baseados na arquitetura do Império Romano, como é o caso de certo templo a um passo de um shopping de Salvador. 

Os nomes, a maioria, incompreensíveis, talvez para facilitar na engabelação da fé dos crentes e tementes a Deus, seriam cômicos se não se tratasse de se enganar a gente humilde. Como sou um descrente em religião, fico a matutar o que vem a ser uma “Igreja a Serpente de Moisés, a que Engoliu as Outras” [RJ] ou “Igreja Evangélica Pentecostal Cuspe de Cristo” [SP]. Em Belém do Pará os pastores apelaram para a ignorância geográfica dos fiéis e tascaram o nome da igreja como “Jesus Nasceu em Belém”. Em Londrina, Paraná, o grupo GLBT não pode reclamar da perseguição urdida pelas religiões tradicionais. Foi fundada a igreja alternativa “Igreja Evangélica Florzinha de Jesus”. No mesmo caminho seguem os cariocas, com a “Igreja do Ministério Favos de Mel”. Em João Pessoa, capital da Paraíba, os pastores se superaram ao fundar a “Igreja Evangélica Assembleia dos Primogênitos”.

Conheço um cidadão, em Salvador, que ralou a vida inteira consertando fogão e geladeira e nunca conseguiu se aprumar na vida. Morava num bairro classe média baixa, andava de utilitário de segunda mão e os filhos estudavam em escola pública. Um dia resolveu fazer curso de pastor por correspondência, fundou uma igreja e um ano depois comprou apartamento de cobertura num bairro chique e passou a andar em carro importado. A última vez que o encontrei, era dono de três igrejas, vários carros do ano na garagem e ele, a mulher e os filhos andavam, cada um, com seu próprio motorista devidamente engravatado.

A igreja católica, que converteu seus fiéis a ferro e fogo, hoje também virou um balcão de negócios e por lá se vê padres negociando a fé tão descaradamente que chegou ao ponto de cobrar para colocar o nome do cristão em suas orações. Se você não sabe rezar ou tem preguiça de fazê-lo, não precisa se preocupar: mediante uma determinada quantia os padres rezam por você. Se você é cético e descrê do que digo, sintonize algumas emissoras de TV e verá os mercadores da fé em ação. Há programas que são verdadeiras máquinas de fazer dinheiro com as promessas de se realizar milagres. Só falta agora vender indulgências, porque já está faltando madeira pra se vender como “pedaço da Cruz de Caravaca”, que, por sinal, era feita de ouro, mas os incautos não sabem disso, e começa a faltar água em alguns rios onde se engarrafa a “água santa do Rio Jordão onde Cristo foi batizado”. Na Igreja do Bonfim, além das fitinhas com a medida do pé do Senhor do Bonfim, a igreja descobriu um filão de ouro: vender água benta engarrafada. 

Contudo nem tudo é pilantragem ou negociata da fé nas igrejas. Ao menos na ficção. Em Girassol, cidade em projeto, cujas operadoras de celular funcionam às mil maravilhas, tem um padre bonzinho, que cuida de muitas crianças e nunca foi acusado de pedofilia, apesar de ter um poderoso fazendeiro e o delegado como seus ferrenhos inimigos. O padre de Saramandaia era bonzinho. O de Sucupira e Asa Branca também. Porém, se depois de ler esta crônica você, leitor, se sentir angustiado, com gosto de sabão na boca e sem saber que rumo tomar, não se desespere porque certamente foram forças esotéricas que o guiaram até este blog para saber das boas novas: chegou a Igreja Desenvangélica Ingericana, a que libertará o homem dos grilhões dogmáticos e devolverá aquilo que lhe foi tirado pelas religiões: o livre arbítrio. 

Portanto, se a sua falta de fé lhe angustia ou se a fé excessiva lhe causa prejuízo, entre agora mesmo para a Igreja Desenvangélica Ingericana e sinta a plenitude cósmica em viagem transcendental ao encontro da Verdade sem a histeria coletiva dos trezentos e vinte e cinco pastores. Sua contribuição financeira será apenas um pequeno financiamento para a vinda de Cristo, pois, como é sabido de todos, Ele está voltando de ônibus intergaláctico e precisa de dinheiro para o bilhete de passagem.

Aleluia, irmão!





sábado, 12 de fevereiro de 2011

Antonio Torres - Anchieta e os índios


Conferência proferida em Paris, no Amphithéâtre Poincaré – “Carré des Sciences” –, da antiga Escola Politécnica, em 17 de novembro de 2000.


Nunca fui santo

(Anchieta e os índios: a propósito d’O auto de São Lourenço).


Comecemos com um esclarecimento: lemos o texto de José de Anchieta numa adaptação livre do escritor Walmir Ayala. Trata-se de uma publicação destinada ao circuito escolar, em edição datada de 1997. Na apresentação, o adaptador informa que O Auto de São Lourenço é composto de 1.493 versos, 867 deles em tupi, 595 em espanhol, um em guarani e 40 em português. De acordo com o parecer de Walmir Ayala, o texto em tupi é primário, em função da sua audiência: “o índio de inteligência curta e lenta”. A exígua parte em português também comunga da mesma elementariedade, pois era dirigida a brancos rudes, incultos, lançados à aventura da colonização: soldados, marujos, colonos e comerciantes. Já o texto em espanhol é cintilante, bem mais literário, por endereçar-se a uma pequena elite possivelmente presente no Brasil à época. E, naturalmente, por ser o espanhol a língua mãe de José de Anchieta.

Um exemplo da cintilação do texto em espanhol, considerado uma jóia de poesia mística, é a abertura do Primeiro Ato, na cena do martírio de São Lourenço, na tradução do já citado Ayala:

Cantam:

Por Jesus, meu Salvador,
Que morre por meus pecados,
Nestas brasas morro assado
Com fogo do seu amor.

Bom Jesus quando te vejo
Na cruz, por mim flagelado,
Eu por ti vivo queimado
Mil vezes morrer desejo.

Pois teu sangue redentor
Lavou minha culpa humana,
Arda eu pois nesta chama
Com fogo do teu amor...
(etc.)

E assim, com técnica tomada emprestada a Gil Vicente e dicção barroca, O Auto de São Lourenço foi representado pela primeira vez no terreiro da capela de São Lourenço, sobre o morro de São Lourenço, na aldeia de São Lourenço, hoje a cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro. E no dia de São Lourenço, 10 de agosto. Presumivelmente no ano de 1583.

Obra de cunho sabidamente didático, a serviço da catequese e da moralização dos costumes, O Auto de São Lourenço é um singelo poema dramático, rico de imagens. Mas é, sobretudo, uma peça de propaganda, de difusão dos dogmas da Igreja Católica, numa terra sem fé, sem rei e sem lei, e onde, na visão dos jesuítas, o diabo pintava e bordava. O demo era o índio, que levava os portugueses a caírem nas tentações de uma natureza luxuriante, do cio da terra, de uma vida selvagem sempre em festa: sol, sexo, cauim, mar e selva. Eta vida boa! Imaginemos o efeito desse excitante cenário para aqueles solitários navegantes que penaram meses e meses na travessia do Atlântico em busca de uma sombra sob as árvores das patacas, o pau-brasil. Com tanta filha de Eva a desfilar do jeito que veio ao mundo, os náufragos, aventureiros e degredados que aportaram às costas do Brasil não hesitaram em despachar o pecado de volta para o além-mar. E caíram na farra. Afinal, os franceses já não haviam descoberto que não existia pecado no lado de lá do Equador? Ah, os franceses! Eles levavam José de Anchieta ao desespero. À loucura.

Leiamos a carta que o santo homem escreveu à Corte, em Lisboa:

A vida dos franceses que estão neste Rio é já não somente apartada da Igreja Católica, mas também feita selvagem; vivem conforme aos índios, comendo, bebendo, bailando e cantando com eles; pintam-se com suas tintas pretas e vermelhas, adornando-se com penas dos pássaros, andando nus às vezes, só com uns calções, e finalmente matando contrários, segundo o rito dos mesmos índios, e tomando novos nomes como eles, de maneira que não lhes falta mais que comer carne humana, que no mais sua vida é corruptíssima.

Mas não foi só por isso que Anchieta, em O Auto de São Lourenço, demonizou a (boa) relação dos nativos com os franceses. O que estava em jogo era o interesse lusitano de ocupar e colonizar o país. Para os portugueses, a presença francesa nestas paragens tornava-se um estorvo.

A didática moral de José de Anchieta tinha, portanto, um desdobramento político. O seu desempenho nessas selvas e águas de sonho e fúria foi de agente duplo, a serviço da Igreja e da Coroa. E com muita competência, diga-se. Ele foi um missionário obstinado, incansável, que fez o melhor uso possível da comunicação para atingir os seus fins. Hoje, diríamos ter-se havido nessas terras ignotas como um comunicador imbatível. Usou o sermão, a poesia e o teatro como instrumentos de conquista de corações e mentes. Recorreu ao corpo-a-corpo em suas louváveis ações assistencialistas, facilitadas pelo seu conhecimento do tupi-guarani, chegando a escrever uma pequena gramática dessa língua, na qual poetou de forma participante, panfletária, maniqueísta. E com muita criatividade, como prova O Auto de São Lourenço.

E o que é esse seu auto?

A eterna peleja do Bem contra o Mal, santos x pecadores, anjos x demônios, canibais x cristãos, enfim, Deus e o Diabo na Terra do Sol.

O Bem – A fé cristã e/ou a moral e dogmas da Igreja Católica.

O Mal – Os costumes do Novo Mundo, incluindo-se nisso os rituais antropofágicos do velho povo que aqui já estava havia 15 ou 20 mil anos quando os europeus chegaram com sua santa fé, e dispostos a convertê-lo a ela, subjugá-lo e até mesmo eliminá-lo, em caso de disposição em contrário, pois assim estava escrito na bula Inter Coetera, assinada pelo Papa Alexandre VI, em 4 de maio de 1493, na qual outorgava aos descobridores de novas terras em todo o planeta “a salvação das almas, abatendo-se as nações bárbaras e reduzindo-as à fé católica”. Obedecida ao pé da letra pelos conquistadores espanhóis e portugueses, a bula de Alexandre VI significou, para os silvícolas das Américas, um passaporte para o inferno. O terror instalado nos territórios recém-conquistados levou o Papa Paulo III a emitir uma contraordem, em 28 de maio de 1537, quando, na sua bula Universibus Cristi fidelibus, reconheceu os índios como “homens iguais aos outros, com o direito à sua liberdade e a possuir e gozar os seus bens ainda que não estivessem convertidos”. Mas Paulo III estava longe demais dos campos de batalha. Sua mensagem não surtiu o menor efeito.

A prova disso foi a tese apresentada pelo dominicano Juan Ginés de Sepúlveda, na reunião do Concílio de Trento realizada em Valadolid, na Espanha, em 1550, defendendo a servidão natural dos selvagens e a justiça do extermínio deles. Se por um lado a crueza da tese era chocante, a ponto de dividir o mundo católico, por outro não era novidade, pois já vinha sendo aplicada em larga escala. Era a “guerra justa” contra os hereges, ou seja, os índios rebeldes à catequização. A mesma que Anchieta iria defender no Brasil. Sempre que encontrava resistência à sua missão evangelizadora, proclamava que a melhor catequese era a espada e a vara de ferro.

Soldado exemplar da Companhia de Jesus, o Exército de Deus que surgiu na linha de frente da Contra-Reforma para dar combate ao protestantismo “judaizante”, José de Anchieta fez da palavra a sua arma. Em O Auto de São Lourenço ele pôs no inferno os seus personagens indígenas, que em realidade foram guerreiros tupinambás do Rio de Janeiro, e que preferiram morrer de pé, lutando, até o último homem, a se deixar catequizar ou escravizar. A esse respeito, o auto de Anchieta não deixa de ser uma sublimação da ação pelo pensamento, ou, como nos sonhos, a realização inconsciente de um desejo: quem sabe ele teria desejado passar dos bastidores para o palco das batalhas, junto com os soldados que, efetivamente, mandaram para o inferno os rebeldes tupinambás aglutinados na Confederação dos Tamoios, da qual não sobrou um único índio para contar a história, 16 anos antes desse auto ser representado? Nesse dia, o dia do juízo final das tribos confederadas, Anchieta estava lá – por trás das barricadas.

Considerando-se os antecedentes dos personagens, pode-se até deduzir que O Auto de São Lourenço é também a representação simbólica de uma dupla vingança de José de Anchieta. Aqui ele colocou no mesmo saco, quer dizer, no mesmo inferno, os imperadores romanos algozes de São Lourenço e os líderes indígenas que não rezaram pelo catecismo dos jesuítas, numa associação metafórica entre os martírios dos cristãos nas grelhas e os rituais canibalísticos. Uns e outros mereceriam a condenação eterna, pelos seus pecados sem remissão. E que o terror imposto por Deus aos condenados viesse a servir de exemplo para uma platéia de índios escravizados e colonos broncos.

A ficha técnica do auto:

Personagens: Guaxará, rei dos diabos. Aimberê e Saravaia, criados de Guaxará. Taturama, Urubu e Jaguaruçu, companheiros dos diabos. Valeriano e Décio, imperadores romanos. São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro. São Lourenço, padroeiro da aldeia de São Lourenço. E mais: uma velha, um anjo, o Temor de Deus, o Amor de Deus, cativos e acompanhantes.

Sinopse do auto:

Após a cena do martírio de São Lourenço, Guaxará chama Aimberê e Saravaia para ajudarem a perverter a aldeia. São Lourenço a defende, são Sebastião prende os demônios. Um anjo manda-os sufocarem Décio e Valeriano. Quatro companheiros acorrem para auxiliar os demônios. Os imperadores recordam façanhas, quando Aimberê se aproxima, o calor que se desprende dele abrasa os imperadores, que suplicam a morte. O Anjo, o Temor de Deus e o Amor de Deus aconselham a caridade, contrição e confiança em são Lourenço. Faz-se o enterro do santo. Meninos índios dançam.

Quem foi cada personagem principal desta história:

São Lourenço, o mártir. Diácono da igreja de Roma pelos anos 250, quando o imperador romano passou a ver no crescimento do cristianismo uma ameaça ao seu trono, mandando fechar e confiscar todos os lugares de culto. Ao ser preso e conduzido ao martírio, o papa Sisto II encarregou Lourenço de distribuir tudo o que tinha aos pobres. Mas o imperador exigiu que ele lhe entregasse todos os tesouros da igreja, dos quais tinha ouvido falar. Lourenço, então, reuniu e apresentou-lhe toda a ralé romana, dizendo: “Eis aqui os nossos tesouros, que nunca diminuem e podem ser encontrados em toda parte”. Por causa disso, foi posto na grelha, no dia 10 de agosto de 258. Enquanto era queimado num braseiro, ainda teve ânimo de fazer uma piada para o carrasco: “Vira-me, que já estou bem assado deste lado”.

Roma dedicou-lhe 34 igrejas, uma honra maior do que as merecidas pelos seus padroeiros, São Pedro e São Paulo. São Lourenço era o padroeiro da aldeia onde o auto foi representado pela primeira vez.

São Sebastião (245 – 288). Natural da cidade de Narvonne, França, educou-se em Milão, terra natal da sua mãe, uma cristã fervorosa. Ao atingir a idade adulta, tornou-se militar, chegando a ser nomeado comandante da guarda pessoal do imperador Deocleciano. Quando descobriram que Sebastião era cristão, condenaram-no a morrer por flechadas. Os arqueiros deram-no por morto, mas seus ferimentos foram curados pela viúva de outro mártir, São Castulo. Ao saber disso, Diocleciano enfureceu-se e ordenou que Sebastião fosse surrado a pauladas até morrer. O seu dia é 20 de janeiro e o seu emblema, uma flecha, motivos que o levaram a tornar-se o padroeiro do Rio de Janeiro. Foi no dia 20 de janeiro de 1567 que os portugueses liquidaram a Confederação dos Tamoios, matando todos os confederados e apossando-se definitivamente da cidade.

Valeriano – Publius Vicinius Valerianus foi o imperador que mandou prender e martirizar São Lourenço.

Décio – Caio Méssius Quintus Valerianus Trajanus, imperador romano de 249 a 251. Foi quem desencadeou a primeira perseguição sistemática aos cristãos, em 250.

Guaxará – Como poderoso chefe indígena de Cabo Frio, participou das lutas da Confederação dos Tamoios. Em 1566, comandando 180 canoas de guerra, deu combate aos portugueses na baía de Guanabara, numa longa batalha naval. Foi assassinado pelos soldados lusitanos, a 13 de julho daquele ano.

Saravaia – Outro grande chefe, também integrante da Confederação dos Tamoios.

Aimberê – Cacique da aldeia de Uruçumirim, cujo território ia da Glória ao Flamengo, no Rio de Janeiro, foi o fundador da Confederação dos Tamoios, entre os anos de 1554 e 1557, unindo todas as tribos inimigas, de São Vicente, no litoral de São Paulo, a Cabo Frio, no litoral fluminense, na maior organização de resistência nativa que o país teve. Sua legenda de grande guerreiro só é superada pela de Cunhambebe, o maior líder indígena dos quinhentos, que foi cortejado por Villegagnon como chefe de Estado e rei do Brasil.

Na primeira grande assembléia dos indígenas confederados, realizada em Ubatuba, no litoral paulista – e que ainda se chamava Yperoig –, Aimberê propôs o nome de Cunhambebe para ser o chefe supremo da Confederação dos Tamoios e foi ovacionado estrondosamente. O grande morubixaba, que se orgulhava de ter nas veias o sangue de mais de 5 mil inimigos, a maioria portugueses, emocionou-se com a aprovação unânime de seu nome. E assumiu o comando dando o seu grito de guerra: “PERÓS!” O que significava: ferozes! E foi aí que a terra tremeu, nas fazendas e engenhos de açúcar dos escravizadores de índios, entre os quais se destacavam Brás Cubas, em Santos e São Vicente, e João Ramalho, por todo o planalto de Piratininga, até onde é hoje a cidade de São Paulo.

Com a morte de Cunhambebe, em 1557, vitimado por uma estranha epidemia levada pelos europeus, Aimberê passou a comandar a Confederação dos Tamoios. E morreu lutando, na batalha final do Rio de Janeiro, em 1567. Essa batalha, aliás, foi insuflada por José de Anchieta, que foi de São Vicente à Bahia, para convencer Mem de Sá, então o governador-geral do Brasil, a liquidar de vez com “a brava e carniceira nação, cujas queixadas ainda estão cheias do sangue dos portugueses”. E foi uma carnificina. Os soldados de Mem de Sá e de seu sobrinho Estácio enlouqueceram com a vitória e avançaram sobre a praça da guerra, cortando as cabeças dos cadáveres e enfiando-as em estacas. Essa praça era uma enorme área, onde estão hoje dois famosos bairros do Rio de Janeiro, o Flamengo e a Glória, a glória das cabeças cortadas. Morreram todos, inclusive uns 30 franceses que haviam aderido ao sistema de vida tribal, entre eles o genro de Aimberê, marido de sua filha Potira, de nome Ernesto, que o sogro chamava de papagaio louro.

José de Anchieta tinha um verdadeiro pavor de Aimberê, que descreveu como “homem alto, seco, de catadura triste e carregada, e mui cruel”.

Encerramos este episódio com um esclarecimento: tamoio nunca foi nome de tribo. Tamoio quer dizer o mais velho da terra (“tamuya”), o mais antigo do lugar. Logo, a Confederação dos Tamoios significava a Confederação dos Nativos.

O Apóstolo do Novo Mundo:

Tido e havido como Apóstolo do Novo Mundo, Santo do Brasil e fundador da literatura brasileira, José de Anchieta nasceu em São Cristóvão de la Laguna, capital de Tenerife, nas ilhas Canárias, em 19 de março de 1534. Em 1551, entrou para o Colégio dos Jesuítas em Coimbra. Por motivos de saúde, mudou-se para o Brasil em 1553. Em 25 de janeiro de 1554, ajudou o padre Manuel da Nóbrega na fundação do Colégio de São Paulo, em São Vicente.

A bem dizer, Anchieta foi o maior embaixador que Portugal teve no Brasil, por todo o século XVI. Seus dotes diplomáticos eram insuperáveis. Tinha uma coragem pessoal e uma autoconfiança surpreendentes, ainda mais levando-se em conta o seu porte físico nada privilegiado. Era capaz de adentrar territórios indígenas sublevados e convencer os chefes mais exaltados de que não era um português igual aos outros, e que não aprovava as atrocidades cometidas pelos seus patrícios. Em 1563 foi incumbido por Mem de Sá de tentar a pacificação dos tamoios, que vinham impondo sucessivas derrotas aos fazendeiros e donos de engenhos numa vasta região conflagrada. Arrastando um Manuel da Nóbrega doente e com os pés em chagas, Anchieta empreendeu uma expedição arriscada a Ubatuba onde, depois de longas conversações, acabou ficando naquela aldeia como refém, enquanto Aimberê, o chefe supremo, negociava com os administradores portugueses de São Vicente e de Piratininga as suas condições para um acordo de paz, sendo a principal delas a libertação de todos os índios em cativeiro. Anchieta, durante a lenta e dramática espera pelo desenrolar das negociações, escreveu nas areias da praia de Ubatuba o seu célebre poema à Virgem (De Beata virgini Dei matre Maria). Quando, finalmente, a paz foi conseguida e ele mandado de volta para casa, garantiu que, se dependesse dos portugueses, o acordo não seria quebrado. Mas foi, um ano depois. Por eles mesmos, os que pediram a paz.

Em 1567, tomou parte ativa na conquista definitiva do Rio de Janeiro, por Mem de Sá, tendo exercido vários cargos administrativo em São Vicente, até 1577. Foi elevado a provincial, na Bahia, em 1578. Da Bahia foi a Pernambuco, voltou a São Vicente e passou a residir no Rio de Janeiro. Indo e vindo de um lado a outro, em 1585 ficou bem doente e deixou o cargo de provincial. Voltou ao Rio em 1586.

O Apóstolo do Novo Mundo viveu 44 anos no Brasil. Morreu no dia 9 de junho de 1597, aos 63 anos, no estado do Espírito Santo, e num lugar chamado Reritiba, que hoje é a cidade de Anchieta. E entrou para a nossa História como o José do Brasil, aquele que o país inteiro espera ver canonizado, para levantar a nossa auto-estima cristã, já que nunca tivemos um santo.

Vai ver, Anchieta jamais o será. Pela simples razão de também haver cometido os seus pecados, como todos nós.
Amém.





sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Cineas Santos - Por quê?

Dileto amigo me manda um “belo poema do Drummond”, com alguns comentários adicionais. Até aí, nada de extraordinário: em Teresina, até as pedras sabem que não respiro bem sem a minha cotidiana ração de poesia. Regularmente, leio, edito e divulgo poesia em todos os veículos de que disponho. Uma das maiores tristezas que experimentei na vida foi deixar de editar, mensalmente, o Calendário Poético que, por mais de dez anos, distribuí aos “viciados” em poesia. Com o acesso à internet, passei a enviar, semanalmente, poemas para um seleto punhado de amigo. Para mim, consumir poesia é um hábito salutar. Mas voltemos ao amigo: o “belo poema” que ele me mandou era tão verdadeiro quanto uma nota de três reais. Não me contive: Amigo, agradeço-lhe o carinho da lembrança, mas o Drummond que você me mandou é paraguaio e com prazo de validade vencido.

Um tanto contrafeito, o amigo me fez a seguinte pergunta: “Meu caro mestre, o que levaria alguém a servir-se do nome de um autor conhecido para divulgar o que escreve?”. Como não sou psicólogo nem vidente, não tenho a resposta. As razões poderiam ser as mais diversas. A primeira delas: a consciência da própria desimportância e, consequentemente, a certeza de que ninguém leria as baboseiras que escreve. A segunda: arrogância travestida de humildade. Explico: o impostor acredita que o seu texto é muito bom, primoroso, essencial, mas como o leitor é “burro” e só se interessa por “medalhões”, recorre a um bonde famoso para veicular sua “preciosidade”. Prefiro ficar com algo mais simples, direto: pura e simples falta de vergonha na cara.

Ora, já disse que a internet é a casa da mãe Joana; vou um pouco além: é a cloaca da civilização. Nela, cabe tudo e mais alguma coisa. Hoje, qualquer idiota pode difundir o que bem entender, protegido pelo manto do anonimato. As vítimas desses cretinos são sempre autores famosos: Borges, Drummond, Quintana, Millôr, Veríssimo. Agora, por exemplo, circula na internet, com enorme sucesso, uma crônica atribuída a Luís Fernando Veríssimo sobre o BBB. Entre outras baboseira, o “Veríssimo” afirma: “Dizem que Roma, um dos maiores impérios que o mundo conheceu, teve o seu fim marcado pela depravação dos valores morais do seu povo, principalmente pela banalização do sexo. O BBB 11 é a pura e suprema banalização do sexo”. Imaginem o L. F. Veríssimo, sempre elegante e inteligente, convertendo-se num pregador moralista. O texto é rebarbativo, medíocre e preconceituoso. É realmente digno do BBB. Em nota elegante e discreta, o verdadeiro Veríssimo explica: “Não poderia escrever nada sobre o ‘Big Brother Brasil’, a favor ou contra, porque sou um dos três ou quatro brasileiros que nunca o acompanharam. O pouco que vi do programa, de passagem, zapeando entre canais, só me deixou perplexo: o que afinal atraía tanto as pessoas – além do voyeurismo natural da espécie – numa jaula de gente em exibição?”.

Irmãos e irmãzinhas, sem querer ser pretensioso, deixo aqui uma advertência: quem só lê na internet acabará, mais cedo ou mais tarde, caindo na tentação de escrever bobagens para atribuí-la a um notável. Não digam que não avisei.