sábado, 25 de outubro de 2008

PEQUENA CRÔNICA A AIMÊE

Aymêe não é coisa de Dona Deusinha. Quando ela veio ao mundo, a mãe disse a seu Totó para registrar “Aimée”, palavra francesa cujo significado refletia sua condição de caçula: amada. Vira esse nome no Almanaque e assim deveria ser, pois o leite estava escasseando e poria um ponto final nas estripulias do marido. Seria ela a caçula, a mais amada, a mais endeusada, a mais paparicada e querida pelas tias e ponto final. Mas seu Totó era um caboclo simples, não entendia dessas coisas de mãe, e pouca importância deu quando Maricas Coxeba grafou “Aymêe”, numa invencionice que nem Emília seria capaz de praticar no sítio de seu Lobato. Seu Totó ensaiou uma reclamação, mas Maricas Coxeba o convenceu de que com um ipisilone no meio ficava mais chique. Maricas Coxeba falando, quem haveria de contestar?
 
Dona Deusinha era amante das letras estrangeiras e isso obrigava o povo do Junco a falar Inglês, embora a contragosto, pela dificuldade natural em se lidar com letras aborígenes. Nada de Tonho, de Zé, de Mané. Muito menos Mundinha ou Zefa, tão fácil de se falar e escrever. Uma vez o jornalista Marcelo Torres escreveu sobre o culto ao estrangeirismo no arraial do Junco, porém fincou sua enxada vernacular apenas nos amigos, deixando de lado Dona Deusinha, a precursora do anglicismo e do galicismo. Talvez, por ser ele à época um menino ainda moço, ignorava as benesses de se ser um Wilton onde só existia Zé; uma Aymêe onde as mulheres atendiam por Maria.
 
Quando Dona Deusinha engravidava, havia uma expectativa sobre o nome. Ao cumprimentar o pai, a pergunta era inevitável:

– Que palavra inglesa haveremos de aprender a pronunciar dessa vez, compadre Totó?!
– Não vai ser inglesa não. Segundo Deusinha, dessa vez é francesa: Aydée.

Na precariedade educacional daqueles tempos, havia o caráter didático, o desafio ao desconhecido, o trava-língua. A professora Serafina só aprovava o aluno quando ele soletrava corretamente o nome de um, o mais difícil. Chamava o infeliz no canto e tascava:

– Soletre o nome do filho de compadre Totó! – ordenava, batendo levemente a palmatória na mão. Quando ela pegava naquele pedaço de madeira, respondesse certo ou então saísse de baixo.

– Ú-il-tê-ó-tó: Uilto! – disse o aluno, apavorado.
– Esse não... o outro!
– Ú-il-si-ó-só, Uilso!
– Tá me enrolando, seu moleque! O outro, o que mora fora!
– Aaaaahhhhhhhhhhhh! – exclamou triunfal o garoto – Tamém a sinhora num isprica. Esse é fáci: Vê-a-si-vá... agá-in -nê... gê-tê-ó-nê-ton... Uosto!



APENAS UM SIMPLES PRESENTE


Em uma de suas viagens a São Paulo, o meu primo-amigo, mais amigo do que primo, Luiz Eudes, me presenteou com três CD’s da mais fina nata do cancioneiro caipira: os imortais Tonico e Tinoco.

Ressoaram as trombetas da emoção ao ouvir essa afinadíssima dupla. “Casinha de palha / lá no ribeirão (...)” Nessa época, ou seja, no início dos anos sessenta do século passado, eu não sabia o que era um ribeirão. Lá em casa tinha um riacho. E Nininho, meu irmão mais velho, me disse:

– Ribeirão é um riacho grande, muito maior do que esse que a gente se banha todos os dias”.

Fiquei assustado em saber que existia um riacho maior do que o nosso. Não imaginava haver vida além da Ladeira Grande, onde o horizonte impunha limites à nossa visão.

Nos primórdios de minha infância fui bombardeado pelo dueto caipira em ondas de rádio captadas nas antenas da casa da roça. Os dois dominavam as ondas hertzianas do Brasil caboclo, alentando a alma do sertanejo em sua lida nas primeiras horas matinais. No virar da década sessentista, os meios de comunicação no arraial do Junco eram precaríssimos, quase inexistindo. Havia apenas um rádio valvulado, do finado Enoque, cujo funcionamento ficava à mercê de Zé Grosso, o destemido operador do motor de luz. Das 18 horas, quando era ligado o gerador, às 22, quando Zé Grosso dava o primeiro sinal de que a cidade iria mergulhar nas trevas, podíamos ouvir o som do rádio de Enoque, acalentando a nossa alma de música e de notícia das terras civilizadas. No primeiro acesso de loucura de Lindemberg, filho mais velho de Enoque, tocava no rádio a música “O que você foi / fazer no mato / Maria Chiquinha”. Ele se revoltou contra a traição de Maria Chiquinha, jogou o rádio no chão e saiu xingando todo mundo, em direção do bar de Chiquito. Aquilo estava errado, o Junco estava errado, o mundo estava errado, as mulheres (e o rádio de Enoque) não tinham conserto! No bar, mais um prejuízo: quebrou os tacos na mesa de sinuca e saiu correndo pelo meio da rua. Foi preciso mais de dez cabras fortes para dominá-lo, colocá-lo no Jeep da Prefeitura e levá-lo para tratamento médico especializado em Alagoinhas. Depois desse episódio, as noites do arraial do Junco ficaram silenciosas, até que um dia inventaram o transistor e o chamado rádio portátil. Ou de pilha.

Nilton era um rádio-técnico de muita competência na cidade de Serrinha. Foi ele o responsável pela introdução do rádio de pilha no Junco, principalmente nas roças. Rádio fabricado por ele mesmo. O ruim era o consumo excessivo de pilha, também chamada de “carga”, e nem todo mundo dispunha de capital para trocar as pilhas duas a três vezes na semana.

     Nininho, meu irmão, vendeu uma vaquinha para poder comprar um rádio de ondas médias e curtas ao técnico de Serrinha. O restante do dinheiro ele investiu em estoque de pilhas e em uma roupa nova para a festa da Padroeira. Comprou também uma brilhantina Glostora, que deixava o cabelo sempre úmido e brilhante. Forçou o penteado tipo maracanã, deixando a testa livre. Quando o cabelo fixou o penteado, a moda acabou. E Nininho nunca mais conseguiu o penteado original.

Tempos depois o meu tio Durval também comprou um rádio. ABC, a Voz de Ouro, dizia a propaganda. Ficava exposto na prateleira da sala da casa da roça e era exibido com orgulho pelo meu tio. Só ele podia mexer. Padrinho Adelino, meu avô, ganhou um de presente, trazido de Alagoinhas por um dos seus filhos, comerciante naquela cidade. Tonho de Maria de Lolô demorou, mas entrou na onda. Oleiro do meu tio Durval, pediu adiantamento de salário e comprou um, a Nilton, de Serrinha. Meu avô Lolô protestou contra o desperdício de dinheiro do seu genro. Contemporâneo de Antonio Conselheiro, ele achava que o rádio era invenção de Satanás.

Aconteceu uma coisa engraçada no pico da temperatura da febre de rádios transistorizados pelo povo da roça: um cidadão, no dia seguinte à compra, não conteve a curiosidade e partiu o rádio ao meio num só golpe de machado. Queria ver quem era o homem que cabia dentro daquela caixinha e falava com um corno, se explicou depois, envergonhado.

A rádio que mais se ouvia era a Rádio Emissora de Feira de Santana; o programa de maior audiência era o de Jota Luna, na parte da tarde, cujo prefixo musical era “Petite Fleur”, de Sidney Bechet, executada pelo delicioso sax de Chris Barber’s Jazz Band. No Ângelus, as mulheres rezavam “o terço” ao som da Ave Maria, de Gounot, tocada na Rádio Tupy de São Paulo. Infelizmente, para elas, as novelas só eram transmitidas pelas rádios de Salvador, cujas ondas médias não chegavam lá. Somente a Rádio Cultura de Feira de Santana transmitia em ondas curtas.

O meu irmão Nininho, embora nosso pai acordasse a gente muito cedo, só dormia depois das dez horas da noite, após sintonizar a Rádio Nacional de São Paulo e ouvir Tonico e Tinoco cantar. Às quatro da manhã, depois de rezar a Ladainha de Nossa Senhora, ele corria para o rádio, sintonizava a Rádio Tupy de São Paulo para ouvir... Tonico e Tinoco. De vez em quando outros apareciam para cantar, mas a tônica eram os dois irmãos. Quem viveu aquela época e não se emocionou com os sucessos “Tristeza do Jeca”, “Brasil Caboclo”, “Chico Mineiro” e “Gondoleiro do Amor”, música em arranjo de valsa sobre poema de Castro Alves.

"Teus olhos são negros, negros
Como a noite sem luar
São ardentes, são profundos
Como o negrume do mar
Sobre o amargor dos amores
Da vida boiando a flor
Moram teus olhos na fronte
Do gondoleiro do amor.”

     Retorno ao tempo presente. Apenas três minúsculos disquinhos tiveram o poder de aguçar as minhas emoções e aflorar as lembranças adormecidas na grande distância física, geográfica e temporal. Um simples presente de um amigo teve o dom de me fazer mergulhar no passado e recuperar uma história relegada à amnésia do Tempo. Isso me fez evocar os neurônios e descobrir que somos uma geração sem memória e sem história. Não preservamos nada do nosso passado e nossos descendentes terão apenas uma interrogação como elo de ligação entre eles e seus precursores. Que história nossos filhos terão para contar aos seus filhos? Que monumento ou memorial mostrarão aos seus netos? Nem escombros eles terão para soterrar suas amarguras e chorar sua dor de terem sido gerados in vitro. Sem passado, o ser humano é herdeiro apenas de uma proveta. Seria ótimo se os nossos políticos colocassem em seus planos de governo a intenção de resgatar e de preservar a nossa história. E a executassem em sua integralidade.

A História agradeceria.

Publicado no jornal “Gazeta Voz Ativa”


sexta-feira, 24 de outubro de 2008

- Vai Ter Rebu no Mangue



Ao indeferir a liminar que pedia a anulação das eleições indiretas no arraial do Junco, o juiz de Olindina jogou um caminhão de água gelada na relação incestuosa da Prefeitura com os fornecedores durante o período eleitoral, onde se escancarou acintosamente a corrupção e o apadrinhamento político.

Zé Martins deverá ter noites e noites de insônia. E pesadelos, quando conseguir abraçar Morfeu. Como vai se safar dessa? deve se indagar incessantemente. Muita gente vendeu no crediário confiando na vitória de Antonio ou que a Prefeitura fosse honrar a dívida, ainda que escusa, nos poucos meses que faltam para o término do exercício atual. Muitos também fizeram “pindura” achando que continuariam a receber da viúva sem dar um prego na barra de sabão. Outros se candidataram, se comprometeram, (ou melhor: comprometeram o dinheiro da viúva) e agora estão com a corda no pescoço. Essa liminar era a última esperança que agora morre deixando centenas de órfãos em rios de lágrimas.

A população do arraial do Junco é composta, em sua maioria, de gente decente e por isso somente os filhotinhos de marajás estão a reclamar. Ou aqueles que, de uma forma ou de outra, se locupletavam com o manequim de prefeito. Até entrar na Justiça os comissionados comem quietos entraram, pensando legitimar a ilegalidade praticada no apagar das luzes do governo Martins. Quebraram a cara. Cara de pau, diga-se de passagem. Ganhavam sem trabalhar e ainda queriam continuar mamando.

Mas a imoralidade não pára por aí. Os concursados da Prefeitura, eleitores declarados de Antonio, recebiam gratificação para fazer extra com politicagem ou ameaçar os contrários. Diziam-se os salvadores da pátria enquanto metiam a mão na cumbuca. Mas, de uma canetada só, Givaldo acabou a farra das gratificações, algumas até poderiam ser justas e merecidas, mas, estranhamente, só as tinha quem votava no candidato do prefeito. E agora o que não falta é gente chorando pelos cantos, blasfemando contra a democracia e maldizendo os eleitores do velho e sofrido arraial do Junco que votaram contra esse estado de coisa.

Não havendo mais como sangrar os cofres públicos, com certeza hoje vai ter rebu no mangue.




E Agora, José?

E agora, José? A festa acabou, seus amigos estão abandonando o barco feito ratos de porão e só vão deixar a sujeira pra você se lambuzar. Seu prazo de defesa no TCM está se expirando e com você fora da Prefeitura alguém vai ter interesse em livrar seu pescoço? Acho que não, José, porque é longa a fila daqueles que lhe abraçavam e hoje pedem guarida a Joaquim. Gente que você confiou, José, e até caiu no ridículo por causa de alguns, estão bebendo no cálice do Judas.

Tenho pena de você, José, pois acredito na sua honestidade. Um pacato cidadão simples, vindo da roça, se meteu como um besta na alcatéia servindo de Chapeuzinho Vermelho. Todas as fábulas de lobos e cordeiros, José, são poucas diante do seu drama. Confiou demais e não viu que estava sendo o boi de piranha, o inocente útil da vez, o amigo com prazo de validade. Colocaram-no como prefeito, José, porque sabiam que era fácil lhe embromar. E dominar. E você, José, tão inocente e besta, acreditou na sinceridade humana e não viu quantos Judas lhe beijavam.

Aprenda, José, que triste dos sabidos se não fossem os otários. Pessoas que acordam e dormem calculando o quanto de lucro podem tirar de uma amizade. E o seu drama está só começando, José. Outros processos virão e os verdadeiros culpados dirão em alto e bom som: "Não tenho nada com isso!" Foi assim que fizeram com Joaquim. Foi assim que fizeram com Márcio. E é assim que vão fazer com você, José. Só que Márcio e Joaquim são velhas raposas também e nunca perderam o controle da situação. Eles traziam seus auxiliares em rédea curta. Por isso se safaram, José. Joaquim, que foi acusado de ladrão pelo seu grupo, vai sair desse processo mais honesto do que o Papa. No máximo, uma multa por atraso de documento. Mas você não, José. Os ratos fizeram a festa e tentam embromar o TCM com redação "confusa", conforme o próprio Tribunal.

Você está perdido, José. Sem poder, sem amigos, sem o devido saber, futuramente virará notícia de jornal com o gosto de sangue que os jornalistas têm em denunciar os condenados por desvio de verba pública. Ficará famoso, José, embora nada honroso com a matéria.

Acredite, José. Seu inferno astral está só começando. Afora a família, ninguém mais lhe dará guarida, pois o poder é efêmero. Sabe aquela história de “rei morto, rei posto”? Pois vai ser assim com você, José. Sem cargo, sem vereança, todos lhe virarão as costas quando passar e os próprios corruptos que lhe colocaram nessa sinuca de bico serão os primeiros a lhe apontar o dedo acusatório. Foi assim que fizeram com Joaquim, José. Só que, Joaquim, foi eleito pelo povo e conservou aliados políticos. Você não. Você caiu de pára-quedas para servir aos interesses de alguns. Só isso.

Portanto, José, afora eu que, com minha alma de poeta acredito na inocência dos humildes, ninguém mais irá mover um dedo em sua defesa. Acredite, assim como dois e dois são quatro.

Boa sorte, José.
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Respondendo a Jânio Sobre o Apartheid

Jânio escreveu na comunidade “Sátiro Dias Sem Censura”, do Orkut:

“Durante o processo de colonização da África do Sul,as autoridades inglesas adotaram uma política de isolamento,socialmente conhecido pelo nome de "APARTHEID".O Apartheid previa uma série de leis que visavam impedir que os indivíduos considerados NEGROS tivessem algum tipo de contato com qualquer pessoa de tendência européia.Será que existe o Apartheid em Sátiro, de forma diferente?(STATUS SOCIAL)”

O arraial do Junco, como todo o interior brasileiro, não teve a presença do negro escravo como elemento determinante na sua povoação. Os que existiam no interior, eram escravos fujões dos senhores de engenho ou foragidos da Justiça.
Quando João da Cruz apeou na Fazenda Junco de Fora, viera mais como empregado dos de Inhambupe do que propriamente como um senhor de escravos. Depois, cooptado pela política, seu patrão abandonou o interior e assentou residência em Salvador, vendendo a preço de banana seu latifúndio, que também não lhe custara nada, por ter sido presente do Visconde da Torre, em agradecimento pela oposição que os de Inhambupe faziam ao ilustre primo Barão de Geremoabo (as terras do arraial do Junco eram sesmarias dos Garcia d’Ávila, também responsáveis pela fundação de Inhambupe – o coronel Guilherme d’Ávila, por volta da invasão holandesa).

Quando começou a povoação, a escravidão definhava e mesmo assim não havia o negro que merecesse registro como fator de miscigenação racial ou até mesmo estabelecesse um padrão de comportamento sócio-cultural que merecesse destaque no Junco primitivo. Sendo uma cidade genuinamente de pequenos agricultores ou pequenos comerciantes, todos ligados por laços consangüíneos, sem qualquer referência de lixo ou de luxo social, viviam a irmandade comum aos pioneiros até que um dia Deus disse:

– Faça-se a política!

Ioiô Cardoso e Piroca Reis, primos e cunhados, marcharam juntos empunhando a bandeira libertária do jugo de Inhambupe e essa harmonia durou até a segunda eleição, quando Piroca Reis resolveu testar sua popularidade como candidato a prefeito e até hoje o pequeno arraial do Junco vive dividido entre os santos e os pecadores. Em pleno século 21 o padre ainda dá pitacos e arma conchavos a favor ou contra, a depender dos acordos de sacristia ou de quanto pese a cestinha de óbolos durante a gestão, gerando o apartheid religioso, onde a preferência política é a questão primordial para definir quem vai queimar no fogo do Inferno ou quem vai desfrutar de um lugar no Paraíso.

Na festa de dois de fevereiro dos meus tempos havia o apartheid econômico, mais uma vez promovido pelo padre, que cercava de galhos de pindoba e coqueiro um pedaço da Praça e cobrava caro a entrada de quem quisesse participar dos leilões, quermesses e outras atrações naquele espaço chamado de “feira-chic”. Havendo dinheiro para se pagar a entrada, lá dentro a convivência era harmônica, sem entraves sociais, a não ser uma ou outra desocupada que ficava olhando a roupa das pessoas. Nesse caso não se pode dizer que havia segregação social nem racial, pois, uma vez lá dentro, todo mundo era azul.

A estrela da festa era a soprano Maria de Venâncio, que deixava todos embasbacados com a maviosidade aguda da sua voz. Sendo Maria de Venâncio uma negra e convivendo socialmente com todos durante todo o ano, além da admiração que impunha, não se pode dizer que havia segregação racial.

Apartheid é uma palavra muito forte, por se tratar de uma questão de Estado racista, talvez inadequada para expressar a intolerância nossa de cada dia. Claro que, com o rompimento da barreira arcaica, o arraial do Junco construiu sua pirâmide social com todas as mazelas de uma sociedade capitalista, principalmente a concentração de renda. E, onde há dinheiro, há a segregação social, por mais que se queira provar o contrário.



UMA (JUSTA) HOMENAGEM AOS ESQUECIDOS

Lindenberg, antes de ficar doido, era um cidadão importante e nunca faltaram elogios aos seus conhecimentos. Se bem que, naquela época, o Junco dormia à luz de candeeiro e acordava com a buzina do ônibus de Zé do Padre chamando o povo para uma viagem além da Ladeira Grande. Lindenberg era, por assim dizer, um mata-mosquito da SUCAM, em Alagoinhas, e todos os fins de semana gastava o talco da sinuca de Chiquito, contando as novidades das civilizações.

Dedê, embora ninguém desconfiasse, era um cidadão importante em outras plagas. Se bem que, naquela época, o Junco mantinha encasulado os seus ilustres cronistas, escritores, poetas e artistas. Dedê era um free lance do jornalismo, um dublê de don juan – se não o próprio. Era um bon vivant, um especialista em belas mulheres.

Humberto Vieira era famoso, muito embora, naquele tempo, o Junco não desfrutasse de antenas de tevê para ver os créditos de um junquês no jornalismo da Globo. Foi longe e morreu perto, sem que ninguém lhe rendesse uma última homenagem na capela do Campo Santo.

Jaldas foi um herói. Embora ninguém soubesse, salvou muitas vidas, levando o povo para atendimento médico em Alagoinhas e Salvador. Naquele tempo o Junco não conhecia sequer um atendente de enfermagem e os doentes se serviam da velha Rural Wyllis da Prefeitura, que era improvisada como ambulância. E Jaldas, chovesse ou fizesse sol, de dia ou de noite, nunca fez cara feia para enfrentar o cascalho em caso de necessidade. O mesmo digo de Wilson, nos tempos em que ele era motorista da prefeitura.

Lindenberg, Dedê, Humberto, Jaldas, Wilson, famosos anônimos e mais uma miríade de heróis desconhecidos, sem que o Junco de hoje nada seria sem a humilde e decisiva participação deles. Cito alguns, como os sermões do padre Edson que decidiam eleições, a voz de barítono de Maria de Venâncio que emoldurava as missas solenes, o querosene da venda de Nelo, o qual sem ele as noites não teriam luz; o “pindura” na venda de Luiz de Roxinho, que era pago de safra em safra e o pão gostoso da padaria de Josias Cardoso. Quem se lembra da picareta de Negão cavando valetas debaixo de um sol escaldante para levar água encanada às casas das boas famílias? Negão era tão útil e ao mesmo tempo tão anônimo que ninguém sabia o seu nome. Era, simplesmente, “Negão”.

Que roceiro sobreviveria sem os préstimos do fole de Ozinho e de Bidô? E Zé da Perninha, conhecido também como Zé da Butica, uma mistura charlatânica de farmacéutico, enfermeiro, parteiro e médico. Quem haverá de negá-lo?

Cultuemos, pois, nossos heróis de hoje, sem, no entanto, esquecermos dos nossos heróis de outrora. No presente caso, não vale parodiar a máxima: “Herói morto, herói posto”. O presente estará sempre fincado sobre os alicerces do passado. E ninguém poderá mudar tal ordem.
Publicado no jornal “Gazeta Voz Ativa”.



1 NOSSA CRUZ DE TODO DIA


I

De braços abertos eu te protejo

E te abraço em férreos braços...

Purifico-te em banhos de cheiro.

Cheiro de alecrim, cheiro de açucena,

E afasto o perigo com o espinho do calumbi.

Estarei sempre alerta a te proteger

Como a mãe protege o seu rebento;

E lúcido para te guiar pelos labirintos do mundo

Como se fosse a mão de Deus

Conduzindo invisível Seus filhos desgarrados.


Quando te sentires forte o suficiente

Para guiar teus próprios passos

Por este mudo errante,

Uma vez partido e decidido teu destino,

Peço-te que não radicalizes

Como o Tempo que anda sem olhar para trás

E sem esperar por ninguém...

Não tenhas mágoas do teu passado,

Pois ele será sempre o teu presente

E estará presente aonde quer que vás.


E se um dia,

A solidão diáfana te abraçar

E não mais saberes por onde seguir,

Peço-te que voltes, mesmo trôpego,

Trazendo na mala uma medida do Bonfim

E amarre-a no meu corpo para ti desnudado,

Antes de te ajoelhar e de te benzer,

Antes mesmo de depositar os teus presentes

No meu carcomido pé;

Depois me abrace, me afague,

Possua-me como se eu fosse tua última amante

Ao qual darias o teu último beijo.


Talvez assim

A minha solidão contundente

Não mais me ferirá

Como te feriu um dia

O espinho do calumbi.





2 A CIDADE


II

O Junco descansa placidamente

No seu leito profundo, secular.

Os fantasmas passeiam calmamente

Pelo vazio das ruas dormentes.


A igreja repica os sinos

Em sons invisíveis e inaudíveis

Que só os fantasmas ousam escutar.


Fantasmas da miséria,

Fantasmas da maldição,

Fantasmas duma cidade fantasma

Que acalentam os sonhos

E anseios de quem nasceu insone.


O padre, indiferente, prega a missa

Em tristes orações de funerais...

Orações e rezas de quem partiu

Para não mais voltar.


E os fantasmas, uníssonos,

Entoam o réquiem.




3 OS FANTASMAS DA PRAÇA


III

Uma praça,

Uma rua...

Pessoas são como cães que vagam

Perdidos na solidão do existir.


O canto do acauã,

O estridente assobio da cigarra...

Formigas trabalhando de sol-a-sol

À espera do inverno que tarda.


Postes desafiam o infinito

Iluminando além da praça

Despovoada de gente

E de calor humano.


Inumanas são as árvores

Sombreando o cálido chão

E acalentando os fantasmas.




4 PAU-DE-ARARA E ARARA NO PAU


IV

Em cima de borrachas infladas

E de tábuas duras quanto a própria sorte,

Reina o sonho e a esperança

Em cálidos rostos tracejados pela dor

De homens que vivem sem norte

Cujo destino se chama Sul.


Pau-de-arara,

Paus-de-araras!

Sua cama, sua vida,

Sua alma enraizada

No cheiro da caatinga,

No ronco do motor!


A minha sorte maior

Foi ter nascido poeta

No ápice da guerra

Do homem com a Natureza.

Só assim

Poderei condecorar

Os heróis anônimos nacionais

Que partiram do seu povo

Desfraldando a bandeira da necessidade

E que perderam sua identidade

Nas rodas do caminhão.


Mas quem devolverá

A vergonha dessa gente

Que partiu do seu povo

Para se exilar no seu próprio país?







5 O MERCADO PERSA


V

Aqui não se vende esperança,

Nem afago, nem aconchego;

Vende-se camisa de casimira

Para se ir à missa aos domingos

Ou pano para tecer mortalhas

Dos que sucumbem ao peso da vida.

Vende-se sandálias macias

Para não machucar o chão

No pisar bruto de pés calejados

Da labuta abrasadora.


Sandálias de pescador,

Casa de mercador...

Dentro, tem de tudo um pouco:

Mel de abelha de urucu,

Rosário de ouricuri,

Mangaba do tabuleiro

E fruta de mandacaru.


Tem também a fome

Dos que se encostam nas paredes

A escutar amargurados

O arrastar pachorrento do tempo

Que vive sem pressa de chegar

E chega sem pressa de passar,

Sem pressa de mudar o destino

Ou a fome de quem já não a sente.






6 MORTE E VIDA SEVERINA


VI

A morte aqui não vinga

Como não vinga a plantação.

Aqui as pessoas nascem

Segurando a alça do caixão.

As lágrimas já não descem

De pétreos olhos humanos,

Pois o cotidiano da morte

Está presente em todos os cantos

E em certos lugares se tornou

Na última esperança que morre.


Mas quem morreu

Sem ter vivido?


Quem jamais ousaria olvidar

Da sorte nefasta do infeliz sertanejo:

Curtido do sol, mergulhado em prantos de amarguras,

Secando no tempo suas mágoas e desventuras...

Enterrando seus mortos no silêncio da dor

E rezando calado para que a morte não tarde.





7 O CAMINHO SEM VOLTA


VII

Mais duro que o pétreo chão,

Mais fatigante que a inclemência solar,

É a dureza dos corações

Na cadência fúnebre da marcha forçada.


Quem devolverá

A vergonha dessa gente

Secadas pelo sol

E o terror inclemente

De enterrar seus mortos

Fazendo mutirão?


E de tanto versejar

Catástrofe e horror

A sua alma sofrida

De miséria calejou...


E o azar,

Mesmo chegando sem dó,

Sempre será

A sua sorte maior.