domingo, 26 de setembro de 2010

Das Inconveniências da Fama - Cineas Santos

Adoniram Barbosa, cujo centenário de nascimento se comemora este ano, era uma figura singular: sendo um dos maiores compositores da MPB, comportava-se como um cidadão comum. Meio triste, um tantinho irônico, percorria os bairros de sua predileção- Brás e Bexiga - com seu indefectível chapéu de feltro, bigodinho cafona, gravatinha borboleta e paletó de cor inescrutável. Gostava de fumar, beber e prosear com gente do povo. Foi, seguramente, o maior cronista musical de São Paulo. O sambista que deu voz aos “despossuídos”, inclusive, aos vagabundos.

Conta-se que, certa vez, a Prefeitura de São Paulo resolveu homenageá-lo por um pretexto qualquer. Armou-se um belo palco, convidaram-se intérpretes famosos, autoridades, imprensa e picaretas em geral. Meio deslocado, Adoniram recebia cumprimentos e empurrões. Lá pelas tantas, o homenageado já estava no fundo do palco. De repente, passa por ele o secretário de cultura do município. Sem levantar a voz rouca, o compositor perguntou: “Ô meu, não dá pra transformar isso tudo em...” e esfregou o indicador no polegar. O secretário sorriu amarelo, deu um tapinha nas costas do sambista e misturou-se aos notáveis. Sem ter o que fazer naquele palco estrelado, o autor de Saudosa Maloca desceu, procurou o botequim mais próximo e foi tomar sua cerveja e pitar um cigarrinho sossegado. Na hora de pagar a conta, comentou, irônico: “Tudo isso não me rendeu uma birita”.

Por que me lembrei disso? Bem, na semana passada, fui procurado por uma cidadã jovial, elegante, loquaz. Depois dos elogios de praxe, o pedido: “Professor, o senhor poderia me indicar um bom professor de português? Com essas novas regras, está todo mundo confuso. Queremos oferecer um curso básico de português aos nossos funcionários”. A cidadã é diretora de uma instituição. Provoquei-a com a pergunta: Pode ser velho? . A moça sorriu: “Claro, professor”. Fechei o diálogo: Estou à mão. Contrate-me e começaremos amanhã mesmo. A jovem senhora não escondeu o espanto: “O senhor?! Impossível: o senhor é famoso e não podemos pagar-lhe”.

Sem querer comparar-me a Adoniram: ele era um gênio; eu, um simples come-giz, repito, com outras palavras, o que ele afirmou: a minha ‘fama’ não me rende um mísero contrato temporário de trabalho. Curiosamente, sou solicitado a cada instante para proferir palestras, escrever prefácios, e “abrilhantar” festa de formatura, de batizado de cachorro, de casamento de boneca, de enterro de anão... De graça, é claro!

Minhas irmãs, meu irmãos: espalhem aos quatros ventos que sou apenas um professor; que não quero cargo, homenagens, louvações. Quero apenas que me contratem para ministrar aulas. É certo que não sei muito, mas como já errei o bastante, posso evitar que meus alunos cometam os mesmos erros que cometi. Posso ensinar-lhes, por exemplo, distinguir fama de brilhareco.


sábado, 25 de setembro de 2010

Pra não dizer que não falei de eleições - Edna Lopes


De STF



Sou do tipo que vê o guia eleitoral embora não decida meu voto por ele. Vejo porque me ajuda a confirmar EM QUEM NÃO VOTARIA JAMAIS.Mas quando vejo meu filho de 13 anos assistindo interessado, curioso, aprendendo a analisar os “discursos”, questionando posicionamentos, vejo que tem a sua utilidade.

Debates na TV e no rádio

Francamente, quando termina fico com raiva de mim mesma porque sabotei minhas horas de sono ouvindo troca de insultos. Lamento que desperdicem um tempo precioso que seria para divulgar minimamente programas de governo, aos menos nas áreas mais cruciais para o desenvolvimento de um país, de um estado: Saúde, educação, segurança, abastecimento, cultura...

Lixo eletrônico

Certamente que nenhum contato meu, amigo/a, colega de trabalho, familiares, pessoas que me conhecem apenas pelo que escrevo ou que de algum modo mantêm contato comigo recebeu ou receberá nenhuma mensagem desrespeitosa que deprecie com piada, com insultos e ofensas QUEM QUER QUE SEJA! Lamento quando abro emails de pessoas que sei que são sérias, responsáveis, repassando textos eivados de intolerância, de preconceito e de maldade. Fico imaginando se a energia e o tempo gastos com esse tipo de coisa não poderiam ser canalizados para algo realmente construtivo. Ah, concordo com você: sou uma chata!Respeito quem tem posicionamento contrário ao meu mas, não sou obrigada a gostar de baixaria, venha de onde vier.

Senso crítico

Posso parecer simplória, ingênua ou até equivocada em questões que não são do meu interesse, mas não sou alienada nem “Maria vai com as outras”. Não sou filiada a nenhum partido, mas respeito muito quem o é por convicção ideológica. Minha militância é pela vida.Tenho posicionamento, opinião e exercerei meu direito de eleitora coerente com o que penso e o que faço.Não voto em branco, não voto nulo, faço minhas escolhas consciente e meu voto não é moeda de troca. Está tudo muito bom? NÃO! Está tudo muito bem? Também NÃO! Mas não sou do tipo que acha que “pior não fica”. Fica sim e não será com a minha aquiescência e conivencia. Concluo minhas simplórias opiniões com um fragmento do poema Aos que hesitam, de Bertolt Brecht.

“Daquilo que dissemos, o que agora é falso?
Tudo ou alguma coisa?
Com quem contamos ainda? Somos o que restou,
Lançados fora
Da corrente viva?Ficaremos para trás
Por ninguém compreendidos e a ninguém compreendendo?
Precisamos ter sorte?
Isto você pergunta. Não espere
Nenhuma resposta senão a sua.”

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Antonio Torres: setenta anos de estrada

O mês de setembro, na Bahia, é tempo de se homenagear os Ibejis, representados na religião católica pelos gêmeos São Cosme e São Damião. Assim, católicos e iorubaianos se unem (e se reúnem) à mesma mesa de caruru, que deve ser acompanhado de vatapá, arroz branco, xinxim de galinha, feijão fradinho, pipoca, rapadura e rolete de cana. E muita cerveja e foguetório.

O mês de setembro, nas Alagoas, começou com um visitante ilustre que veio participar da primeira festa literária da cidade histórica de Marechal Deodoro, primeira capital das Alagoas, quando ainda tinha o nome de Vila de Santa Madalena da Lagoa do Sul: o escritor junquês Antonio Torres. Chegou aqui na tarde de sexta-feira, participou da Flimar no sábado à tarde, e, no domingo, cedo da manhã, pegamos estrada rumo à terra do Senhor do Bonfim.

Na Bahia, quem nasce em setembro comemora o aniversário à base do azeite de dendê, mas Antonio Torres não teve tempo de parar sequer numa birosca e abocanhar o pirão suculento duma moqueca apimentada, tantas foram as homenagens recebidas ao longo do caminho. Também, eu dirigindo e ele abstêmio, ficava difícil sentir o gosto duma loira gelada.

Chegado a tempo do almoço na casa do mano Raimundo, em Alagoinhas, depois de uns dedos de prosa, visitamos alguns parentes e amigos. Poucos. Os amigos dele, a maioria, morreu; os meus, fizeram como eu: debandaram da cidade. Na segunda-feira, véspera do feriado de sete de setembro, o carro não resistiu à buraqueira e os quebra-molas da estrada e “morri” na troca dos amortecedores e mais a ribombeta da parafuseta da direção. O jeito foi apelar para a solidariedade de Raimundo, que nos levou até o arraial do Junco em seu carro, depois de deixar meu velho fusquinha na concessionária da Fiat.

Queria chegar ao Junco em alto estilo, soltando fogos na Ladeira Grande, mas, na pressa, deixei os rojões na mala do carro. O jeito foi chegar discreto, como uma pessoa comum, sem alarde nem anunciação. Fomos direto para a Rádio Felicidade FM, onde estava agendada uma entrevista com o grande apresentador e campeão de audiência Arizio Torres.

Era dia de feira, muito vai-e-vem das pessoas e muitos bêbados nos botecos. Dia de segunda-feira é o único dia que vale a pena se ir ao Junco. Nos demais, é só solidão e suicídio. Alguns, insólitos, como o de sêo Bronzino que saiu de casa batendo a porta, desgostoso da vida, decidido a amarrar uma pedra no pescoço e se atirar no açude, depois de um pega pra capar com a mulher. Ao molhar a mão pra se benzer antes de cair n’água, gritou apavorado: “Vixe, Maria, mãe do Céu! Acabei de tomar café quente e ia me molhar nessa água fria!” E sêo Bronzino morreu de velhice, trinta anos depois.

Após a entrevista na Rádio Felicidade FM, procurei um balcão para molhar a garganta e jogar conversa fora com os da terra. Parei no bar de Luiz de Rouxinho, onde os pinguços da roça marcam presença. Raimundo e Tote foram forrar o estômago na casa de Nininho, onde Rita e João, outros irmãos, os esperavam. Já Nininho fez o sacrifício de me acompanhar na rodada etílica.

À tarde, Antonio Torres falou para alunos e professores no Grupo Escolar Prof. Edgard Santos, colégio onde levei muitos bolos de palmatória da Professora Serafina. Mas aprendi a ler, principalmente, escrever. A teoria da citada professora dizia o seguinte: ao bater na palma da mão, a gente gritava. Gritando, ativava a circulação. Ativando a circulação, irrigava o cérebro e assim a gente aprendia mais facilmente. Antonio Torres também estudou lá, com esta mesma professora, só que ele era cdf (lê-se: “cedêéfe) e, em vez de lapada no couro, recitava Castro Alves e Olavo Bilac.

A palestra foi mediada pela professora e poetisa Cristiana Alves, mestranda da Uneb, em Alagoinhas. Inhambupe mandou um caminhão de representantes, talvez em penitência de arrependimento pelas pedradas que recebíamos quando passávamos por lá, pongados em paus-de-arara. Foram tantas, que o Governo Federal teve que intervir, construindo um desvio da BR-110, retirando a passagem obrigatória por dentro da cidade.

À noite, muito fria por sinal, o Sr. Secretário das Finanças, Dr. Luiz Eudes, atuante nas Artes e nas Letras, promoveu um jantar em seu sítio, onde compareceram o prefeito, alguns vereadores e o presidente da Câmara, que, por um acaso, é o sogro do anfitrião. Também havia muitas loiras. Geladas, oxigenadas e naturais. Divinas e belas, “parecia que eu estava em Ipanema”, disse o escritor ao repórter do jornal A Tarde, dois dias depois, em entrevista na UEFS. Ipanema ou não, só sobrou pra nós a loira gelada servida em copo de cristal.

O escritor recebeu placa da Câmara de Vereadores, placa oferecida pelo prefeito e sua esposa, e placa da Prefeitura, em agradecimento do povo da terra ao seu filho mais ilustre. O Sr. Secretário da Educação fez um discurso emocionante, o prefeito, idem, e a cidade dormiu em berço esplêndido, sonhando com um porvir risonho. Mal o sol raiou, Luiz Eudes nos levou de volta a Alagoinhas, pois Raimundo precisou retornar no mesmo dia para pegar meu carro na oficina.

Quando chegamos na terra da laranja, era sete de setembro, dia de festa cívica na cidade. A população para nas calçadas das ruas centrais para assistir ao desfile infanto-juvenil das escolas. E do Exército e PM. E voluntários da pátria, LBV, Rotary e Clube dos Bêbados e Ligeiramente Bêbados. O último desfile que “não” assisti, foi aos dezenove anos, quando desfilei garbosamente na farda verde-oliva.
Disseram-me, antes de pôr os pés na rua para ver a banda passar, que a festa continuava brilhante tal qual nos velhos tempos; disseram-me, ao voltar desapontado, que foi o pior desfile de todos os tempos.

À tarde, carro aparentemente novo, pegamos estrada para Feira de Santana, onde o escritor passou dois dias sendo homenageado pelo povo de lá, via Universidade Estadual de Feira de Santana, a UEFS. Na garupa, Cristiana Alves, que falaria ao povo de Feira sobre os autores da sua terra e, ao voltar, daria testemunho de como o Junco é popular além da Ladeira Grande.

Mas aí já é uma outra história.



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Atendendo a inúmeros pedidos do povo do arraial do Junco, posto aqui, na íntegra, a entrevista de Antonio Torres À Arizio Torres, que foi ao ar pelas antenas da Rádio Felicidade FM, no dia 06 de setembro de 2010. Você, caro leitor deste blog, que não é do arraial do Junco, mas gosta do referido escritor, conheça mais sobre a vida deste que saiu de uma cidade que não constava no mapa do Brasil para entrar com glamour no mapa do mundo.


















Antonio Torres é homenageado no Junco.

Durante jantar na casa de Luiz Eudes, o escritor Antonio Torres recebeu homenagem da Câmara de Vereadores e da Prefeitura Municipal de Sátiro Dias, o velho arraial do Junco. O prefeito Joaquim Neto e sua esposa Vaitsa também lhe prestaram homenagem.




Antonio Torres na Roda de Prosa “O trabalho pedagógico com o livro e a leitura”, na Flimar, promovida pelas professoras Edna Lopes e Cláudia Pimentel.




Introdução da oficina de Antonio Torres na I Feira Literária de Marechal Deodoro.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Crônica de uma cidade - Maria Olímpia Melo

De Colagens



O Jornal O Globo não é vendido em Lavras. Uma inacreditável história de dívidas e birra. As dívidas ficam por conta do representante do jornal em Lavras, que não pagou o que devia e ainda deu no pé. A birra fica por conta do jornal que considerou a dívida como sendo da cidade e não do indivíduo. E bloqueou a venda do jornal enquanto a dívida não for paga. Como o negócio não é assim tão interessante ninguém também se interessa por pagar essa dívida. E como nem assinatura pode ser feita, praticamente ninguém em Lavras lê o jornal.

Eu havia lido a notícia pela net. Eu já sabia da história. Todas as pessoas que vivem ou viveram nas cercanias de Andrelândia sabem dessa história. Os detalhes podem ser diferentes, mas a essência é a mesma. E eu vivi em Arantina, nas cercanias de Andrelândia e estudei lá por dois anos e meio, no colégio das freiras.

Minha irmã trouxe para minha mãe ler. Minha mãe é desse tempo e conhece melhor a história do que eu. Foi publicada na revista O Globo de 15 de agosto passado.

Antes de entrar no assunto, uma curiosidade: Andrelândia é a única cidade do mundo onde a família se orgulha de ter um filho veado. Porque a família é toda constituída de veados. Homens e mulheres e crianças, todos são veados.

A primeira vez que ouvi falar disso eu havia acabado de chegar no colégio e me preparava para fazer os exames finais do quarto ano primário. Em Arantina não tínhamos o quarto ano, só até o terceiro em classe multisseriada. Era a primeira vez que eu saía para passear pelas ruas da cidade, muito bem cuidada por sinal. Mas, em uma das ruas por onde passamos, rua calçada, próxima a Matriz, vi que em frente de uma casa não havia calçamento, so um retângulo de terra. Perguntei: por que na frente dessa casa não existe calçamento? Não posso garantir qual foi a resposta exata que ouvi, mas foi uma ou outra. É que essa casa pertence a um veado. Ou a um caranguejo. Isso realmente eu não me lembro. Mas garanto que foi uma ou outra. E tive aí minha primeira lição sobre a política em Andrelândia. Porque ainda hoje, nessa simpática cidadezinha, vigora o bipartidarismo: ou você é veado ou é caranguejo. Os partidos oficiais não existem, ou melhor, existem, mas são subjugados pelos outros.

Entre tapas e beijos é a chamada para a reportagem de capa que mostra a fotografia de um casal – o primeiro a ter autorização para um casamento misto. Um caranguejo macho se unia a uma veadinha. O ano, 1932. Viveram juntos por 75 anos e multiplicaram os veados pela cidade. Porque sim, foi o lado dela que assumiu o poder. Mas isso foi um acontecimento raríssimo, uma aberração. A segregação continuou por décadas.E lá aquela história ainda bem comum em nossas cidades, a história do eu faço você desfaz, ou eu fiz e você desmanchou era levada aos extremos. Outro fato interessante: hoje em dia casamentos mistos são comuns. É possível a um veado amar um caranguejo. Mas se amar é possível, votar, nunca.

A reportagem é cheia de detalhes interessantes . Detalhes que eu desconhecia. Por exemplo, hoje os veados são adeptos do PMDB e os caranguejos, acostumados a pertencerem a fauna, são tucanos.

É claro, não vou copiar nem repetir aqui as histórias dentro dessa história que o jornal conta.São frutos de pesquisa, de um trabalho jornalístico muito bom feito pelo repórter Renato Grandelle. Mas ele deu uma informaçãozinha com a qual me deliciei – é sobre o Botafogo ser o time de futebol mais popular da região. Eu não sabia que isso atingia Andrelândia mas em Arantina eu sei que é. Eu venho de uma família de arantinenses botafoguenses e mesmo os que hoje se transferiram para outros times, principalmente o Cruzeiro, continuam a dizer que são botafoguenses de família.


Nota do blog: No arraial do Junco a briga santa é entre caranguejos e tranca-ruas. Os veados foram mortos durante a povoação.




segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Seminário Antonio Torres: Luís Pimentel é homenageado

O escritor Antonio Torres começou a segunda parte de sua oficina, na Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia, homenageando um poeta e escritor feirense que dispensa apresentação por parte deste escriba: Luís Pimentel. A crônica, lida por Roberto Seidel e Roberval Pereyr, encontra-se publicada neste blog. 





domingo, 19 de setembro de 2010

À sombra do imperador - Cineas Santos

De Ipês no Centro de Teresina


A exemplo das crianças que, em dezembro, tentam vãmente encurtar os dias para apressar a chegada do Natal, mal se inicia agosto e já começo a espichar os olhos pela vastidão da Chapada à procura dos esplendentes ipês amarelos. Não seria exagero afirmar que uma das razões que me fizeram sentar praça em Teresina foi justamente os ipês; a outra,as mulheres... Com exceção dos recém-plantados (transplantados) pela Prefeitura de Teresina, sei a localização de cada um deles. Vou um pouco além: lembro-me até de alguns que nem existem mais. Para citar apenas um exemplo, ainda sinto saudades de um ipê frondoso no cruzamento das avenidas Pernambuco com 1º de Maio, no bairro Primavera. Cortaram-no para construir um conjunto habitacional pavoroso que, ironicamente, foi batizado com o nome de “Condomínio Ipê” como se o rótulo pudesse substituir a árvore.

Certa feita, depois de uma palestra para estudantes de uma escola pública, na periferia da cidade, um dos moleques me perguntou: “O que posso fazer para melhorar minha cidade?”. Respondi de batepronto: Plante um ipê, meu filho. Hoje, daria a mesma resposta, com mais ênfase. Se, em vez de fícus, algodoeiro, acácia, neem e outras plantas exóticas, cada teresinense plantasse um ipê, Teresina, nesta época do ano, seria a cidade mais bela do mundo, a custo zero!
Mas há, entre os ipês que iluminam a cidade, um que, por sua localização e generosidade, merece referência (leia-se reverência) especial. Trata-se do Imperador da Chapada, título por mim conferido ao ipê plantado pelo prof. Carlos Pires Rebelo, de saudosa memória, no cruzamento das ruas Coelho Rodrigues com 1º de Maio, no centro de Teresina. Árvore relativamente nova – tem menos de 40 anos de idade, parece que sempre esteve ali, oferecendo beleza aos olhos dos transeuntes. Já a fotografei dezenas de vezes. Como quem presta reverência à própria Natureza. Todos os anos, sento-me à sua sombra para ser acariciado pelas flores que caem.

Numa dessas ocasiões, testemunhei um incidente que me deixou profundamente triste. Cumpria meu ritual, quando uma manada de estudantes passou pelo local. Eram rapazes e moças, alegres e ruidosos. Trotando como búfalos, passaram pelo tapete de ouro que cobria a calçada com selvagem indiferença. Nenhuma das meninas agachou-se para pegar uma flor e enfeitar o cabelo. Desencantado, escrevi uma crônica denominada Os Novos Bárbaros. Em contrapartida, domingo passado, prestava minha reverência ao Imperador, quando presenciei uma cena que me encheu de alegria e esperança. Uma jovem mãe chegou com sua filha, uns três anos de idade, sentou-a no tapete amarelo e passou a fotografá-la. Compenetrada, a menininha fazia poses engraçadas. Para não as perturbar, retirei-me silenciosamente. Não tenho dúvida: tendo a sensibilidade adubada com generosas porções de beleza, aquela criança poderá crescer mais atenta ao que a vida nos oferece graciosamente. Assim seja.



sábado, 18 de setembro de 2010

Seminário Antonio Torres - Música, Maestro!

Eram apenas quatro membros, mas valeu pela orquestra inteira. A Orquestra do Centro Universitário de Cultura e Arte - CUCA - da Universidade Estadual de Feira de Santana, rendeu homenagem ao escritor Antonio Torres nos seus setenta aninhos. Tive que cortar um pouco o final de duas músicas porque a apresentação extrapolou o tempo permitido pelo Youtube.


70 anos de Antonio Torres




Foram muitas as homenagens nesse mês de setembro ao escritor Antonio Torres. Antes de seguirmos para Feira de Santana, fizemos uma parada no arraial do Junco, onde o mesmo reviu alguns parentes, deu entrevista na rádio da cidade, falou pra alunos e professores, visitou a Biblioteca Antonio Torres e, à noite, foi homenageado pelo prefeito e Câmara de Vereadores durante um jantar na casa de Luiz Eudes.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Ai, Que vida!

Uma homenagem de Edna Lopes ao cinema piauiense, terra do nosso querido Cineas Santos





Quem, mesmo que acidentalmente, viu alguma cena de novela ou filme retratando o nordeste, protagonizada por atores do eixo Rio/São Paulo e acha que o nosso jeito de ser e nosso sotaque é assim, permita-me dizer o quanto está enganado. Os atores e atrizes fazem personagens caricatos, quase sempre ridicularizando os tipos, os falares do povo, em sua maioria desrespeitosos com nossa cultura e nossa gente.
Quem acompanha o desenrolar de uma campanha eleitoral numa cidade pequena, certamente que já presenciou cenas do tipo que aparecem nesse filme bem humorado, mas muito sério no trato respeitoso com a alma do povo nordestino. São tipos do nosso convívio, cenas e locação familiares, com atores e atrizes locais, o que garante a veracidade do sotaque e o jeitinho de ser tão peculiar do povo nordestino.
Ainda não conheço o Piauí e fiquei encantada com o filme. Recomendo que vejam e divirtam-se também com o olhar bem humorado do diretor, o jornalista e cineasta Cícero Filho, que dá uma aula de como se faz arte, mesmo nas condições mais adversas.
O resumo da história leiam na sinopse abaixo, mas, qualquer semelhança com o processo eleitoral em curso, não é mera coincidência.

Sinopse

Em meados dos anos de 1990, a fictícia cidade de Poço Fundo, no interior do Nordeste, está vivendo um verdadeiro caos em sua administração pública. O Prefeito Zé Leitão (Feliciano Popô) é um corrupto de mão cheia, capaz de tudo pelo dinheiro, seu egoísmo é a sua principal característica.

Zé Leitão já governa Poço Fundo há quatro anos, mas nada fez pela cidade em seu mandato. A população não consegue enxergar as coisas ruins que o prefeito faz. São iludidos com as falsas palavras de Zé Leitão e subestimados com os “programas sociais” que são realizados em seu mandato. Visto isto, a micro-empresária Cleonice da Cruz Piedade (Antonia Catingueiro) se revolta com os absurdos administrativos de seus governantes e decide “acordar” o povo sobre a atual situação da cidade. E luta pelos direitos do seu povo e conseguirá arrastar multidões em seus claros discursos, tornando-se assim querida por toda a população da cidade.

O filme também conta com uma segunda vertente: o triângulo amoroso entre Jerod (Welligton Alencar), Valdir (Rômulo Augusto) e Charleni (Irisceli Queiroz).

Nota de produção
“Ai que vida "
Gênero: Comédia
Duração: uma hora e meia
Direção Geral: Cícero Filho
Classificação: 12 anos
Vejam essas duas postagens interessantes sobre o filme:
http://www.overmundo.com.br/overblog/filme-piauiense-ai-que-vida-e-sucesso-de-publico
http://www.overmundo.com.br/overblog/filme-piauiense-em-detalhes

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Seminário Antonio Torres - Universidade Estadual de Feira de Santana




70 vezes obrigado, Feira de Santana!

Por iniciativa do professor, doutor e escritor Aleilton Fonseca, a Universidade Estadual de Feira de Santana (Bahia) realizou, nos dias 8 e 9 de setembro de 2010, no seu Anfiteatro – Módulo II –, o Seminário Narrativas e Viagens do Junco ao Mundo, em homenagem aos 70 anos do autor destas linhas, numa celebração à sua obra que surpreendeu em todos os sentidos: pelo interesse despertado dentro e fora da UEFS; pela repercussão nos mais variados meios de comunicação dentro e fora do estado da Bahia; e pelo nível dos textos apresentados, assim como das palestras e dos debates, a cargo de vários estudiosos (professores, pesquisadores, mestrandos e graduandos) que deram ao evento uma alta voltagem acadêmica e literária - e de que o retrospecto aqui, em imagens captadas por Ronaldo Torres, serve apenas de amostra.

O homenageado, que participou de tudo intensamente, sensibilizado, recorre a este veículo eletrônico para renovar o seu agradecimento à UEFS pela promoção de tão honrosa efeméride, assim como a todos que contribuíram para o seu êxito, cuja lista é imensa. 70 vezes obrigado, Feira de Santana. E viva a Bahia!

Antônio Torres
Itaipava (Petrópolis, RJ), 15 de setembro de 2010.


Nota do Blog ao povo de Feira de Santana: Clique na foto do seminário para ter acesso ao álbum.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

A Natureza Se Faz Presente - Rita Jankowski



De Ipê



A beleza das obras literárias de Antônio Torres assemelha-se à florada dos ipês. Sua nobreza, harmonia e grandeza seduzem nossos olhares de leitores contemplativos.
A origem da exuberância em talento deste escritor possui raízes de sustentação e absorção profundas e vigorosas nos valores de uma bela e numerosa família do sertão nordeste da Bahia. Lá, onde o amor familiar foi alento durante os longos períodos de hegemonia do sol a enrugar a terra. E foi neste mesmo cenário, onde a escassez da umidade do solo determina destinos, que a carreira literária de Antônio Torres veio a ser a primeira das muitas florescências em meio aos irmãos literatos igualmente bem sucedidos. Pouco após a época das primeiras letras, iluminada pelo amor materno de D. Durvalice, a emoção ao declamar Castro Alves veio à flor do rosto. A professora passara a ser D. Serafina e os ouvintes já não eram mais os do âmbito familiar, mas os de um convívio a céu aberto de toda uma cidade. Junco foi não somente o local de nascimento de um sertanejo como o de um sertanista.

Em Essa terra, Antônio Torres, no papel de sertanista, descreve a fotossíntese das árvores esparsas sob temperaturas abrasadoras; no papel de beletrista revela a foto - síntese de conterrâneos unidos em situações desoladoras.

Semelhante ao ipê que se adapta a terrenos secos e pedregosos, Antônio Torres soube amoldar em Um cão uivando para a lua, O cachorro e o lobo e em Pelo fundo da agulha, a aridez e os obstáculos que todos nós conhecemos, ao longo do tempo, nos compromissos familiares e profissionais. Contrabalanceou olhares opacos e brilhantes ao analisar as etapas da vida. Pelo fundo daquela agulha passou uma poesia completa contida somente em três frases:

“Amor rima com flor. E também murcha. Ficam os espinhos nas extremidades dos caules“.


Entretanto, sua experiência deixou a cargo da sucessão das estações o que pertence ao tempo. Este de tudo se encarregou. Esta prova está também em Sobre Pessoas. Um relato da versatilidade de um profissional que se dedicou às diversas culturas no campo do Jornalismo e da Publicidade e que compartilha as alegrias de um mestre no cultivo das amizades. Conserva na madeira impermeável do tronco, como em um frondoso ipê, um coração que se opõe às diversas formas de racismo, como o fez com propriedade na crônica O lado infame do genial Borges. Para reforçar esta luta, na tentativa de diminuir preconceitos e aumentar a paz, recordo-me de um conselho em espanhol “Doctor se hace, senõr se nace“, o qual adapto em “Doutor por formação, cavalheiro por nascimento.”

Ao reunir crônicas referentes ao mesmo tema, em Sobre Pessoas, o carinho do autor presta homenagem a diversos amigos de forma similar à da natureza, com pequenos buquês, a avolumar as copas dos ipês. E mesmo os amigos que já não mais sorvem a seiva desta vida, agora, prestam homenagem ao dileto Antônio e à sua cidade natal, juncando o solo ao redor deste ipê com a eterna beleza de suas flores.

E é chegado o momento quando a floração violácea do inverno dá as boas vindas aos dias de primavera refletidos na inflorescência amarela da árvore símbolo do Brasil. Este se adorna, também, para mais uma celebração da vida __ os setenta anos do amado escritor Antônio Torres no dia 13 de setembro. As sementes de seu talento, conhecimento e ensinamento foram dispersas pelos ventos nas mais variadas paisagens citadinas e campesinas mundo afora. Para expressar os votos de todos os amigos para uma vida longa,a natureza se faz presente.

Nota do blog: Ontem, dia 13 de setembro, o escritor Antonio Torres completou 70 anos.




Carniça - Luís Pimentel


De Tiro na cabeça


Quem vê a cena não diz que eu e o Carniça somos amigos desde a infância. Conheci esse neguinho quando éramos bem pequeninos, não precisávamos usar sapatos, nem mesmo tênis, o campo de futebol onde a gente jogava era usado só para jogar futebol, não era um terreno cheio de casas, mercearias e igrejas, evangélicas, e chamar um amigo de cor negra de neguinho não era ofensivo.

Minha profunda amizade com aquele neguinho começou na vila em que demos os primeiros passos, os primeiros pontapés um no outro, os primeiros chutes na bola de couro. A vila era pobre, muito pobre, onde eu nasci, filho de meu pai e de minha mãe, e ele também nasceu, filho do pai dele e da mãe dele.

Chamava-se Vila da Esperança – mesmo sendo verdade que esperança ali era o que menos havia –, era cheinha de casas pequenas e humildes, de homens e mulheres que quase sempre trabalhavam muito, e de umas noites que chegavam no final da tarde, como todas as noites de todos os lugares, mas que parecia acabar mais cedo. Geralmente, antes mesmo de clarear o dia, quando as mulheres saíam de casa para os seus trabalhos, quase sempre de empregadas domésticas, e os homens carregavam suas marmitas para as oficinas mecânicas, os postos de gasolina ou os bares do centro da cidade, onde a maioria deles deixava o próprio couro.
Não lembro quando foi que o Carniça passou a ser chamado de Carniça, como e porque arrumou esse apelido fedorento, mas sei que todos na vila só o tratavam assim. Mas ele tinha um nome, que era Reginaldo. Só que como Reginaldo ninguém o conhecia, só mesmo os seus pais. Para os vizinhos todos, os moleques, sobretudo, era Carniça pra lá, Carniça pra cá, de manhã, de tarde e de noite. Carniça nunca reclamou.

A Vila da Esperança só tinha construções de um cômodo, quartos apertados e banheiro no final do corredor. Cresci ao lado de Reginaldo-Carniça, neguinho bom de bola que só vendo, pois tinha canelas finas, braços compridos para ajudar no drible e corria como ninguém. Com esse neguinho – como eu já disse, não era feio nem horrível chamar um amigo neguinho de neguinho, era até carinhoso – mal-agradecido disputamos chupeta, usamos as mesmas roupas, jogamos muito futebol de botão juntos, entramos juntos na Cartilha do ABC e na escola pública para fazer o curso Primário, e só não fizemos o Ginasial juntos porque a vida torta logo chamou o meu amigo sei lá para onde.

Como acreditar que fui até irmão de leite desse sujeito que agora faz uma coisa dessas comigo? Passei muitos apertos na vida por causa daquele amigo. Lembro como se fosse hoje do dia em que minha mãe me deu dinheiro para ir até o açougue, comprar um pedaço de carne para o nosso almoço, e tive o desacerto de encontrar Carniça no caminho.

– Para onde você vai assim, tão apressado? – ele quis saber.
– Vou comprar carne para minha mãe fazer um almoço lá em casa.
– Carne, é? Huuummm... menino rico é outra coisa.
– Rico o quê, cara? Que história é essa de rico?
– Só rico come carne, rapaz. Sabia não?
– Não.
– De mais a mais, carne não faz falta. Ovo e verdura são bem melhores. Vamos usar esse dinheiro para comprar uns refrigerantes, bolachas, biscoitos, balas de coco, essas delícias. Depois você diz à sua mãe que perdeu o dinheiro.

Claro que eu não deveria ter caído nessa conversa. Mas caí. A desculpa não convenceu minha mãe, levei uma surra inesquecível.

Nossas mães, a minha e a de Carniça, eram amigas desde mocinha. Mamãe batizou aquele moleque, e foi a mãe de Carniça quem arranjou com o dono do quartinho para minha mãe, meus irmãos e eu morarmos um tempo sem pagar aluguel, até ela se arrumar na vida.

A mãe de Carniça era empregada doméstica, que nem a minha. Mas tinha mais facilidade para arranjar trabalho, pois esbanjava saúde. Era uma preta magrinha, também de canelas finas, que passou para o filho, pelo DNA, olho muito vivo e uma disposição de matar de inveja. Minha mãe andava sempre adoentada, branquinha das pernas fracas, coitada, e volta-e-meia tinha que deixar o emprego para se tratar. E nem sempre encontrava o lugar vago quando recebia alta lá no instituto.

Meu pai morreu cedo, eu era bem pequeno. O pai de Carniça durou um bom tempo, mas não trabalhava e vivia bebendo cachaça. Dona Laura – era esse o nome dela – comeu o pão que o diabo amassou com aquele marido. Minha mãe dizia:

“Pra ter um marido assim, é melhor viver sem homem”.

A pobre concordava:

“Fazer o quê, minha comadre, se foi essa praga que Deus botou no meu caminho?”

Não contei que o pai de Carniça era uma praga? Pois o meu amigo, infelizmente, depois se tornou uma praga também, parece que puxou ao pai, porque nunca vi tanta ruindade.

Já repeti umas quinhentas vezes que não tenho culpa no cartório, não falei nada para a polícia, não conheço polícia nenhuma, pois não me dou com essa gente, mas o desgraçado não acredita. Mesmo achando errado o que ele faz, eu não ia, de jeito nenhum, causar a desgraça de um sujeito que conheço desde bebê ou molequinho, que ainda por cima minha mãe batizou e ele bebeu leite no peito dela.

Digo não sei de nada, não falei nada, para com isso, você está maluco, mas não adianta. Meu quase irmão mantém essa porcaria desse revólver encostado em minha nuca, enquanto cospe, ruge, baba e grita que não tem nada a perder e vai disparar daqui a pouco.

E sei que vai.



quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Ecos do Salipa - Cineas Santos


De 2º Salipa


“Não se nasce para ontem” – Salgado Maranhão

Não por acaso, abro este arremedo de crônica usando como epígrafe o belo verso de Salgado Maranhão. Parnaíba precisa, com a maior urgência, livrar-se dos fantasmas de Simplício Dias e de outros figurões que, no passado, fizeram-na “rica e gloriosa”.Não se está pedindo aos parnaibanos que esqueçam os vultos históricos que enobrecem as origens da cidade. O que se lhes pede é que se louvem na lição de Mário de Andrade: “O passado é lição para se meditar, não para reproduzir”.

Louvo, pois, com imensa alegria, iniciativas como a realização do Salão do Livro de Parnaíba que, em sua segunda edição, já se configura como um divisor de águas na vida cultural da cidade. De tudo o que vi o mais animador foi a sede do novo que anima os parnaibanos. A plateia, constituída em sua maioria de jovens professores e estudantes, participou ativamente de tudo, com o entusiasmo dos que apostam no futuro. Para ilustrar o que digo, citarei apenas um exemplo: no início da palestra da superintendente do IPHAN no Piauí, Diva Figueiredo, faltou luz. Era de se esperar uma debandada geral. A plateia, numa demonstração de civilidade, não arredou pé do auditório. Outro incidente, bastante revelador, foi o lançamento do livro de um dos figurões da terra. Depois da bela conferência da filósofa e romancista Márcia Tiburi, antes que o público pudesse manifestar-se, alguns organizadores do evento exigiram que a moça, muito solicitada pela plateia, saísse do auditório para que se realizasse o lançamento. A jovem escritora saiu e, com ela, a plateia inteira. O mais não posso dizer porque também saí...

A 2ª edição do Salipa, bancada pela Prefeitura de Parnaíba, teria custado ao município apenas 60 mil reais, dinheiro insuficiente para contratar uma dessas bandas de forró do Ceará. E por falar em forró, parte musical do evento contou com a presença de Soraia Castelo Branco e Patrícia Melodi, para citar apenas duas das muitas atrações. Mais que uma simples feira de livros, o Salipa foi uma bela mostra da multifacetada cultura parnaibana. Literatura, música, dança, teatro, artesanato e culinária, tudo misturado num caldeirão cultural com sabor de “queremos mais”.

Marcaram presença na festa do livro, entre outros, os escritores Salgado Maranhão, Márcia Tiburi, Ondjaki, Assis Brasil, Manoel Domingos, Fonseca Neto, Diva Figueiredo e a fina flor da intelectualidade parnaibana. Com sua beleza arquitetônica, com o apelo do mar, do Delta, do clima e, principalmente, com simpatia de sua gente luminosa, Parnaíba poderá, em curtíssimo espaço de tempo, realizar o mais belo salão de livros do Piauí. Assim seja.

sábado, 28 de agosto de 2010

Das Andanças e das Lembranças



Um Canto de Afoxé Para Izabel


De Placa de Aviso
Mais cedo da manhã, antes que o dia esquentasse, fiz uma caminhada pelas ruas do bairro de Cruz das Almas, aproveitando o frescor da brisa e a suavidade do sol entre nuvens. Passando pela Avenida Santana do Ipanema, uma das principais ruas do bairro, um letreiro curioso no portão de uma casa chamou a minha atenção. Estava escrito em letras graúdas, para míope nenhum reclamar: “CUIDADO COMOÇÃO”. Fiquei intrigado com a mensagem e os passos seguintes dediquei a decifrar que “comoção” era aquela.

Dentre outras coisas, o Houaiss diz que: “comoção é emoção forte e repentina”. Então posso afirmar, sem medo de errar, que, o que senti dia desses foi uma comoção, um choque emocional causado pela surpresa (grata, ressalte-se) de encontrar uma pessoa ligada ao meu passado chegando inocentemente para o meu barraco das convivências cibernéticas. E ela se chama Izabel Urpia, que chegou a mim trazida por um amigo português, discípulo de Alexandre O’Neill, o também poeta Jota Vilela.

O simples pronunciar do nome “Urpia” já me causa frisson, comichão espiritual, uma vontade de mergulhar no túnel do tempo e resgatar as lembranças dos áureos tempos da inocência. A presença de um “Urpia” é o próprio passado que me visita, as reminiscências que afloram contundentes, as recordações que me espetam como um roseiral de espinhos. A lógica da vida beira à raia da incongruência quando assistimos a tantas fatalidades despropositadas e que o nosso bom senso reluta em aceitar como uma regra justa da vida: a Morte não tem hora anunciada nem data marcada para acontecer. E nos rebelamos contra este enunciado democrático e universal, pois, por mais que tenhamos consciência do nosso processo de transmigração ou de desencarnação, há sempre uma forte indagação dos pranteadores mais próximos do pranteado: “Por que teve que ser ele (ou ela), meu Deus!?” esquecendo-se que a Morte é a regra número um da Vida e que uma não existe com a exclusão da outra. Vida e Morte coabitam no mesmo Destino.

Cristina, minha primeira mulher, era uma “Urpia” e vivia o apogeu dos seus vinte e sete anos quando a fatalidade resolveu nos procurar. Uma simples gripe mal cuidada virou pneumonia. O médico achou que ela devia se internar para se curar mais rápido. Renitente, em casa ela não faria o tratamento adequado, vez que fumava um cigarro atrás do outro e era adepta do “gripe se cura com cachaça, limão e mel”.

Às dezoito horas deu entrada na enfermaria do hospital Jorge Valente, enquanto aguardava vagar um quarto. Às vinte e duas horas saiu da enfermaria e foi direto para a UTI, em coma profundo, devido a um vírus hospitalar. Trinta dias depois veio a falecer, sem que os médicos tivessem respostas convincentes para a tragédia que se abateu sobre a família. Deixou três filhos pequenos e uma saudade imensa.

Conheci Cristina em 1977, em uma viagem de ônibus de Paulo Afonso para Salvador. Ela era a passageira da poltrona ao meu lado e, uma hora depois de conversa e prosa, marcamos casamento. Era o mês de maio, mês das marias, das noivas e do nosso Destino. Em setembro ela engravidou e em dezembro nos casamos na igreja de Nossa Senhora Santana, no Rio Vermelho. Ela estava com 17 anos; eu, 20.

Após o carnaval de 1983, na quarta-feira de cinzas para ser mais exato, cheguei à conclusão que havia muita mulher em Salvador para pouco homem. Não era justo continuar amarrado quando tinha o mundo e as mulheres aos meus pés. Assim, com cara de ressaca, arrumei a mala e dei bye, bye que durou toda a sua curta vida. Porém, por um desses estranhos desígnios de Deus, ela conheceu e ainda recebeu em sua casa aquela que viria a cuidar dos seus filhos, meses depois.

Mas retomemos o tempo presente. Retornando da caminhada de hoje, pensando nisso tudo e na placa com o estranho aviso, não resisti e toquei a campainha da casa em questão. Um cachorro latiu amofinado, um velho tossiu irritado e uma senhora sorridente me atendeu:

– Desculpe-me pelo incômodo, moça, mas é que não resisti à curiosidade: o que significa esses dizeres “cuidado comoção”?
– Né comoção não, moço. O que está escrito é: “cuidado com o cão”. O senhor não sabe ler não, é?

Lá dentro o cão latiu hostil e um papagaio debochado afinou o chalreio: “uuh, babaca!”

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Sonho e Pesadelo - Luís Pimentel

De Congestionamento


– O senhor também teve o Rolex roubado, Seu Antônio, que nem o apresentador da televisão, ou simplesmente esqueceu o seu horário de trabalho?
– Quem sou eu, chefe, para ter um Rolex. O meu relógio é de camelô, de cinco reais.
– Quanto à segunda pergunta?...
– Peguei um engarrafamento cachorro, doutor Ayres. Horas parado dentro de um ônibus na 24 de maio. Não é fácil vir do Méier a Copacabana.
– Em uma cidade deste tamanho, constantemente engarrafada, engarrafamentos não podem mais servir como justificativa para atrasos. Trânsito parado, hoje, aqui e agora, é rotina. O que não pode virar rotina é o atraso no trabalho.
– Não entendi onde o senhor quer chegar.
– Não quero chegar a lugar nenhum, Seu Antônio. Eu precisava chegar até aqui, no meu serviço, e cheguei. Na hora. E também de ônibus.
– Doutor Ayres, francamente. Não seja tão Caxias.
– E se os papéis fossem trocados, Seu Antônio? Se o senhor estivesse em meu lugar e eu no seu, aceitaria que eu entrasse aqui a esta hora?
– Mas é claro. Sou a generosidade em pessoa.
– Pois saiba que, à nossa revelia, os papéis foram trocados. O senhor foi promovido e eu fui rebaixado, com a opção honrosa da demissão voluntária, caso não aceitasse. Aceitei. O senhor será o meu chefe, a partir de amanhã. Vamos ver como é que a banda toca.
– Não acredito.
– Acredite. E quanto aos engarrafamentos diários, a vida continua?
– Vamos ter que repensar, Seu Ayres. Vamos ter que repensar.
***
Dormindo ou acordado, a distância entre o sonho e pesadelo pode ser apenas de dois pra lá e dois pra cá. Ou vice-versa.