terça-feira, 14 de setembro de 2010

Carniça - Luís Pimentel


De Tiro na cabeça


Quem vê a cena não diz que eu e o Carniça somos amigos desde a infância. Conheci esse neguinho quando éramos bem pequeninos, não precisávamos usar sapatos, nem mesmo tênis, o campo de futebol onde a gente jogava era usado só para jogar futebol, não era um terreno cheio de casas, mercearias e igrejas, evangélicas, e chamar um amigo de cor negra de neguinho não era ofensivo.

Minha profunda amizade com aquele neguinho começou na vila em que demos os primeiros passos, os primeiros pontapés um no outro, os primeiros chutes na bola de couro. A vila era pobre, muito pobre, onde eu nasci, filho de meu pai e de minha mãe, e ele também nasceu, filho do pai dele e da mãe dele.

Chamava-se Vila da Esperança – mesmo sendo verdade que esperança ali era o que menos havia –, era cheinha de casas pequenas e humildes, de homens e mulheres que quase sempre trabalhavam muito, e de umas noites que chegavam no final da tarde, como todas as noites de todos os lugares, mas que parecia acabar mais cedo. Geralmente, antes mesmo de clarear o dia, quando as mulheres saíam de casa para os seus trabalhos, quase sempre de empregadas domésticas, e os homens carregavam suas marmitas para as oficinas mecânicas, os postos de gasolina ou os bares do centro da cidade, onde a maioria deles deixava o próprio couro.
Não lembro quando foi que o Carniça passou a ser chamado de Carniça, como e porque arrumou esse apelido fedorento, mas sei que todos na vila só o tratavam assim. Mas ele tinha um nome, que era Reginaldo. Só que como Reginaldo ninguém o conhecia, só mesmo os seus pais. Para os vizinhos todos, os moleques, sobretudo, era Carniça pra lá, Carniça pra cá, de manhã, de tarde e de noite. Carniça nunca reclamou.

A Vila da Esperança só tinha construções de um cômodo, quartos apertados e banheiro no final do corredor. Cresci ao lado de Reginaldo-Carniça, neguinho bom de bola que só vendo, pois tinha canelas finas, braços compridos para ajudar no drible e corria como ninguém. Com esse neguinho – como eu já disse, não era feio nem horrível chamar um amigo neguinho de neguinho, era até carinhoso – mal-agradecido disputamos chupeta, usamos as mesmas roupas, jogamos muito futebol de botão juntos, entramos juntos na Cartilha do ABC e na escola pública para fazer o curso Primário, e só não fizemos o Ginasial juntos porque a vida torta logo chamou o meu amigo sei lá para onde.

Como acreditar que fui até irmão de leite desse sujeito que agora faz uma coisa dessas comigo? Passei muitos apertos na vida por causa daquele amigo. Lembro como se fosse hoje do dia em que minha mãe me deu dinheiro para ir até o açougue, comprar um pedaço de carne para o nosso almoço, e tive o desacerto de encontrar Carniça no caminho.

– Para onde você vai assim, tão apressado? – ele quis saber.
– Vou comprar carne para minha mãe fazer um almoço lá em casa.
– Carne, é? Huuummm... menino rico é outra coisa.
– Rico o quê, cara? Que história é essa de rico?
– Só rico come carne, rapaz. Sabia não?
– Não.
– De mais a mais, carne não faz falta. Ovo e verdura são bem melhores. Vamos usar esse dinheiro para comprar uns refrigerantes, bolachas, biscoitos, balas de coco, essas delícias. Depois você diz à sua mãe que perdeu o dinheiro.

Claro que eu não deveria ter caído nessa conversa. Mas caí. A desculpa não convenceu minha mãe, levei uma surra inesquecível.

Nossas mães, a minha e a de Carniça, eram amigas desde mocinha. Mamãe batizou aquele moleque, e foi a mãe de Carniça quem arranjou com o dono do quartinho para minha mãe, meus irmãos e eu morarmos um tempo sem pagar aluguel, até ela se arrumar na vida.

A mãe de Carniça era empregada doméstica, que nem a minha. Mas tinha mais facilidade para arranjar trabalho, pois esbanjava saúde. Era uma preta magrinha, também de canelas finas, que passou para o filho, pelo DNA, olho muito vivo e uma disposição de matar de inveja. Minha mãe andava sempre adoentada, branquinha das pernas fracas, coitada, e volta-e-meia tinha que deixar o emprego para se tratar. E nem sempre encontrava o lugar vago quando recebia alta lá no instituto.

Meu pai morreu cedo, eu era bem pequeno. O pai de Carniça durou um bom tempo, mas não trabalhava e vivia bebendo cachaça. Dona Laura – era esse o nome dela – comeu o pão que o diabo amassou com aquele marido. Minha mãe dizia:

“Pra ter um marido assim, é melhor viver sem homem”.

A pobre concordava:

“Fazer o quê, minha comadre, se foi essa praga que Deus botou no meu caminho?”

Não contei que o pai de Carniça era uma praga? Pois o meu amigo, infelizmente, depois se tornou uma praga também, parece que puxou ao pai, porque nunca vi tanta ruindade.

Já repeti umas quinhentas vezes que não tenho culpa no cartório, não falei nada para a polícia, não conheço polícia nenhuma, pois não me dou com essa gente, mas o desgraçado não acredita. Mesmo achando errado o que ele faz, eu não ia, de jeito nenhum, causar a desgraça de um sujeito que conheço desde bebê ou molequinho, que ainda por cima minha mãe batizou e ele bebeu leite no peito dela.

Digo não sei de nada, não falei nada, para com isso, você está maluco, mas não adianta. Meu quase irmão mantém essa porcaria desse revólver encostado em minha nuca, enquanto cospe, ruge, baba e grita que não tem nada a perder e vai disparar daqui a pouco.

E sei que vai.



2 comentários:

erhi Araújo disse...

Salve Pimentel!

Não posso comentar a obra!
Quero sim, cumprimentá-lo por tamanha generosidade para com a velha Princesa do Sertão... cumprimentá-lo pela carreira brilhante, cumprimentá-lo pelo quanto nos alegra ter desfrutado da sua companhia nos palcos feirenses e na nossa casa, minha e de Cezar Ubaldo.
Parabéns e muito sucesso
Abraços
erhi

Anônimo disse...

Obrigado, Erhi, por suas palavras. E receba aqui o abraço fraterno e conterrâneo, procê e pro querido Cezar Ubaldo.
Luís Pimentel