quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Crônica de uma cidade - Maria Olímpia Melo

De Colagens



O Jornal O Globo não é vendido em Lavras. Uma inacreditável história de dívidas e birra. As dívidas ficam por conta do representante do jornal em Lavras, que não pagou o que devia e ainda deu no pé. A birra fica por conta do jornal que considerou a dívida como sendo da cidade e não do indivíduo. E bloqueou a venda do jornal enquanto a dívida não for paga. Como o negócio não é assim tão interessante ninguém também se interessa por pagar essa dívida. E como nem assinatura pode ser feita, praticamente ninguém em Lavras lê o jornal.

Eu havia lido a notícia pela net. Eu já sabia da história. Todas as pessoas que vivem ou viveram nas cercanias de Andrelândia sabem dessa história. Os detalhes podem ser diferentes, mas a essência é a mesma. E eu vivi em Arantina, nas cercanias de Andrelândia e estudei lá por dois anos e meio, no colégio das freiras.

Minha irmã trouxe para minha mãe ler. Minha mãe é desse tempo e conhece melhor a história do que eu. Foi publicada na revista O Globo de 15 de agosto passado.

Antes de entrar no assunto, uma curiosidade: Andrelândia é a única cidade do mundo onde a família se orgulha de ter um filho veado. Porque a família é toda constituída de veados. Homens e mulheres e crianças, todos são veados.

A primeira vez que ouvi falar disso eu havia acabado de chegar no colégio e me preparava para fazer os exames finais do quarto ano primário. Em Arantina não tínhamos o quarto ano, só até o terceiro em classe multisseriada. Era a primeira vez que eu saía para passear pelas ruas da cidade, muito bem cuidada por sinal. Mas, em uma das ruas por onde passamos, rua calçada, próxima a Matriz, vi que em frente de uma casa não havia calçamento, so um retângulo de terra. Perguntei: por que na frente dessa casa não existe calçamento? Não posso garantir qual foi a resposta exata que ouvi, mas foi uma ou outra. É que essa casa pertence a um veado. Ou a um caranguejo. Isso realmente eu não me lembro. Mas garanto que foi uma ou outra. E tive aí minha primeira lição sobre a política em Andrelândia. Porque ainda hoje, nessa simpática cidadezinha, vigora o bipartidarismo: ou você é veado ou é caranguejo. Os partidos oficiais não existem, ou melhor, existem, mas são subjugados pelos outros.

Entre tapas e beijos é a chamada para a reportagem de capa que mostra a fotografia de um casal – o primeiro a ter autorização para um casamento misto. Um caranguejo macho se unia a uma veadinha. O ano, 1932. Viveram juntos por 75 anos e multiplicaram os veados pela cidade. Porque sim, foi o lado dela que assumiu o poder. Mas isso foi um acontecimento raríssimo, uma aberração. A segregação continuou por décadas.E lá aquela história ainda bem comum em nossas cidades, a história do eu faço você desfaz, ou eu fiz e você desmanchou era levada aos extremos. Outro fato interessante: hoje em dia casamentos mistos são comuns. É possível a um veado amar um caranguejo. Mas se amar é possível, votar, nunca.

A reportagem é cheia de detalhes interessantes . Detalhes que eu desconhecia. Por exemplo, hoje os veados são adeptos do PMDB e os caranguejos, acostumados a pertencerem a fauna, são tucanos.

É claro, não vou copiar nem repetir aqui as histórias dentro dessa história que o jornal conta.São frutos de pesquisa, de um trabalho jornalístico muito bom feito pelo repórter Renato Grandelle. Mas ele deu uma informaçãozinha com a qual me deliciei – é sobre o Botafogo ser o time de futebol mais popular da região. Eu não sabia que isso atingia Andrelândia mas em Arantina eu sei que é. Eu venho de uma família de arantinenses botafoguenses e mesmo os que hoje se transferiram para outros times, principalmente o Cruzeiro, continuam a dizer que são botafoguenses de família.


Nota do blog: No arraial do Junco a briga santa é entre caranguejos e tranca-ruas. Os veados foram mortos durante a povoação.




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