quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Cineas Santos - Tempo quente

Dileta amiga, sempre atenta às questões ambientais, postou no facebook uma pergunta que, de tão óbvia, dispensaria comentários. “Teresina está mais quente do que nunca?”. A resposta até as pedras sabem. A despeito disso, choveram comentários curiosos. Alguém sugeriu que a solução seria mudar-se para a serra, “Viçosa, talvez”. Um outro argumentou que “o problema se chama Suzano”. Não faltou quem apelasse para o humor: “Não sei responder porque o calor cozinhou meu cérebro”. Até aí, nada de extraordinário: o face é o local onde se descascam abobrinhas sem medo do ridículo. A questão é outra. Nenhum dos “comentaristas” nem sequer tocou na questão essencial: a destruição da cobertura vegetal da cidade. Consta que, ao sobrevoar Teresina na década de 30, o escritor Coelho Neto, impressionado com a exuberância do verde, teria agraciado a cidade com o título de “Cidade Verde”. Os teresinenses tomaram o elogio como ofensa e resolveram reduzir tudo a cinza. “Progresso se faz com trabalho e concreto”, afirmou um prócer da urbe.

Ainda não se fez um levantamento do número de árvores que se cortam diariamente em Teresina. Posso assegurar-lhes que é algo impressionante. Eliminam-se as árvores sob os mais diversos pretextos: “sujam os quintais” , “racham as calçadas”, “encobrem as fachadas”... É preciso que se diga: os gestores têm grande parcela de culpa nisso tudo. Até hoje não se fez um projeto sério de arborização da cidade. O que tivemos, até agora, foram “tendências”. Assim, houve o momento das algarobeiras, das acácias, do algodoeiro, do fícus. Agora, é vez do neen. Ora, o verde de Teresina sempre esteve concentrado nos quintais que, como era de se esperar, não resistiram à gula da especulação imobiliária. Onde ontem existia um quintal (recoberto de mangueiras e cajueiros), hoje rebrilha um edifício de linhas modernosas ou se esparrama um supermercado como nome chamativo. Na periferia da cidade, o chamado “cinturão verde” foi engolido pelas favelas, rebatizadas com o nome de “vilas”. A equação é simples: menos árvores, mais calor.

Para piorar a situação, a Prefeitura resolveu investir pesado no asfaltamento das ruas, notadamente na zona leste onde, supostamente, moram os “formadores de opinião”. Acrescente-se a isso o volume de veículos trafegando nas ruas, os aparelhos de ar-condicionado, as queimadas... 

Sem querer ser pessimista, recorro ao velho Millôr para deixar uma sugestão à dileta amiga que se queixa do calor de Teresina: “Se está ruim, aproveite; amanhã, pode estar pior”.


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O matador do matador de aluguel - A revanche de Luís Pimentel

A PEDRA NO CAMINHO
(Cordel de uma peleja)

Se o papel aceita qualquer coisa,
cada um escreve o que bem quer.
Falcatrua, parolas, coisa e lousa,
e até mexerico de muier.
Mas daqui do ninho onde a verdade pousa,
só conto história como a história é.

Eu estava mesmo na porta do estádio
vendendo uma a uma minhas laranjinhas,
quando chegou gritando pelo rádio
o bando feroz de Alagoinhas.
Se em campo o Touro do Sertão gemeu,
fora dele foi a Feira de Santana que tremeu.

Hoje digo ao amigo Seu Tom das Quebradas,
que fiquei de fora naquela algaravia.
Não fui o autor da bíblica pedrada,
pois eu sou até torcedor do Bahia!
Mas mesmo reconhecendo que são pedras passadas,
acho que o alagoinhense de então merecia (pela ousadia).

Agora, ao reencontrar o bravo atleticano,
mandando chover nas águas das Alagoas,
proseando, cantando e flimareando,
levando a vida assim tão numa boa,
me pergunto para que ficar lembrando
de uma pedrinha no caminho (ou na cabeça) tão à toa?

Eu festejo no entanto é o reencontro
que me deu de verdade tanta emoção.
Que sensibilizou ponto a ponto
esse filho distante de Gavião.
Que acertou no Tom, sem desconto,
e ganhou mais um verdadeiro irmão.


domingo, 2 de outubro de 2011

Salgado Maranhão - Outdoor

Do Velho Ancião (Cineas Santos) recebi abaixo:

"Irmãos e irmãzinhas: é uma alegria ver a face de um poeta estampada num outdoor, onde normalmente se anunciam bens de consumo, nem sempre recomendáveis. A alegria é ainda maior se o poeta for Salgado Maranhão, uma das vozes mais lúcidas da moderna poesia brasileira. Viva Caxias, que ama os poetas que tem. Uma semana luminosa para todos.

LUNAR

A cara da lua
está partida ao meio,
feito um queijo ruído;
meu coração também
vive partido
- à míngua:
de amar como quem se afoga,
de amar como quem se vinga.

(Salgado Maranhão - A Cor da Palavra - Ed. Imago - BN)"



sábado, 1 de outubro de 2011

O matador do matador de aluguel


Não gosto de comentar livro e música porque gosto e mau gosto cada um tem o seu. Por exemplo: meus vizinhos me acham um chato porque não vejo mérito artístico nem qualidade musical na dupla Ximbinho-Joelma, os tais Colapsos, digo, Calypsos, mas que fazer se quando eles cantam os meus ouvidos doem?

Entretanto, não posso deixar passar em brancas nuvens o último livro de crônicas de Luís Pimentel, chamado “O matador de aluguel”, título bem alagoano, embora seja o autor um autêntico baiano, mas esbarro no seguinte dilema: se eu falar bem, algum dos meus seis leitores irá dizer que assim só procedo porque Luís Pimentel é meu amigo, fomos vizinhos de bairro quando adolescentes e até insinuará maldosamente que andamos trocando pelas ruas de Feira de Santana. Calúnia. Pura calúnia. 

Por outro lado, se eu descer a ripa no livro do cronista feirense, o povo de Feira de Santana dirá que falo mal por puro despeito ou para me vingar da pedrada que ele me deu na saída do Estádio Joia da Princesa, num jogo mal acabado entre o Atlético de Alagoinhas e o Fluminense de Feira de Santana, numa era que ninguém sonhava com torcida organizada. Para quem não sabe ou não se lembra, o time feirense reinou absoluto no futebol do interior da Bahia até a chegada do time alagoinhense, em 1971. No ano seguinte, não só o Atlético estava consolidado, como uma partida entre esses dois times se tornara clássico interiorano, com a mesma paixão de um Ba-Vi.

Em 1972 o Atlético foi jogar pelo campeonato baiano em Feira de Santana. Era o chamado “jogo de ida” e o time de Alagoinhas resolveu ganhar o jogo. Quando o juiz deu a partida por encerrada, a torcida do Atlético ficou encurralada no estádio, sob uma enxurrada de paus e pedras. Todos os carros com a placa de Alagoinhas foram depredados e muitos torcedores saíram do estádio direto para o pronto-socorro, depois que a polícia chegou e baixou o sarrafo na torcida agitada do Fluminense.

Eu estava lá, inocentemente vestido de torcedor do Atlético, e ainda me causa arrepios o impacto da pedra na testa e o gosto de sangue na boca. Fixei-me no agressor, um garoto vendedor de laranja, que eu o reconheci como o mesmo garoto morador de Queimadinha, chefe de uma gangue-mirim e que vivia procurando encrenca no bairro vizinho, Cidade Nova. Isso em 1971, quando morei lá, na Cidade Nova. Certa vez estávamos numa festa de aniversário de um amigo, no Queimadinha, e fomos sumariamente expulsos por essa gangue a golpes de pau e pedra, pra desespero do dono da festa. Só não sabia que o projeto de Al Capone vendia laranja na porta do estádio em dia de jogos.

No primeiro momento ele se mostrou surpreso. Só não sei se por ter me reconhecido como ex-vizinho de bairro ou pela precisão da pedrada. Passei várias semanas de cara inchada, olho torto, bebendo água por canudo, e até a minha namorada me deu o vale em caráter irrevogável. Não podia nem apelar pra temporariedade do trauma porque a boca não balbuciava palavras e ainda tive que engolir calado a insinuação maldosa de que Frankenstein havia ressuscitado. 

Esse era o meu quadro clínico depois de um domingo de lazer em Feira de Santana. Daria tudo na vida pra pegar aquele vendedor de laranja no jogo de volta. Vingança é um prato que se come frio, mas os torcedores do Fluminense, mais conhecido como “Touros do Sertão”, não apareceram. Amarelaram. No fundo, no fundo, eram umas vacas! 

Mas certas horas a gente se dá conta de que esse mundo é muito pequeno. Ou “dá muitas voltas”, como dizia o meu pai. Em reminiscências ao sabor da brisa marinha da praia do Mirante da Sereia, descobri que o vendedor de laranja que me levou a nocaute era o hoje pai do matador de aluguel, Luís Pimentel. Um abraço fraterno foi a minha mais cruel vingança, que degustamos com água de coco, misturando lágrimas com cachaça. Boas lembranças, cujos ressentimentos ficaram enterrados nos escombros da juventude. 

Não sou bom em resenhas literárias ou coisas que tais, mas há certos livros que a gente lê que fica atravessado na garganta querendo falar deles pra todo mundo. É o caso do Matador de Aluguel. O livro é muito divertido e com algumas histórias curiosas de certas personalidades musicais. Vale a pena investir alguns reais na aquisição do mesmo. Só não sei quanto custa, por que o que tenho aqui foi presente do autor para o meu filho Vinícius e fica chato se procurar o preço de um presente. Mas deve custar menos que um sanduba da Mac Donalds.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Cineas Santos - E o Pedro partiu...

Não fosse lugar-comum, eu diria: a vida perdeu Pedro José de Sousa, mais conhecido como Pedro Macaquinho. Direi apenas: os sertanejos do sul do Piauí perdemos muito da nossa alegria com a partida do Pedro. Macaquinho e eu nascemos na mesma aldeia: Lagoa dos Tubis, mais tarde rebatizada com o pomposo nome de Campo Formoso. Ali faltava quase tudo, até o essencial: água. Menino ainda, Pedro descobriu que tinha a alma encharcada de música. Por falta de um instrumento à mão, fez-se “tocador de sovaco”. Onde houvesse plateia, lá estava o garoto entanguido, meio zarolho, mão esquerda sob o braço direito, marcando o ritmo do xote “O Cheiro da Carolina”, de Luiz Gonzaga. Tantas fez que acabou agraciado com o apelido de Macaquinho. Mais tarde, para fugir da fome, da sede e do rabo da enxada, mudou-se para o Canto do Buriti onde se fez zabumbeiro do Mané Vicente. O mais é do conhecimento geral: Pedro Macaquinho tornou-se o showman do sertão. Tocava, cantava, dançava, contava piadas e, principalmente, pedia. Pedia até que lhe pingassem colírio nos olhos. Certa feita, para me comover, engendrou um expediente inimaginável: “Meu bichim, tô sem obrar há três dias”, afirmou. Rebati de bate-pronto: Tome um purgante de óleo de rícino, Macaquinho. É tiro e queda. Pedro voltou à carga: “Meu bichim, tu num tá entendendo nada. Tô sem obrar porque num tô comendo nadinha, nadinha...”. Impossível resistir a um apelo desse naipe.

Há uns três anos, Pedro vinha lutando bravamente contra um câncer de próstata. Já muito doente, encontrou alento para gravar um CD que, de tão popular, chegou a ser pirateado em Canto do Buriti. O título não poderia ser mais adequado: The Best of Pedro Macaquinho. Este ano, fiz questão de trazê-lo para o Salão do Livro do Piauí, no início de junho. Pedro chegou visivelmente abatido, com a respiração sincopada e dor no peito. Mal me avistou, disparou: “Meu bichim, me dá um caché pra dor nos peitos, que eu tô que não me aguento”. Graças à pronta intervenção do Dr. Gisleno Feitosa, Pedro Macaquinho pôde apresentar-se para alegria do público. Em agosto, realizamos o Primeiro Festival de Sanfona de São Raimundo Nonato. O Macaquinho não marcou presença. Desconfiei que alguma coisa estivesse errada: os festejos de agosto, em S. Raimundo Nonato, sem a presença do Macaquinho não têm o mesmo brilho, a mesma alegria.

Na semana passada, recebi a triste notícia: o Macaquinho se fora sem tempo de ver o documentário que estou produzindo com ele e outros sanfoneiros da região. Parafraseando Bandeira, imagino Macaquinho entrando no céu: “- Xarazinho, me arranja aí um tiquinho de comida, que a viagem foi puxada”. E São Pedro, bonachão, “- Entra, Pedro, que isso aqui tá uma leseira só. Trouxe a sanfona?”. E o céu nunca mais será o mesmo...


quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Era Sarney: Origem ou Continuidade do Caos?

Coisa que nunca saberemos: se o Maranhão era pior ou melhor antes da era Sarney. Pior seria impossível vez que o estado continua na rabeira de todos os indicadores sociais. O filme foi encomendado por Sarney a Glauber Rocha, para ser usado como propaganda de governo, mas o Imperador do Maranhão não imaginou que o Glauber focaria sua lente pra outros objetivos. Como disse o Nelson Motta: "Glauber dizia que o artista também tem de ser um profeta; mas a sua obrigação é de profetizar, não de que as suas profecias se realizem. O discurso de Sarney e as imagens de Maranhão 66 são os mesmos do Maranhão 2011, num filme trágico, cômico, e, 46 anos depois, profético".

Veja o vídeo antes que o vate maranhense faça valer sua autoridade.

Tempestade de Ideias Nº 1: Antonio Torres

"Com o prosaico nome de Tempestade de Ideias, que veio do manjado “Brainstorm”, estreia a mais nova minissérie da TV Cronópios. O programa número um traz o registro de um encontro com o grande escritor Antônio Torres, autor de Essa Terra, O cachorro e o lobo, Pelo fundo da agulha e muitos outros títulos premiadíssimos.

A convite de Marcos Ferraz, Diretor de Criação em publicidade e fundador da Escola de Redatores (www.escoladeredatores.com.br) em São Paulo, a TV Cronópios teve o privilégio de gravar o encontro dos dois para os cronopianos. Antônio Torres é um dos nossos monstros sagrados da Literatura. E você vai ver e ouvir porque, assistindo a este vídeo exclusivo.

Estamos namorando essa parceria com o Marcos Ferraz e a Escola de Redatores para registrar outros encontros especiais como este. Aguarde os novos Tempestade de Ideias."

Texto e vídeo copiados do portal http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=5176


Encontro com Antônio Torres from TV Cronopios on Vimeo.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Pausa para a poesia: Eduardo Galeano

Luís Pimentel - Quando o Chico Viola morreu

“Chora Estácio, Salgueiro e Mangueira/
Todo o Brasil emudeceu/
Chora o mundo inteiro/
O Chico Viola morreu/
Na voz do seu plangente violão/
Ele deixou seu coração/
Partiu, disse adeus, foi pro céu/
Foi fazer, foi fazer/
Companhia a Noel.”
(Chico Viola, de Wilson Batista e Nássara)


“Até a lua do Rio/
Num céu tranqüilo e vazio/
Não inspira mais amor/
O violão desafina/
Porque chora em cada esquina/
A falta do seu cantor...”
(Francisco Alves, de Herivelto Martins e David Nasser)

Ele morreu há 59 anos, no dia 27 de setembro. Foi considerado por muitos o maior cantor do Brasil de todos os tempos (para outros, este título pertencia a Orlando Silva). Foi considerado também um comprador de sambas, carregando a fama de exigir seu nome nos créditos da canção alheia para poder gravá-la. Consta que Cartola e Ismael Silva tiveram que ceder inúmeros sambas para ele, em troca da gravação e de alguns caraminguás para o conhaque. Mas Francisco Alves foi também um artista muito querido por seus pares e amigos. O que provam, por exemplo, as duas homenagens póstumas acima prestadas por compositores do prestígio de Wilson Batista, Nássara, Herivelto Martins e David Nasser. As opiniões se dividiam quando o assunto era o caráter do Chico Viola (pseudônimo com qual assinou algumas autorias), mas quanto a um tema não existia controvérsia: era o rei da voz, dono de um gogó admirável.
O maior cantor do Brasil (insisto: para alguns, João Gilberto entre eles, esse título sempre pertenceu a Orlando Silva) foi também o que mais gravou. Em 33 anos de carreira (1919-1952) colocou na praça 525 discos em 78 rotações. Foram 983 gravações que serviram para revelar os nomes de compositores como Ary Barroso, Cartola, Ismael Silva e Lamartine Babo, além de cantores como Mário Reis, Dalva de Oliveira e Carmem Miranda, que com ele dividiram o microfone.
Francisco de Moraes Alves nasceu no Rio de Janeiro, no século retrasado, dia 19 de agosto de 1898. Era filho de imigrantes portugueses e começou a trabalhar aos 18 anos de idade, em uma fábrica de chapéus. Ainda na juventude flertou com o teatro, fazendo parte da Companhia de Espetáculos João de Deus Martins Chaves. Descoberto pelo compositor Sinhô (José Barbosa da Silva, 1888-1930), em 1919 gravou três sambas dele que fizeram muito sucesso no carnaval do ano seguinte: O pé de anjo, Fala meu louro e Alivia estes olhos.
Uma coisa jamais se contestou na carreira de Chico Viola: a versatilidade. Colocou sua voz a serviço de quase todos os gêneros musicais. Gravou sambas, marchas, canções românticas, toadas, maxixes, paródias, hinos, o que caiu em suas mãos. Também deu seus pitacos como instrumentista, tendo feito alguns discos em dueto de violões com o craque do instrumento Rogério Guimarães.
Francisco Alves jamais esquentou banco nas gravadoras. Passou por praticamente todas elas, principalmente as grandes. Gravou na Odeon (242 discos, de 1927 a 1934), Parlophon (57 discos, de 1928 a 1931), R.C.A (48 discos, de 1934 a 1937), Odeon novamente (26 discos, de 1937 a 1939), Colúmbia (15 discos, de 1939 a 1941) e outras.
Reconhecido pelos brasileiros como o maior nome do rádio e dos estúdios de gravação durante toda a sua trajetória artística, Francisco Alves teve a carreira interrompida no auge do sucesso, em 24 de setembro de 1952, por um acidente de carro. O Buick de sua propriedade chocou-se com um caminhão, na Via Dutra, e o artista morreu na hora. O país parou para chorar, por vários dias, a perda do grande ídolo.
Por ter trabalhado tanto, Francisco Alves gravou quase tudo o que se ouviu em sua época. Canções de qualidade e outras que foram ao disco apenas para cumprir tabela com as gravadoras. Mas algumas gravações marcaram profundamente os seus admiradores. Chuá-Chuá, Não quero saber mais dela, A malandragem, Deixa essa mulher chorar, Nem é bom falar e O que será de mim? (“Se eu precisar algum dia/De ir pro batente/Não sei o que será/Pois vivo na malandragem/E vida melhor não há...”).

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Cineas Santos - Um tango para Desirée

A noite era um convite a ficar: clima ameno, música de excelente qualidade e um mar de gente querendo apenas divertir-se. Lá pelas tantas, Ivan Silva e Josué Costa atacaram de La Cumparsita, a matriz de todos os tangos. Pairou no ar a dramaticidade sensual que só o tango é capaz de produzir. Não resisti à tentação de provocar a plateia: Minhas irmãs e meus irmãos, o casal de bailarinos que fizer a melhor performance receberá um prêmio especial. As pessoas entreolharam-se, mas ninguém se arriscou. De repente, do meio da multidão, apareceu um rapaz muito magro, short apertadíssimo, mini-blusa, rosto maquiado e uma surrada estola carmim. Ensaiou alguns passos, mas nem chegou a dançar. Limitou-se a desfilar languidamente diante da plateia, um tanto contrafeita. Terminada a música, ninguém o aplaudiu ou vaiou. De pilhéria, chamei-o de “Estrela Solitária”, entreguei-lhe o “prêmio”, uma simples camiseta do festival, e não voltei a vê-lo naquela noite. Era a segunda noitada do I Festival de Sanfona de São Raimundo Nonato. Uma senhora distinta aproximou-se de mim e, como se falasse em nome do público, segredou-me: “Releve, professor, é apenas uma bicha maluca que não pode ver multidão sem querer aparecer”. Limitei-me a dizer: faz parte do show,minha senhora.

Dois dias depois, ao visitar o Parque Nacional da Serra da Capivara, voltei a encontrá-lo, ao meio-dia, num beco empoeirado de Coronel José Dias. Vestia a mesma roupa e a maquiagem borrada dava-lhe um ar de pierrô tresmalhado. Não respondeu ao cumprimento que lhe fiz. Limitou-se a esboçar um sorriso triste, quase um esgar. Decididamente, um estranho no ninho.

Duas semanas mais tarde, acesso o Portal SRN e me deparo com a manchete: “Homossexual é morto com requintes de crueldade em SRN”. Temi pela sorte da “Estrela Solitária”. A foto estampada no portal justificava o meu temor: era ela. Fiquei sabendo que se chamava Renato Tavares Piauilino, mas conhecido como Renata Desirée, natural de Coronel José Dias e incômoda presença nas ruas de São Raimundo Nonato. Foi brutalmente assassinado com dois tiros de escopeta, à queima-roupa, na noite do dia 7 de setembro, nos arredores da cidade. A polícia, para variar, ainda não tem pista do(s) assassino(s). Poucos dias antes de sair de cena, Renato encaminhou uma carta ao apresentador Gugu, queixando-se da discriminação que sofria e pedindo-lhe uma casa onde pudesse viver em paz. Pretendia também fazer uma cirurgia para mudar de sexo.

Até onde sei, Renato sofria de distúrbios mentais e, quando provocado, tornava-se agressivo. Agora, já não passa de um número a engordar as estatísticas negativas. Em curtíssimo espaço de tempo, o crime brutal deverá ser esquecido. Tem sido assim em casos semelhantes. Renato foi morto por ser diferente numa terra onde o preconceito, a intolerância e a violência tornam quase todos iguais.


segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Luís Pimentel - Conversa de homem pra homem


[Começando a semana no bom humor do velho Pimenta]

Conversa de homem para homem (1)

O pai chegou em casa com ar sisudo e começou aquele papo manjado:

– Filho, precisamos ter uma conversa de homem para homem.
– Neste caso, pai – disse o menino –, não acha melhor esperar eu crescer um pouquinho?
– Não. Tem que ser hoje, agora, já.
– Tá bem. Mas posso saber o que é que está pegando?
– Como assim, “pegando”?
– Onde foi que deu zebra?
– No seu boletim.
– “Demorou”.
– Como?
– Algo errado com o boletim?
– Tudo. Não viu as notas?
– O boletim veio endereçado a você, pai. É feio violar correspondência alheia.
– Mas as notas são suas. Baixíssimas!
– Olhando por que critérios?
– Do razoável, meu filho. Do bom senso, da coerência acadêmica, das exigências mercadológicas.
– Não tem nenhuma dessas cadeiras lá no meu colégio.
– Não seja debochado.
– Não esquenta, pai.
– Não “esquenta”, o quê?
– A cuca, a mufa, os neurônios.
– Vou tirar você do colégio.
– Sábias palavras.
– Vou arrumar um emprego para você. Oito horas por dia, de segunda a sábado.
– Sujou.
– Onde você quer trabalhar?
– Câmara dos Deputados, Senado Federal, um ministério qualquer. Um lugar onde eu possa estar sempre metido em falcatruas.
– Nem pense nisto, pelo menos enquanto eu for vivo!
– Tá vendo que existem coisas piores? Relaxa, velho. Assina o boletim.


Conversa de homem para homem (2)

O filho chamou o pai, queria ter uma conversa de homem para homem:

– Pai, já sei o que vou ser quando crescer.
– Ah, é? Que bom, meu filho. Quer dizer, então, que você já se decidiu?
– Já. Pensei bastante e tomei a minha decisão. E tenho certeza de que fiz a escolha acertada.
– Muito bem. Médico? Advogado? Arquiteto?
– Não, pai. Nada disto.
– Não? E vai fazer o quê, então?
– Vou ser ministro. Que nem você.
– Que é isso, menino? Enlouqueceu de vez? Perdeu o juízo?
– Puxa, pai. Ser ministro é tão importante. Eu tenho tanto orgulho de você.
– Desista! Você é meu único filho, não vou deixar que isto aconteça.
– Não estou entendendo.
– Nem precisa, mas desista dessa idéia. Você vai ter uma profissão, nem que para isto eu tenha que trabalhar.


sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A festa literária de Marechal Deodoro - AL



Na segunda Flimar (Festa Literária de Marechal Deodoro) aconteceu de tudo, inclusive nada, como foi a cantada e decantada palestra sobre Arnon de Mello, o pai do nosso grandioso estadista Fernando Collor de Mello, no segundo dia do evento: simplesmente os palestrantes não deram o ar de sua graça, para deleite do público. Melhor para o Coral Em Cantos, do Sinteal (Sindicato dos Trabalhadores de Educação em Alagoas) que pôde se apresentar dentro do horário previsto.


A abertura oficial da festa começou pelo inusitado: atraso de duas horas para se esperar que sua excelência, o prefeito, acabasse de inaugurar uma rua ali perto. Depois, devido ao avançado das horas, o justo cochilo do homenageado, Ledo Ivo, que não resistiu à monotonia da leitura acadêmica do conferencista. O auditório também não resistiu à erudição da fala e o cansaço manifesto dos ouvintes tornou-se em ronco coletivo explícito. 

Os dias subsequentes às palestras foram marcados pelo atraso fenomenal, algumas, em até uma hora. E como não bastasse isso, quando o prefeito queria marcar presença, o atraso se fazia maior, em até duas horas, levando o púbico à exaustão. Infelizmente, nas Alagoas, o provincianismo ainda reina como nos velhos tempos d’el-rey. Queriam até esvaziar o auditório para que se reservassem lugares a algumas eminências pardas do judiciário alagoano no show do ícone da poesia matuta Jessier Quirino. Como ia pegar mal porque a imprensa estava a postos, desistiram da ideia arrogante típica dos senhores de engenho, porém o público teve que esperar mais de uma hora pela presença do Sr. Prefeito. Não foi à toa que o filme “O Bem Amado” foi rodado nessa cidade. Sentimo-nos uns autênticos sucupiranos.

Tão sucupiranos que houve autor pernambucano lamentando não ter seu único livro dramatizado por um ator famoso. “Fiquei decepcionado quando vi que era um atorzinho pedindo pra dramatizar meu livro, e não um ator famoso”, disse o palestrante, esquecido de que um dramaturgo famoso não beberia da fonte da ralé insolente. 

Por outro lado, Jessier Quirino foi de um profissionalismo exemplar. Além de ter que esperar pacientemente pela presença do prefeito, faltou energia elétrica na hora de sua apresentação. Terminou o seu show à luz de candeeiro, sem reclamar ou demonstrar arrogância. 

Excelente a mediação de Maurício Melo Júnior, fazendo intervenções precisas e colocações inteligentes. Habituado a entrevistar personalidades literárias no seu programa “Leituras”, da TV Senado, sentiu-se entre amigos nas mesas que mediou.

A frustração maior ficou por conta dos fãs da Marina Colassanti. Apesar de o seu nome constar na programação oficial fazendo dobradinha com o marido, ela não deu o ar de sua graça e a plateia teve que se contentar em ouvir Afonso Romano em monofonia. Marina fora falar para o povo estrangeiro, segundo disse seu marido.

A cidade de Marechal Deodoro fica a menos de quarenta quilômetros de Maceió e foi a primeira capital das Alagoas nos tempos em que se chamava de Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul. Com um pouco mais de 45 mil habitantes e de considerável fluxo turístico, é uma cidade sem nenhuma infraestrutura hoteleira, escasso serviço de transporte e ausência de um boteco onde se possa ao menos se matar a fome com um churrasquinho de gato. Por causa disso, a tão badalada festa literária fica a desejar nos serviços periféricos, e os autores e o público participante são obrigados a se deslocar até a praia do Francês para se alimentar e dormir. Mas, se passar das dez horas da noite, tem que escolher um banco da praça para pernoitar, pois não há transporte funcionando depois desse horário. A cidade ainda vive nos tempos da diligência.



Apesar de a festa ter sido ímpar nas atrações, o público local não prestigiou, talvez intimidado com a presença de tantas estrelas da literatura brasileira e até mesmo internacional, o que não justifica a total ausência das outras secretarias do município, principalmente a da Educação. O prefeito só apareceu para discursar e no show de Jessier Quirino. A Universidade Federal de Alagoas, que no próximo mês organiza a 5ª Bienal do Livro, e a classe autoral alagoana, afora os envolvidos no evento ou algumas raras exceções, lá não pisaram os pés ou se fizeram representar, sabe lá Deus os motivos. É certo que há momentos que a vaidade fala mais alto e o ego grita lá dentro:

– Eu só me basto! 

ABERTURA E PALESTRAS




OS BASTIDORES DA 2ª FLIMAR

NO "RESTAURANTE" DE D. EDNA:


CAUSOS DO ALMOÇO:

– Alô, é seu Afonso Romano?
– É sim.
– Aqui é o motorista. Vim pegar o senhor.
– Ledo Ivo vai conosco?
– Não conheço nenhum Ledo Ivo. Tenho ordens de levar apenas o senhor e dona Mariza.
– Marina, você quer dizer, né?
– Não sei. Sou só o motorista.
– Então me dê um tempo pra me arrumar.
– Como assim?! O senhor ainda não está pronto?! Vê se não demora!

Afonso Romano se aprontou às pressas pensando na falta de profissionalismo do motorista. Diria algumas verdades aos organizadores da festa. Ao chegar no saguão do hotel descobriu que tudo não passara de um trote do Ignácio de Loyola, que o aguardava no carro.


Domingo de manhã, Ignácio de Loyola, Antonio Torres, Luís Pimentel e Sérgio Sá foram conhecer o Mirante da Sereia. Tempo suficiente para tomarem uma cerveja enquanto refreavam a vontade de cair na água represada, quase uma piscina. Na saída, Ignácio deu uma gorjeta generosa ao menino guardador de automóvel. O guri, acostumado a só receber moedas ou muito obrigado, ou nem isso, ergueu as mãos para o céu e exclamou extasiado:
– Muito obrigado, Santo Ignácio de Loyola!
– Ô, garoto, você conhece o Ignácio? – perguntei.
– Claro que conheço! Minha mãe toda noite manda a gente rezar pra ele.

PIMENTEL EM MACEIÓ


O JANTAR NO FRANCÊS

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Cineas Santos - As descobertas do outro Colombo

De Colombo

Aos 12 anos de idade, na cidade de Sobral (CE), o garoto Francisco Diogo da Silva, por influência da mãe, decidiu tornar-se músico. O único instrumento disponível na casa era um banjo. Sem outra opção, fez-se banjoísta. Aos 14, trocou o banjo pela manola, “uma espécie de cavaquinho italiano”. Em curto espaço de tempo, passou a acompanhar os sanfoneiros de sua terra pelos sertões do Ceará. “Por medo de ser convocado para a guerra, casei-me aos 16 anos; aos 17, já era pai. Aí, tive de largar os estudos e cair na noite para sustentar a família”, afirma sorrindo o mestre Colombo, um dos músicos mais completos que já vi. Antes que me perguntem onde o velho instrumentista entra nessa história, concedo-lhe a palavra: “Quando fui servir o exército, eu já era guitarrista e usava uma cabeleira de roqueiro. Foi aí que o sargento me viu e gritou: ‘Tu aí, com cara de Cristóvão Colombo, como é o teu nome?’ A partir daquele momento, passei a me chamar Colombo. Hoje, já nem me lembro se um dia fui Francisco”. Coisas da vida.

Em 1958, Colombo veio a Teresina pela primeira vez e se fez amigo da fina flor da boemia teresinense: Totó Barbosa, Ângelo Campelo, Paulo Vieira e Clemílton Silva, entre outros. No início dos anos 60, já era um dos músicos mais requisitados de Fortaleza. Não por acaso, integrava o conjunto do saxofonista Ivanildo do Sax. Em 65, mudou-se de mala e cuia para Teresina, contratado pelo proprietário da Boite Coelho. Na companhia de Barbosa, Orion, Toinho e outras feras, integrou o conjunto Barbosa Show Bossa, a banda que tocava para os bem-nascidos nas “tertúlias” do Clube dos Diários. Depois, participou do conjunto Sambrasa, um dos grupos mais famosos de Teresina. Nesse ínterim, foi contratado para tocar surdo na Banda 16 de Agosto, da Prefeitura de Teresina. Um dia, o maestro reclamou a ausência de um trompista para dar harmonia à banda. Colombo não se fez de rogado: pegou uma trompa velha e, seis meses depois, o problema estava resolvido. Sua trajetória tem sido assim: toca o instrumento que lhe cai às mãos. No grupo Trombone & Cia, por exemplo, passou a tocar bandolim como se nunca tivesse feito outra coisa na vida. O que mais impressiona nesse multiinstrumentista é a simplicidade. Colombo não se exibe para a plateia; põe sua competência a serviço da música.

Em duas oportunidades, tive a satisfação de homenageá-lo. A última delas, no dia 19 do mês em curso, na Oficina da Palavra. Com a participação de um punhado de músicos da melhor qualidade (José Willians, Josué Costa, Janete, Rosinha Amorim, Enaldo, Aílton, entre outros), fizemos um show memorável. Colombo, cuja idade não revela, comportou-se como um menino arteiro na comemoração do próprio aniversário: tocou e divertiu-se como nunca. Se me pedissem uma síntese da trajetória de Colombo, eu diria: um cidadão que dedicou a vida inteira a produzir beleza. Convenhamos que não é pouco.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

QUE LÍNGUA NÓS FALAMOS?

No golpe de Estado aplicado aos portugueses pelo Primeiro-ministro Antonio Oliveira Salazar, em 1933, os paraquedistas da Força Aérea Portuguesa, quando se jogavam no vazio, em vez de contar até dez para abrir os paraquedas, eram obrigados a gritar: “Viva Salazar!” e depois puxar a cordinha. O treinamento seguia seu curso normal quando um deles desceu em queda livre e se estatelou no chão, voando pedaços do corpo para todos os lados. Houve uma correria geral para ver quem era o infeliz. Alguém o identificou:

– Coitado, era o soldado Gaguinho!

Nos negros anos em que a Ditadura brasileira promovia uma intensa caça aos intelectuais de esquerda, ou que assim presumisse, o escritor Antônio Torres se exilou voluntariamente em Portugal nos estertores do salazarismo. As colônias portuguesas viviam em ebulição de independência e a opinião pública internacional, traduzida pela ONU, condenava Salazar por manter políticas colonizadoras aos moldes da idade medieval. Em 1968, Salazar teve um derrame e foi substituído por Marcelo Caetano, destituído do poder em abril de 1974 por forte pressão popular, que ficou conhecida como “A Revolução dos Cravos”.

Jornalista e publicitário, Antônio Torres aproveitou a onda histórica para escrever sobre o salazarismo e assim nasceu o seu livro “Os Homens dos Pés Redondos”, que teve um grande sucesso editorial e boa repercussão entre os críticos, que viam nele um grande escritor pós-moderno, abalizado pelo best-seller “Um Cão Uivando Para a Lua”, lançado anteriormente. Por ocasião do lançamento do livro, em Salvador, eu quis saber o porquê dos “pés redondos”:

–  O salazarismo era um regime que andava em círculo, não indo a lugar nenhum, por isso “os pés redondos”.
– Só se for lá em Portugal – disse-lhe eu – porque, aqui, quem tem os pés redondos são os burros.  

Ele caiu em si. Em Portugal não era ofensa, mas aqui podia ser. Porém não havia mais jeito de refazer o título.

Que língua nós falamos, afinal? Quando chego à Bahia, minha terra natal, preciso de um intérprete para entender o meu povo. Certa vez, estava conversando com o meu sobrinho adolescente, na sacada do apartamento da minha irmã, passou um rapazola na rua e os dois entabularam conversa: “E aí, porra, como é que foi a porra?”, perguntou o meu sobrinho. O amigo respondeu: “A porra foi da porra, porra!” Não me contive e soltei uma sonora “porra” de estupefação.

O meu cunhado, dentro de casa, desistiu de satisfazer o desejo de minha irmã sob o claro e lógico argumento de que “a coisa não coisa, se ele não coisar, como ele não podia coisar naquele momento, a coisa não coisa”. 

E a coisa que não coisava era enfiar um prego na parede para pendurar um quadro.

Pois bem, vocês acham que Guimarães Rosas tem uma linguagem complicada, né? Então, vejam se entendem o cotidiano do linguajar baiano:

“Vamos bater uma caixa que hoje vou arriar o balaio e bater coxa sem cerca-lourenço. Se assunte que estou azuretado e badogueira comigo é caixão e vela, meu rei, mesmo tendo o balaio grande, corpo cevado e fatiotada feito penteadeira de puta. Não vou ficar cozinhando o galo em banho-maria com minha moral de jegue, pois tenho que paletar para a casa da porra para pegar um buzú. Se cair um cacau, no caminho, paro num cacete armado para não molhar meu roscófi nem meu arromba-peito; aproveito para comer água bruta, ceva com folha podre, acompanhado de chupa-molho de currute, como se tivesse solto na buraqueira, mesmo sem uma banda de conto para sustar a dolorosa, e se aparecer algum tirado a porreta tirando filipeta, dou uma dura, mando o sacrista se campar e toco o meu bonde pra lapinha, malmente descambixado e descalqueado, para encher o talo em outra visgueira, onde ninguém possa jogar as cajás pra cima de muá e eu possa comer rama até chamar Jesus de Genésio e cachorro de cacho. É taca, meu branco!” (tradução do baianês no rodapé)

Saio da Bahia diretamente para Maceió, capital das Alagoas. Um locutor esportivo conversa com o repórter de pista sobre uma confusão em campo. O repórter esclarece os ouvintes, empolgado, dizendo que “está havendo o maior “cu-de-boi” na área do CRB”. O locutor chamou a atenção do repórter para o palavreado empregado:

–  Olha o Português, Genésio!
– O Português vai entrar no lugar de quem, Val Rodrigues? – perguntou o repórter.

Há certas regiões do Brasil em que a gente pensa estar em outro país, de tão difícil que é a compreensão da linguagem oral, cuja corruptela causa verdadeiro estrago na chamada Língua Culta, para desespero e cólera dos puristas gramaticais, que querem que 170 milhões de habitantes falem a Última Flor do Lácio como se vivessem em Coimbra, sem considerar suas raízes étnicas, culturais, sociais e econômicas. Há gente “inocente” que pensa que a língua que se fala no Oiapoque é a mesma falada no Chuí, embora as duas regiões estejam regidas pela mesma Gramática.

E a Figura de Linguagem, inventada para dizer as palavras diferente da sua construção sintática, que povoa e enriquece a  nossa Língua, sendo que, no interior do Brasil, o povo usa e abusa de suas expressões, para gáudio dos defensores de um país livre do julgo linguístico de Portugal.

Dois matutos conversavam extasiados com a beleza de uma igreja. Um deles exclamou:

– Que igreja linda dos infernos!
– Quer ver o diabo? entre nela!      

 “O defeito está na vista” é uma antífrase para ressaltar a beleza de algo, nunca para indicar males ou defeitos ópticos. E foi baseado nessa figura de linguagem que José de Caturina comprou o alazão do seu compadre João das Mulas, negociante de cavalos, jegues e... mulas. Ao analisar o animal como qualquer comprador de cavalos faz, o seu compadre lhe disse que o defeito estava na vista. Realmente se tratava de um cavalo muito bonito e faceiro, com cara de trotador. Sem pestanejar, selou negócio e cavalo e no outro dia estava de volta, puxando o cavalo pelo cabresto, cara enfurecida, querendo desfazer a compra, alegando que fora enganado pelo compadre que lhe vendeu um cavalo cego de um olho.

– Não vou devolver seu dinheiro não! – esbravejou João das Mulas – Eu lhe avisei que o defeito estava na vista e você levou assim mesmo! Você não comprou enganado, portanto, não aceito devolução!
           
Quem gosta de ouvir as músicas de Elomar sabe que no encarte dos seus discos acompanha um glossário. Sem ele, algumas letras são incompreensíveis.

Nossos linguistas e gramáticos estão com razão quando brigam por desvincular nosso idioma do de Portugal. Não tem nada a ver. Persistir na teimosia de que ainda somos colônia d’além-mar, é como dar um paraquedas a um gago e mandar pular gritando vivas a El-rey.

Tradução do baianês: “Vamos conversar que hoje vou abrir o jogo e falar sem rodeios. Preste atenção que estou zangado e mulher feia comigo é assunto passado, meu amigo, mesmo tendo a bunda grande, corpo gordo, bem vestida e enfeitada. Não vou ficar enrolando com falsa moral, pois tenho que andar para longe para pegar um ônibus. Se chover, no caminho, paro num boteco para não molhar meu relógio nem meu cigarro; aproveito para beber uma cerveja com cachaça, acompanhado de guisado de costela de boi meio cru, como se não tivesse compromisso, mesmo sem dinheiro para pagar a conta, e se aparecer algum metido tirado a engraçadinho, corto conversa, mando o malandro pra porra e sigo em frente, desanimado e sem planos, para encher a cara de cachaça em outro bar, onde ninguém possa botar pra quebrar em cima de mim e eu possa beber até me embebedar. É fogo, meu amigo!”