quarta-feira, 16 de março de 2011

Uma Noite pra lá de Bagdá



O Coronel fora chamado a Brasília para uma reunião extraordinária com o Ministro do Exército. Havia a possibilidade de ele assumir uma diretoria em uma estatal, recompensa pelos mais de trinta anos dedicados ao verde-oliva. Sua dileta esposa arrumou as malas e o acompanhou até o Planalto Central. Enquanto ele tratava de negócios com o Ministro, ela colocaria as fofocas em dia com a amiga virtual Emilly Sepol. Melhor oportunidade não havia para um tête-à-tête.

Na primeira noite do Coronel e a esposa em Brasília, Emilly Sepol saiu mais cedo da universidade onde assinava ponto e passou no hotel para pegar o casal para uma girada pelos bares da cidade, uma das duas coisas interessantes que existem no Distrito Federal. A outra é a passagem de volta.

O Coronel declinou o convite e preferiu ficar no hotel. Estava cansado da viagem e teria um longo dia pela frente, na manhã seguinte. Ademais, não queria beber naquela noite para não falar com o Ministro exalando bafo de leão.

As duas sacerdotisas de Dionísio, embaladas pela emoção do encontro, chaparam todas e mais algumas, sem dar bolas para o azar. Falaram dos filhos, dos maridos, das sogras, dos vizinhos barulhentos e até do mensalão do DEM. Quando a madrugada se anunciava, resolveram voltar para casa, uma mais bêbada do que a outra.

– Laurinha, cuidado que ali na frente tem um baita de um buraco! (hic!) – alertou Emilly Sepol, conhecedora dos mínimos detalhes da rua de Brasília.
– Cuidado o quê!? (hic!) Quem está dirigindo é você!

Caíram na gargalhada. Cantaram “te amo, Brasília” e na última estrofe Emilly Sepol falou:

– Xiiiii! Tou morrendo de vontade de fazer xixi!
– Eu também!

Emilly Sepol diminuiu a velocidade do carro, procurando um local deserto para desafogar a bexiga. Avistou o cemitério. Estacionou atravessado e desceu correndo para regar o terreno dos mortos. Laurinha correu atrás. Era uma questão de vida ou morte. Do jeito que despejaram a bica, haveria uma farra no Além. Puro malte e cachaça mineira. Das boas.

Aliviada a bexiga, uma se lembrou de que não tinha nada para se enxugar. Pegou a calcinha, se enxugou e jogou fora. A outra resolveu tatear no escuro até encontrar a fita de uma coroa de flores e se secou. Depois as duas saíram abraçadas e cantando Cartola, felizes da vida: “... solte o seu som da madeira / eu você e a companheira / à madrugada iremos pra caaaasa / cantandoooo.”

No dia seguinte, antes da conversa com o Ministro do Exército, o Coronel passou na casa da Emilly Sepol,. Chamou o marido a um canto e falou baixinho para que as crianças não ouvissem:

– Meu camarada, nós temos que ficar de olho nessas duas. Andaram aprontando por aí. A Laurinha chegou de madrugada, completamente bêbada, e sem calcinha. Não faz a mínima ideia de onde deixou ou por que tirou.

– Coronel, se foi só isso você teve sorte! – retrucou o marido brasiliense passando a mão na cabeça – A minha mulher também chegou caindo de bêbada e com uma faixa presa na bunda, escrita assim: “saudades eternas”. Sabe-se lá o que essas duas andaram aprontando ontem à noite! Sabe-se, lá, Coronel!



segunda-feira, 14 de março de 2011

Moacyr Scliar - Meu Querido Antônio Torres


Texto publicado no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 9/11/2002, por ocasião da Feira do Livro daquele ano. Por ironia do destino, hoje, o escritor Antonio Torres disputa a vaga de Scliar na Academia Brasileira de Letras. Torcemos por você, bróder!


Meu Querido Antônio Torres

Em Junco (Bahia), onde nasceu e se criou, Antônio Torres escrevia cartas para os analfabetos moradores da região. Uma ocupação que condicionou, e de forma mais que simbólica, seu destino: escrevendo, Torres se tornou um grande escritor, reconhecido no país e no exterior. Mas é, ao mesmo tempo, um escritor que escreve por aqueles que não podem ou não sabem fazê-lo. É um autor popular, no mais legítimo sentido da palavra. Não é de admirar que obras como Os Homens dos Pés Redondos (1973), Essa Terra (1976) – traduzido pelo menos em 15 idiomas – Carta ao Bispo (1979), Adeus, Velho (1981), Um Táxi para Viena d’Áustria (1991), Meu Querido Canibal (2000) tenham feito sucesso tanto de público quanto de crítica.

Deste sucesso, posso dar um testemunho pessoal. Sou amigo de Torres há muitos anos. Pertencemos à mesma geração literária, a geração que começou a publicar em fins dos anos 60 e começo dos 70, ou seja, no auge da ditadura. Naquela época escrever era uma forma de resistência. Resistência a que Torres engajou-se de maneira admirável. Junto com Ignácio de Loyola Brandão e João Antônio, ele percorreu o país, falando para jovens nos mais remotos lugares. E foi várias vezes para o Exterior.

Nessas viagens, não raro nos encontramos. Era, e é, ocasião para um bate-papo que se continua através do tempo, uma conversa que sempre retomamos. Para mim, com enorme prazer. É impossível não gostar de Torres. Ele é, pessoalmente, o mesmo autor amável e emotivo que encontramos nas páginas de seus livros. É um homem profundamente generoso. E profundamente brasileiro. As platéias estrangeiras sempre o escutam com atenção porque sabem que, através de sua voz, fala o Brasil mais autêntico, o Brasil que também está todo em sua obra. Que também prima pela originalidade. Quem chamaria um canibal de “meu querido”, senão Antônio Torres?

Agora ele está, como já fez muitas vezes, nos visitando*. É uma oportunidade de conhecê-lo, e de conhecer as suas obras. Vale a pena. Nas páginas de Antônio Torres o Brasil escreve suas cartas.     

*Por ocasião da Feira do Livro de Porto Alegre de 2002, quando o escritor gaúcho Moacyr Scliar foi o mediador de uma palestra do seu colega baiano, realizada no Clube do Comércio.



sábado, 12 de março de 2011

Edna Lopes - Mulher objeto de Cama e Mesa


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.  Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

                         Com licença poética – Adélia Prado
 

            Durante esta semana e ao longo do mês de março vamos ouvir e ler muitas referencias e homenagens ao DIA DA MULHER. Embora reconheça um esforço genuíno de muitos movimentos para qualificar o debate e todos os avanços no campo profissional e até político, os chavões e clichês de todo tipo são, nas chamadas da mídia para vender mais qualquer produto, para “a beleza” e o “charme” de todas nós.


        Reconheço mais ainda que o Dia da Mulher caindo no período de carnaval qualquer reflexão se esvai mas eu me pergunto quantas de nós realmente têm a consciência e a responsabilidade de saber se valorizar e se respeitar em todos os papéis que desempenhemos.

        Um dos problemas que enfrentamos é da construção da identidade, da personalidade. Muitas de nós se contentam apenas em ser a sombra do parceiro e, no lado extremo, outras querem ser a sombra, fazem de tudo para que o companheiro sufoque com sua atenção, seus cuidados e seus ciúmes. Também há uma ala que quer ser famosa, bonita e gostosa a qualquer preço.

        Mas o que estamos construindo no imaginário do sexo oposto, com nossas atitudes? O quanto nos valorizamos, para sermos igualmente valorizadas, respeitadas?

       Enquanto elaborava este pensamento, me veio uma lembrança emblemática: quatro lindas meninas bem da geração “posso te conhecer?” se arrumando para uma noitada num desses mega shows de axé music, forró eletrônico e afins.

        Minha curiosidade vira-lata, sem nenhum subterfúgio, ficou observando-as se vestir com se fossem a praia. Tops que mal encobriam os seios, micro shorts e micro saias bem abaixo do umbigo, maquiagem pesadíssima nos olhos e saltos altíssimos.Todas lindas, com o frescor da juventude tornando-as mais lindas ainda porém, fiquei pensando que pareciam se arrumar para um baile de carnaval, fantasiadas de piriguetes*, ou ainda de peças de carne num açougue, bem a vista do freguês... Mas, longe de mim engrossar o cordão dos intolerantes com micro vestidos e trajes desse tipo... 

        Lembrei que, pela idade, todas elas deviam ter imitado dançado e se vestido como as louras do Tcham, a Tiazinha... Meninas erotizadas na infância com a aquiescência de mães e tias sem noção, para não utilizar adjetivos menos nobres.

         Imaginei (só imaginei) os olhares dos rapazes para aquele quarteto... Uma geração que privilegia a aparência, os desejos, as necessidades afloram pela aparência mesmo, mas o que ficará para além de olhar a superfície?

          As conversas no Day After de um show assim é que são esclarecedoras: meninos e meninas comentam com quantos ficaram, quantos pegaram, quantos beijaram sem trocar uma palavra sequer. Rapazes se vangloriam  que conheceram “ biblicamente”  algumas meninas e até  as recomendam aos amigos! 

        Ir a um point da moçada hoje é se deparar com cenas deploráveis. Meninas mal saídas da puberdade bebendo feito esponja, perfeitamente adaptadas, aguardando ou investindo em relações fortuitas, meninos organizando rankings de Pegação... Mulheres profundamente infelizes de saírem na noite e não arranjarem alguém para “pegar”...

        Mulheres tratadas/se deixando tratar como coisa, objeto descartável. Muitas delas desvalorizando-se por suas próprias atitudes, vidas vazias de sentido e significado. Daqui a pouco gastas pelo tempo e ocas, mendigando afeto, ás vezes se deixando explorar pelo primeiro cafajeste que lhes estalar os dedos, por puro medo da solidão.

       Sinceramente podem me chamar de ultrapassada, cafona, anacrônica e tudo o que mais traduzir esse meu estranhamento com esse comportamento da modernidade mas não abro mão de dizer que, em oposição a tudo isso, mulher que se valoriza e se faz respeitar jamais será mulher objeto de cama e mesa ou mulher objeto de “pegação”.


*Piriguete - Significado:
 
Piriguete, também denominada Piri, é uma gíria brasileira que designa uma mulher, normalmente jovem, de acesso fácil e/ou que tem múltiplos parceiros e tem uma preocupação excessiva em exibir os nuances do seu corpo. Geralmente anda em grupos com outras moças que compartilhem os mesmos valores. O termo teve origem em Salvador, a capital baiana, mas se espalhou pelo resto do Brasil em forma de músicas de pagode como por exemplo "As piriguetes chegaram", interpretada pelo grupo Pagod'Art. http://br.answers.yahoo.com/question/index?

Sugestão de leitura:

O livro Mulher, objeto de cama e mesa é uma publicação da Vozes de 1974, da jornalista Heloneida Studart composta de textos concisos, geralmente frases bem chocantes, em forma de colagens, tornou-se um sucesso editorial ao longo dos anos e, atualmente, já está na 27ª edição com quase 300 mil exemplares vendidos.A escritora se propunha a falar da condição feminina, do seu corpo, de maneira tão incisiva e sem muitos rodeios e até insultava as mulheres para que repensassem as suas vidas além do universo doméstico e pudessem construir a sua própria trajetória além do espaço doméstico.
Adaptado por mim do site http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104

Um “Pedacinho” do livro:

Em 1970 voltei ao jornalismo, indo ser redatora de uma revista feminina. Em minha mesa, estava a pauta dos assuntos a serem editados:

como prender um homem para toda a vida;
a melhor maneira de aproveitar os vestidos do ano passado,

além do teste:
você se considera bonita?
 
Enquanto isso, os norte-americanos estavam remetendo outro Apolo à lua; os soviéticos enviavam uma sonda a Marte; dois cientistas italianos pesquisavam a possibilidade de criar bebês em provetas; o tevecassete modificava o papel da televisão nas sociedades de consumo. Sobre tudo isso, nem uma palavra na revista feminina. O tema proposto às mulheres era o de sempre:

como prender o marido
para toda a vida e quais
as 10 melhores maneiras de conquistar
um homem.


Quem pode censurá-las se elas parecem retardadas mentais?


quinta-feira, 10 de março de 2011

Homens, uni-vos!

O meu amigo Chuchu agia em consonância com o nome, sem se importar com o que pensavam os seus vizinhos, inclusive eu que, vez ou outra, cogitava lhe chamar a atenção para o fato, porém o mesmo fazia questão de viver sob a coleira da mulher. Ela era o fator determinante de sua personalidade e assim ele viveu (ou pensou que viveu) até o dia em que ela , cansada de tanta submissão, decidiu ser dominada por um homem de verdade: arrumou as malas e fugiu com o pé de pano, deixando Chuchu com o ônus da desonra, além de ser objeto principal dos comentários jocosos da vizinhança: soube-se, mais tarde, que o tinhoso Ricardão era uma amiga do casal.

– Ele não era mole só nas atitudes. Ser corno de mulher é a pior coisa que pode acontecer a um homem – diziam as más e também boas línguas quando ele passava, cabisbaixo, soturno, como a carregar todo o peso do mundo nas costas.

Essa ocorrência data de trinta anos atrás e Chuchu morreu ano passado sem se aventurar em novo casamento. A decepção fora tanta que seria compreensível se tivesse virado a casaca também, mas como já estava cheio de cabelos brancos, precisaria de muita grana para poder arranjar um bofe de bons bofes.

O que aconteceu com ele foi só um exemplo dentre milhares, e por isso devemos colocar nossas barbas de molho. Mulher bonita, boa e liberal faz o homem gemer sem sentir dor e, por causa desse axioma irrefutável, é a preferida nas cantadas e investidas de umas e outras nos bailes e bares da vida, independente de serem solteiras, viúvas, casadas ou que costuram para fora. Ficam na espreita feito caçador à espera da caça, aguardando o momento oportuno para darem o bote. São atenciosas, doces, melosos, e dizem ter a solução para todos os problemas da vida.

Nós, homens, precisamos reivindicar a criação de vários dias do homem ma-chô-chô, com direito a feriado nacional, divulgação na imprensa internacional e caminhada mais barulhenta e concorrida do que a parada gay. Lutemos pelo orgasmo múltiplo, livre, e distribuição gratuita de Viagra nos postos de saúde para que as mulheres se sintam incentivadas a escrever loas ao nosso dia, listando e enaltecendo nossas qualidades. O Governo deverá criar cotas para o Homem com agá maiúsculo nas universidades federais. E, finalmente, quando um casal hétero for barrado numa boate GLS, a casa deve ser fechada e os responsáveis processados por discriminar a minoria.

Fiquemos antenados porque a concorrência é acirrada e desleal, principalmente das mulheres com excesso de testosterona. Além de elas conhecerem melhor a alma feminina, pois, querendo ou não nasceram com uma, frequentam o mesmo banheiro do boteco, onde se desnudam sem o menor pudor e falam de suas intimidades em cumplicidade de amantes, embora a candidata a sandaliazinha não tenha malícia em suas ações e atenções, até então, inocentes, tal qual Chapeuzinho Vermelho sendo conduzida (e induzida) pelo lobo mau.

Portanto, tratemo-las com deferência, não só no dia internacional da mulher, mas nos trezentos e sessenta e quatro dias, seis horas e cinquenta segundos seguintes, sem esmorecer, porém. Como dizia o camarada Che: “Hay que endurecer sin perder la ternura jamás”. Quando a sua mulher lhe chamar para lavar os pratos, grite bem abusado para que seus amigos e a vizinhança saibam quem é que fala mais alto na sua casa:

– Já vou, meu bem!



quarta-feira, 9 de março de 2011

Luís Pimentel - Duas histórias de carnaval

1.
Foi num Carnaval que passou

O folião chegou no bar Bip-Bip, em Copacabana, e puxou uma cadeira. Arrasado, depois de “três dias de folia e brincadeira” e de se esbaldar no desfile do rancho Flor do Sereno, despejou os cotovelos sobre a mesa e grunhiu:
 – Uma cerveja, estupidamente gelada.
Alfredo, dono do estabelecimento, conhecido e aplaudido pelo mau humor, grunhiu mais alto:
– Só tem quente.
– Serve – gemeu o folião, caindo imediatamente num pranto de derrubar encostas. Tão sincero que até o Alfredo se comoveu:
– Que foi, querido?
Acarinhado, o sujeito abriu o verbo:
– Você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma mulher, e depois encontrar esse amor, meu senhor, nos braços de um motorista de ônibus?
Corno em fim de festa é comum, mas plagiando Lupicínio Rodrigues, não é a toda hora que se encontra.
Alfredo tentou ajudar:
– Qual é a linha?
– Nenhuma. Piranha da pior espécie.
– Estou falando do Ricardão. Qual é a linha que ele pilota?
– 571, Glória-Leblon, via Jóquei.
O comerciante enxugou uma lágrima discreta:
– É duro mesmo. Sei o que você está passando.
Começando a se acostumar com o chifre, o amigo recente se animou:
– Você também já levou bola nas costas?
E o Alfredo, olhar distante, pôs mais uma dose de maldade no alfinete de pontinha fina:
– Só levei bola nas costas nos meus tempos de médio-volante do Bangu. Agora, se pelo menos a vadia tivesse escolhido um motorista do 572, que é via Copacabana...


2.
Paixão na avenida

Saio do Sambódromo na madrugada de terça-feira, depois de ver o desfile da última escola de samba da segunda, e me dirijo à estação do Metrô na Praça Onze. Na fila dos bilhetes, o folião me aborda, lata de cerveja na mão e cigarrinho apagado no canto da boca:
– Tu conheces a Doralice?
– Só a do samba: “Doralice, eu bem que te disse, que amar é tolice, é bobagem, é ilusão”.
– Falo sério, meu chapa. Doralice parece mulata do Lan, tu manja? Sorriso lindo, todos os dentes na boca, peitinhos de amora, coxas de italiana, balaio grande...
Estava musicalmente inspirado, atropelei novamente:
“Mexia um balaio grande, muito mais macio que o boto cor-de-rosa do Custeau”.
– E como é que tu sabes?
– Isso é de outro samba. Fala mais de Doralice.
– Conheci domingo, no desfile da Mangueira.
– Como diria o grande Wilson das Neves, “ô, sorte!”.
– E perdi ontem, no embalo da Mocidade.
Adoro essas histórias, desde menino. Vivia pedindo para minha mãe recontar o drama de um corno amigo, que se ajoelhou diante da infiel, aos prantos: “Volta, amor. E traz quem tu quiser contigo”. Quis saber como é que foi:
– Como ganhei ou como perdi?
– As duas. O importante é competir.
O folião não regateou:
– Ganhei de um sambista desatento, que marcou bobeira. E perdi para uma loura de cinema, que encostou no meu patrimônio, como quem não quer nada, e prometeu vaga de rainha de bateria pro ano que vem.
– E Doralice?
– Foi. A essa altura, já deve estar ensaiando com a louraça.


quinta-feira, 3 de março de 2011

Cineas Santos - Entrudos e Bandeiras

Não lembro com exatidão quando a palavra carnaval incorporou-se ao meu magro universo vocabular. Lembro apenas que, por muito tempo, para mim, carnaval não passava de sinônimo de pecado, “pecado mortal”, para ser mais exato. É que os padres espanhóis (alguns franquistas) que me catequizaram eram extremamente severos: “Uma festa que celebra os prazeres da carne só pode ser a porta de entrada para o reino das trevas”, bradavam eles em intermináveis sermões antes do chamado “tríduo momesco”. Um deles – baixinho, gordinho – descrevia o tal reino com uma riqueza de detalhes de matar de inveja o velho Dante. Sempre suspeitei que o tal padreco conhecesse o lugar. Mas isso já é outra história. O certo é que, um pouco por temor e um bocado por timidez, procurei manter prudente distância do portal do inferno.

Eis que, no inicio da década de sessenta, apareceram na terrinha (S. R. Nonato) três rapazes que estudavam na capital. Alegres, extrovertidos, em pouco tempo, conquistaram a cidade inteira. Foram eles que me convenceram a participar de uma matinê numa terça-feira de carnaval. Por falta de algo melhor, lancei mão de um lenço vermelho, lambuzei a cara com carvão de fundo de panela e, adequadamente fantasiado de otário, caí na gandaia. À época, (não sei se devo confessar) eu já andava perdidamente apaixonado por uma fulaninha que borboleteava pelos céus de minha vida. Com um pouco de sorte, eu poderia vê-la de perto, o que de fato aconteceria.
Embalado pelos sons das marchinhas, esqueci a advertência dos padres e comecei a acreditar que valia a pena entrar no reino das trevas por uma porta tão agradável. Lá pelas tantas, um dos novos amigos me passou um lenço embebido de lança-perfume, que eu não conhecia, e me mandou aspirar. Peguei pesado e, literalmente, apaguei. Quando voltei à tona, todos riam de mim, e a fulaninha tinha-se escafedido (é este o verso) com um garoto sarará, que brincava fantasiado de Zorro. Um mês depois, o tal sararazinho foi encontrado morto, mas juro que não tive nada a ver com o fato.

Pierrô desconsolado, declarei guerra ao carnaval, aos entorpecentes e, principalmente, aos mascarados em geral. A partir daquele dia, sempre que alguém fala de folia, saco da memória os versos: “Tire o seu sorriso do caminho, / que eu quero passar com a minha dor” e desapareço na penumbra. Assim tem sido.

Na semana passada, estava eu banzando em local sossegado, quando me aparece o Zé Elias Arêa Leão, com aquela cara alegre de menino velho que teima em não crescer. De supetão, me pergunta: “Como era mesmo a roupa do Pero Vaz de Caminha?” Não me contive: “Qual é, Zé Elias?! Eu joguei futebol foi com Tomé de Sousa; do Caminha só conheço a Carta, ou melhor aquela parte da Carta que fala das “vergonhas saradinhas” das índias brasileiras”. Gargalhada geral.

Na véspera do carnaval, o Elias me procura para exibir a indumentária do Caminha, devidamente recriada por Joselito, com direito a mangas bufantes e tudo mais. Alegre como um escafandrista que acabara de encontrar a taça do rei Tule, Zé Elias aquecia as turbinas para desfilar na avenida, travestido, digo, fantasiado de escrivão-mor da Esquadra de Cabral. Ao vê-lo partir, assobiando o hit “Erguei as mãos”, do Pe. Marcelo Rossi, não pude deixar de sentir uma pontinha de inveja. Para disfarçar, estilei veneno: esse aí, com certeza, nunca perdeu a namorada no carnaval.


domingo, 27 de fevereiro de 2011

Por que não paras, relógio?



            E se o Tempo não tivesse existido e as horas fossem uma montanha gigantesca de relógios quebrados e de ponteiros empilhados pela Eternidade? Com as horas paradas, ainda seríamos trogloditas e estaríamos poupados de certos vexames televisivos, tipo BBB, Fama, Gugu e Ratinho.

            A Idade Moderna surgiu do lampejo visionário dos alquimistas que procuravam a luz no fim do túnel para iluminar a escuridão cavernosa da Era Medieval. Descobriram o querosene de avião e ficaram sem saber o que fazer com aquele líquido volátil e mais viscoso que a água, até que um alquimista mais inteligente inventou a pólvora, e outro - mais inteligente ainda - colocou um pouco da pólvora na ponta de um graveto e um outro, superinteligente para os padrões intelectuais da época, que havia inventado uma espécie de sapato, resolveu pegar o graveto com a pólvora e friccionar na sola do sapato para tirar um cocô de tiranossauro rex encravado entre a sola e o salto. A pólvora acendeu no atrito com a sola do sapato e o superalquimista, assustado com o fogaréu, jogou o graveto longe, como se se livrasse de uma cobra. O graveto flamejante caiu no barril de querosene de avião e explodiu o barril, espalhando fogo pela floresta de Neanderthal, ocasionando a primeira queimada da História provocada pelo homem.

Em outra caverna longe desses acontecimentos, outro alquimista inventou o cigarro, porém esbarrou em um obstáculo tamanho família: não havia fogo disponível e ele só podia acender o cigarro quando a tempestade incendiasse a mata. Sabendo do ocorrido, viajou para Neanderthal à procura do fogo para acender o seu cigarro.  Assim, de um acaso, foi acesa a chama que iluminaria a Idade Moderna e acenderia o cigarro de muitos viciados. O único inconveniente naquela época era que, além do incômodo de se levar o graveto com pólvora numa ponta, também era preciso carregar um tambor com querosene de avião em u’a mão e o alquimista inventor do sapato na outra.

Somente depois da invenção do bolso foi que se inventou a caixa de fósforos.

            Ah! Se as horas parassem no tempo e no espaço como um monte de ponteiros emperrados em suas engrenagens, estaríamos ainda    tomando banho de cuia, comendo frutas e animais silvestres, fazendo nossas necessidades fisiológicas na mata, transando sexo numa boa num moitel, e Tiririca não seria o candidato a deputado federal mais votado, levando de lambuja uma vaga na Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados.

            Por que não paras, relógio? Não vês essa gente perplexa?