quinta-feira, 16 de junho de 2011

Nossos heróis de cada dia


De A Legião dos Suicidas

Apesar de na adolescência transitar no fumacê da onda hippie, meus heróis não morreram de overdose. Ao contrário, a maioria ainda vive, e um deles, que eu pensava já morto, ressuscitou nesses encaminhamentos de e-mail da vida virtual.

Na infância, meu primeiro herói foi Pedro Malazartes (ou Malasartes), o malandro das mil e uma artes, que singrou os sete mares e aportou nas noites estreladas do arraial do Junco. Era um malandro do bem, um Robin Hood brasileiro, um Zé Carioca caipira, irmão mais velho de Macunaíma e primo-irmão de João Grilo. Não se sabe ao certo a sua origem nem se veio na Expedição Tomé de Sousa, mas o fato é que esse personagem folclórico chegou aqui com os colonizadores trazendo sua mala de artes para embalar os sonhos de justiça da gente simples do Sertão. 

Mas, perdido o encantamento da infância, outro personagem também singrou os sete mares em busca de sua mala de artes e quando retornou à sua terra foi recebido como herói e como herói permaneceu no meu entendimento juvenil: o meu irmão mais velho. Depois de passar alguns anos na Europa, retornou cheio de histórias a contar e com uma arte pronta na bendita mala: um livro escrito por ele. Como morava em outro estado, só aparecia em casa de caju em caju para tomar a bênção aos pais e prosear com os irmãos mais velhos e seus amigos de infância. Era uma festa. Devido à importância do personagem, a minha mãe tirava da cristaleira seus melhores utensílios de mesa guardados a sete chaves para ocasiões especiais. Como o almoço era um banquete aos deuses em agradecimento ao retorno do filho pródigo, crianças e pré-adolescentes não se sentavam à mesa com os adultos e só nos sobravam as rebarbas das conversas, sem direito a sobremesa. 

Foi ele quem me apresentou a Tom Sawyer, Pedrinho e Narizinho, Irmãos Dalton, Bonnie e Clyde, Asterix, Alice, Macondo e tantos e tantos que tomei tamanho gosto pela leitura que virou vício e por causa desse vício pude conviver pacificamente com a geração “paz e amor, bicho” sem a necessidade de enrolar um baseado nem participar das sessões fumacê que rolavam nos encontros dos cabeludos.

Mas ele só me presenteava a prosa juvenil. A poesia era acessada apenas nos livros de leitura ou na biblioteca da escola. Os poetas românticos eram os preferidos, porém no final de 1972 aconteceu um evento que mudou o curso da história: outro irmão foi a São Paulo e quando retornou me presenteou um livro de Celso Japiassu, um poeta paraibano, chamado A Legião dos Suicidas. Eram poemas que fugiam da lógica metrificada e açucarada de se rimar amor com ou sem dor. Alguns versos são tão contundentes que dão a impressão de tirar sangue da alma. E como são atuais...

“IV

Aqui, nos sentamos
E assistimos:
Uma vertente de caos,
Um soco,
Três estampidos.

Mas há um grito nesta rua,
Embora não se divulgue.
Em que poste, casa, líquido
Ou garagem.

Mas há um grito na rua.
Sabemos que vai gritar,
Porque são duas da tarde
E há um medo na cara
De quem se encontra a olhar.

Tem um cão que espreita a rua,
Um velho sentado ao sol,
Uma criança chorando
E três que ainda vão chorar.”

In: Quatro Ângulos Agudos

Fiquei fascinado pelo livro de tal maneira que o tenho guardado até hoje e de vez em quando faço uma releitura que tem o sabor de uma viagem de retorno no túnel do tempo até o dia que o li pela primeira vez e decidi que queria ser um poeta tal qual aquele que assinava o livro. 

Celso Japiassu nasceu e viveu a adolescência em João Pessoa, na Paraíba, concluiu o curso Clássico em Recife, se formou em Direito em Belo Horizonte, mas nunca exerceu esta profissão. Mudou-se em 1967 para o Rio de Janeiro onde vive até hoje e exerce a profissão de jornalista (e só esta semana fiquei sabendo disto, inclusive, para dar testemunho de que ainda reina no mundo dos vivos, se tornou seguidor deste blog). 

O livro que tenho em mãos é o terceiro de sete, contendo 13 poemas que nos envolvem na agudeza dos seus versos e escancaram as nossas vísceras morais. Para ler mais de Celso Japiassu, click no nome e será redirecionado ao blog dele, que também está lincado  aqui.

Seus livros:

* O Texto e a Palha (Edições MP 1965)
* Processo Penal (Artenova 1969)
* A Legião dos Suicidas (Artenova 1972)
* A Região dos Mitos (Folhetim 1975)
* O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno 1980)
* O Último Número (Alhambra 1986)
* Dezessete Poemas Noturno (Alhambra 1992)


“A Legião dos Suicidas”:

“De noite, a esta cidade
Chegam sons que em sua fúria
Mastigam seus ruídos.

Na tarde, além dos partos,
Os crimes esperados
E a legião dos suicidas.

A pé, de ônibus, em táxis amarelos,
Aproximaram seu hálito
De cuspe e de cachaça.

Aqui abandonaram corpos
Que entre nós apodreceram
Afetando o ar que se respira

Instalaram-se à margem das calçadas
E abraçaram as crianças que ali passam,
Transmitindo seu cheiro e sua nódoa.”


Ah! sim: quanto a ser poeta, continuo a sonhar. 


quarta-feira, 15 de junho de 2011

O Bê-á-bá de Brasília - Marcelo Torres

Matéria jornalística do SBT na noite de hoje falando sobre o livro de Marcelo Torres. Assim, mais um junquês ganha a mídia nacional.

Na PUC, Antônio Torres critica cultura dos best-sellers

O escritor Antônio Torres, reconhecido no mundo literário pelo conjunto de sua obra com o Prêmio Machado de Assis em 2000, foi o convidado da vez na segunda rodada do ciclo de palestras “De lá para Cátedra”. Organizado pela Cátedra Unesco de Leitura e pelo Departamento de Letras da PUC-Rio, o encontro traz, todo o mês, um dos nomes da literatura brasileira contemporânea. O romance mais conhecido de Torres, Essa terra, é uma obra que gerou uma trilogia com a adição de O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha. Essa terra, inclusive, foi traduzido para mais de 10 línguas. Segundo o professor Júlio César Valadão, diretor do Departamento de Letras, que acompanhou o autor na mesa promovida pela Cátedra, o escritor, “mais que um brasileiro, é um homem do mundo”.

Durante o evento, o escritor relembrou a dura infância no interior da Bahia e compartilhou suas primeiras memórias sobre o aprendizado da escrita e o amor pela palavra.
– Eu nunca vou esquecer a imagem da minha mãe ao chegar em casa com um objeto não identificado . Ela chamava aquilo de ABC. Quando ela me mostrou aquilo, foi uma imagem da qual eu nunca esqueci, um encantamento – conta o escritor.

Em entrevista ao Portal, Antônio Torres elogiou a internet e os novos escritores que estão surgindo na rede através de blogs, mas criticou os bestsellers. O literato acredita que esse tipo de livro é fruto da globalização e diminui a penetração das obras literárias nacionais no imaginário do leitor brasileiro.

Portal PUC-Rio Digital: Como o senhor analisa o cenário atual da produção literária no Brasil?

Antônio Torres: Hoje há tantos jovens escritores que eu não consigo acompanhar essas publicações, mesmo sendo do ramo. Isso é um fenômeno curioso pois, ao contrário do que se imaginava, o interesse pela literatura aumentou entre os jovens. O interesse de praticá-la, de ser escritor. Não há oficina literária no Brasil que fique sem participantes. Em palestras de escritores, é onde mais se vê, pois tem muita gente querendo escrever, o que é um bem curioso. A internet está por trás disso também, pois todo o jovem escritor tem um blog. O blog é o palanque desse jovem, e ele acaba criando uma comunidade de leitores através desse blog. Esses blogs são tantos e variados quanto as regiões e os estados. Hoje, não sabemos mais quem é o jovem escritor. Ele tem 18 anos? 30? Há vários jovens escritores que têm várias idades. É muito curioso o que está acontecendo. Há o surgimento de um novo escritor, que é muito interessante de se observar e ficar atento para ver até onde eles irão. Muitos desses escritores, inclusive, conseguem quebrar as barreiras da edição e entrar em grandes editoras enquanto outros ficam no universo da internet, o que não significa que não tenham expressão. O momento é bem animador, pois o interesse pela literatura e pela criação literária cresce muito entre os jovens.

Portal: Quando entrevistamos Cristovão Tezza, no último encontro da Cátedra, o escritor ressaltou a proximidade que a internet gera entre o autor e o leitor. O senhor concorda?

A.T: Eu tenho o meu site. Nesse site tem o meu e-mail e meus leitores me enviam muitas perguntas. Muitos deles são estudantes, gente que está estudando meus livros e normalmente eles querem saber sobre alguma obra específica. Como eu viajo muito, faço muitas palestras e participo de oficinas literárias por todo o país. Acabo falando com jovens que querem escrever e pedem conselhos, por exemplo. Eu realmente tenho uma grande relação com os leitores pela internet.

Portal: Qual a sua opinião sobre a influência que os bestsellers têm na nossa cultura? Acredita que eles têm poder de criar novos leitores?

A.T: Essa é uma questão mais complexa. Eu acredito que o fenômeno do bestseller está muito ligado à globalização. São livros que parecem passar por um centro de inteligência que determina que tipo de livro será bestseller no mundo inteiro. Pode ter certeza que o bestseller aqui encontra mercado em todos os lugares. Isso, para as literaturas nacionais, está sendo um problema muito sério, pois o Brasil não está inserido no imaginário global. Corremos risco de, por não estarmos inseridos nesse imaginário, não se inserir no imaginário do leitor brasileiro. Daí a importância do engajamento dos autores, de participar de eventos literários, nas universidades, nas feiras de livros e nas festas literárias. Ainda é muito pequena essa fatia de mercado, ainda estamos dependentes dos professores de português e de literatura brasileira, pois esses são os nossos leitores. São bons leitores e me repassam para seus alunos. Já houve mais interesse pela literatura brasileira. A minha geração toda foi muito bem publicada lá fora: João Ubaldo Pinheiro, Ignácio de Loyola Brandão, Márcio Souza etc. No entanto, há um recuo, nesse sentido, quando entra a globalização. As literaturas de todos os países do mundo estão sofrendo por isso, pois esse produto que se torna bestseller mundial não é, necessariamente, literário, mas um produto de mercado. Ele já vem com uma cara de mercado. Eu tenho a impressão de que a literatura em si, no mundo, está ficando restrita a um grupo bem pequeno. Mas ainda bem que temos esse grupo, pois ele ainda nos sustenta.

Portal: O senhor tem alguma crítica que faria ao ensino de língua portuguesa e de literatura brasileira no Brasil?

A.T: Eu não posso criticar, pois não conheço profundamente qual a situação real. O que eu costumo dizer é que eu gostaria que as escolas tivessem o mesmo empenho das escolas da minha infância. Eu tive uma infância rural, no entanto, minha escola formou meu imaginário e meu mundo de leitura e de escrita. Nessa escola, eu tive uma professora que amava pôr os alunos para ler em voz alta e depois escrever. Eu não sei como acontece hoje, mas eu espero que a escola esteja tendo esse cuidado com os alunos. O estudante, logo que entra na escola, e se habitua a ler em voz alta, passa a descobrir o ritmo e a cor das palavras. Até você descobrir que a palavra tem cor, tem cheiro, tem ritmo, tem imagem, tem som etc. Isso é uma percepção que vai marcar o aluno pelo resto da vida. Isso vai fazê-lo buscar sempre a sonoridade que a poesia e a prosa trazem, vai fazê-lo descobrir o que é estilo literário. Hoje, talvez, esteja havendo uma preocupação maior com a questão da leitura. Houve um vácuo nessa questão, era o país das cruzinhas: bastava fazer uma cruz na pergunta que ela estava respondida, não era preciso escrever a resposta. Curiosamente, acho que a internet está devolvendo a necessidade da escrita. O Brasil é um país ágrafo, em que a comunicação de massa levou as pessoas a se afastarem muito da escrita, essa necessidade retorna via internet. Mesmo que estejamos desenvolvendo um novo dialeto nesse meio, o internetês, não faz mal. O próprio usuário da internet percebe que as coisas mudam quando ele não está na internet, é um ato de instância. Nesse sentido, a evolução da tecnologia tem beneficiado a escrita.

Nota do Blog: Entrevista concedida a Daniel Cavalcanti para o portal da PUC-RJ.

                       

terça-feira, 14 de junho de 2011

Cineas Santos - Se essa rua fosse minha...


Dileto amigo veio visitar-me. Abancou-se, bebemos café forte, conversamos sobre amenidades, rimos um bocado. Na hora da partida, não se conteve: você está no lugar certo. Esta rua é perfeita para acoitar velhos, afirmou. Impossível não concordar com ele. Moro na Lemos Cunha há um quarto de século e posso assegurar que se trata de rua atípica, pelo menos para os padrões teresinenses. Pra começo de conversa, nela não há um bar, uma bodega, uma padaria, uma farmácia, uma birosca onde se possa comprar uma caixa de fósforos, uma maço de velas, um Cibazol. Os muros são altos e as cercas elétricas vendem a ilusão de segurança que todos procuramos. À noite, não fosse um vigilante motorizado com sua cigarra eletrônica, poder-se-ia repetir Quintana: “Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro.../Nem guardas para acaso persegui-los...” Comprida, reta, silenciosa, a minha rua não possui nenhum atrativo especial. A nota alegre fica por conta dos passarinhos. Como ainda há árvores nos quintais, os pássaros escorraçados da periferia adonam-se de cada polegada do verde minguante. Livres das baladeiras, bem-te-vis, anuns, rolinhas e pardais cantam livremente. Pelo menos para mim, o canto dos pássaros, em liberdade, é sempre uma “promessa de vida”, como diria o poeta.

Já descrevi a minha rua em outras ocasiões, sempre ressaltando o sossego que a caracteriza. Receio que, a partir de hoje, não voltarei a fazê-lo. Por ordem ou pedido não sei de quem, resolveram asfaltar a Lemos Cunha. Na segunda-feira, acordei com o barulho das máquinas e o inconfundível cheiro de piche. Percebi que alguma coisa estava errada: os pássaros estavam mudos. Abri o portão para conferir a novidade e sondar a reação dos vizinhos. Um deles, visivelmente satisfeito, berrou: finalmente, a prefeitura se lembrou de nós, professor! Contrafeito, esbocei um sorriso chocho e, calado, engoli minha tristeza. Posso estar enganado, mas acredito que os dias (principalmente as noites) de sossego em minha rua acabaram...

Na contramão de tudo, Teresina fez sua opção preferencial pelo automóvel. Num ritmo frenético, alargam-se ruas, rasgam-se novas avenidas, mutilam-se praças, tudo para abrir mais espaço para os carros. Trata-se de uma batalha perdida. Em nenhum lugar do mundo, resolveu-se o problema do transporte urbano aumentando o número de automóveis nas ruas. Hoje, em nossa cidade, é mais fácil comprar um carro do que encontrar espaço para estacioná-lo. Paradoxalmente, a frota de ônibus cresce num ritmo lento, muito lento...

Sem ter a quem recorrer, limito-me a parodiar o poema “A rua diferente”, de Carlos Drummond de Andrade: Minha rua acordou mudada/ Os vizinhos estão satisfeitos/sabem que a vida tem dessas exigências./ Inconformados, só eu e os pássaros mudos...


domingo, 12 de junho de 2011

Luís Pimentel - Folguedo Junino

Nascido e criado no interior nordestino, sempre curti festa junina. Natal, carnaval, as folias santas ou profanas todas ficavam em segundo plano. Era no São João que o meu coração pulava fogueiras, bigodinho feito a lápis, camisa de chita, calça remendada, vomitando na gravatinha de crepom após os tórridos quentões.

Meu primeiro folguedo junino na cidade grande foi duro. Na noite do 23 de junho, lembrando das canjicas, do milho assado e do amendoim cozido preso no dente da primeira namorada (de maquiagem transbordante e pintinhas pretas ao redor dos olhos), peguei um circular na Glória (via Flamengo, Botafogo, Humaitá, Gávea, Leblon, Copacabana) para dar a volta à cidade, sentado ao lado da janela, procurando balões imaginários no céu.

Foi quando a figura se sentou ao meu lado, na altura da Praça do Jóquei. Estranhei quando pressionou a minha perna contra a sua, mas pensei tratar-se apenas de um desajeitado. Desconfiei quando a boca mole, de língua meio presa, balbuciou:

– Adoro São João.

Juro pelo santo: os olhos faziam aquele volteio das borboletas bêbadas. A mão, lânguida feito um calango, descansou sobre o meu ombro. Começou a cantar:

– Meu balãããããooo vai subir lá no céééééu... Vai subir lá no céééééu meu balãããããooo... Meu balãããããooo vai subir lá no céééééu... balãããããooo, balãããããooo, meu balãããããooo...

Fiz sinal em Copacabana, estava precisando de uma caminhada pela praia. A perna sonsa quase não me deu passagem. A boca mole e a língua presa emendavam no repertório:

–  Ai, São Joãããããooo... São Joãããããooo do carneiriiiiiinho... Você é tão bonitiiiiinho...

Onde encontraria uma canjica ou um licorzim de jenipapo, àquela hora?




sexta-feira, 10 de junho de 2011

Mesmo com fama não deita na cama

Fotos de tanquedarca

Por volta de meio-dia de ontem passava eu em frente à Secretaria de Educação do Estado e, na calçada do estacionamento, duas senhoras esperavam alguém. Ao me aproximar das duas, vi um crachá pendurado no pescoço identificando o município de origem. Certamente eram professoras que participavam dalgum evento na Secretaria, pensei. Parei e puxei conversa:

– Com licença, moças... Vocês são de Tanque d’Arca?
– Somos – responderam olhando para o crachá, como a indagar: não sabe ler não?
– Você também é de lá? – perguntou uma delas que não sei identificar aqui qual das duas. Nem seus nomes perguntei. Como vivente do interior que fui, sei que o povo desses lugares é tímido e muito desconfiado, principalmente as mulheres.
– Não. É que tenho um amigo que é de lá e estou planejando levar um povo, também amigo dele, pra conhecer a cidade e gostaria de saber alguns detalhes do itinerário. O nome do conterrâneo de vocês que conheço é Audálio Dantas. Vocês já ouviram falar dele, né?

As duas perscrutaram a memória e a mais velha respondeu:

– Audálio, Audálio, Audálio... Nunca ouvi falar.
– Ele é jornalista, escritor, e nos tempos de chumbo enfrentou as baionetas com o brado do sindicato dos jornalistas.
– E ele mora em Tanque d’Arca?
– Não. Desde os anos sessenta que ele mora em São Paulo.
– Conhecemos não. – reafirmou a mais nova – Pra falar a verdade não conheço ninguém com esse sobrenome, muito menos com esse nome.

Infelizmente há um descaso injustificável da administração pública dos municípios interioranos no tocante às personalidades da terra que honram ou honraram o seu povo. Alguns políticos parecem temer que o brilho de alguns ofusque suas realizações.

Perto de Tanque d’Arca, Palmeira dos Índios e Quebrangulo, o Mestre Graça é um famoso desconhecido da população. Em Quebrangulo poucos são os que conhecem e a metade desse pouco chegou a ler algum livro do conterrâneo famoso. Já em Palmeira dos Índios somente agora, com a chegada da escola técnica federal, é que se começa a se discutir a importância de Graciliano para o lugar.

Em Feira de Santana, às portas da capital baiana, o grande poeta Eurico Boaventura viveu e morreu no anonimato e foi preciso a UEFS resgatar a sua história e o colocar no pedestal dos grandes intelectuais baianos, dois anos atrás, no advento do seu centenário. Até então ele não passava de um ilustre desconhecido.

Porto Calvo, Norte de Alagoas, palco histórico da guerra contra os holandeses e tão cantado em versos e prosas da dramaturgia brasileira, tem um personagem emblemático na discussão acadêmica do patriotismo, porém é de total desconhecimento da população local. Duas amigas retornavam de Recife e, ao passarem pela cidade, uma se lembrou de certo episódio dessa guerra:

– Não foi aqui que Calabar foi enforcado?
– Foi.
– Vamos visitar o local? Talvez haja algum memorial ou museu.

Na praça, pararam próximo a uns senhores que pareciam matar o tempo jogando conversa fora. 

– Por favor, senhores, alguém pode nos dizer onde é que fica o local em que Calabar foi enforcado?

Os nativos fizeram uma cara de surpresa. Entreolharam-se e o que parecia mais esperto dirigiu-se ao carro onde as duas permaneciam:

– Moça, a senhora tem certeza de que esse Calabar foi enforcado aqui?! Não estamos sabendo de nenhum enforcamento não. Que dia foi? Foi esta semana?

Para honra e glória do Brasil, há exceções nesse desconhecimento coletivo interiorano. Poucas, mas há. O arraial do Junco é uma delas. Segundo o último Censo do IBGE, o município tem uma população que passa dos dezoito mil habitantes, porém a população itinerante, os nômades do lugar, ultrapassa, com folga, os vinte mil. Como os que saem adquirem uma visão diferenciada, terminam influenciando os que ficam. É por isso que o escritor Antonio Torres é conhecido nos quatro cantos de sua terra e um grande movimento cultural fervilha em torno do seu nome. Não há uma só pessoa que não diga sentir orgulho de Totinha de Irineu, nome de infância que carrega até hoje junto aos mais velhos. Ao completar 70 anos, em 2010, o escritor foi homenageado pelo prefeito, pela Câmara de Vereadores, e por alunos e professores da rede pública, além de outros alunos e professores das cidades circunvizinhas que compareceram à festa. A visita dos alunos à biblioteca pública, cujo patrono é Antonio Torres, é obrigatória, como também é obrigatório se conhecer a biografia e a obra do autor. 

Mas voltemos ao episódio de ontem, pois Tanque d’Arca é logo ali, a 95 Km da capital, segundo me informaram as tanquenses. Talvez um dia faça parte da Região Metropolitana de Maceió. Com pouco mais de 6 mil habitantes, deve ser duro para o administrador municipal e operadores da Cultura local propagar no município o nome daqueles que levam a cidade a ser conhecida além de suas fronteiras. Essa omissão, maliciosa ou não, cria a falsa ilusão na gente comum ao discernir entre heróis e espertalhões. 

Ao longo da conversa fiquei sabendo que as duas senhoras participavam de um evento ligado à segurança alimentar. Podiam ser merendeiras, nutricionistas, integrantes do conselho escolar ou simplesmente secretárias dalguma coisa ou ser tudo ao mesmo tempo. 

– No jornal Gazeta de Alagoas de ontem saiu uma matéria falando de Tanque d’Arca e do Audálio. – comentei a título de deixá-las orgulhosas. E deixei.
– Sério?! – perguntou a mais velha, que parecia ser alguém importante na cidade, talvez a primeira-dama ou alguém muito ligada a ela. Em algumas cidades o topo da pirâmide social é assim: em cima, a mulher do prefeito; embaixo, o prefeito e o delegado; mais embaixo, o motorista de ônibus, o cobrador e o padre.
– Então esse Audálio é importante mesmo. Vou ver se encontro esse jornal. – concluiu a mais nova.
– Se não achar, procurem no Google o blog Onde Canta a Acauã que também foi publicado lá.
– Ah! Tá certo! Mas me diga uma coisa: você conhece o nosso prefeito?
– Não.
– Mas como não?! Você conhece esse Audálio que ninguém conhece e não conhece nosso prefeito que é o melhor prefeito do mundo?! Isso é um absurdo! 

Diante de tão sincera indignação, recolhi-me à minha insignificância, peguei meu boné e pedi licença pra me retirar. Realmente: como eu poderia conhecer o Audálio Dantas e não conhecer o prefeito da cidade, o melhor do mundo? Simplesmente um grande ato falho, um absurdo dos absurdos. 

Antes de dobrar a esquina olhei para trás e tive a certeza de haver tirado duas pessoas das trevas medievais.




quinta-feira, 9 de junho de 2011

Joaldo Cavalcante* - O Chão de Audálio Dantas

De 4ª Bienal do Livro de Alagoas

– Você está sabendo que Tanque d’Arca vai aparecer na mídia nacional?
– É mesmo? Já não era sem tempo. Finalmente vão fazer justiça àquele pedaço de chão.

A reação bem-humorada é do jornalista Audálio Dantas, ao ser informado por mim que o apresentador global Luciano Huck acabara de aterrissar em sua terra, em companhia do figurinista Alexandre Herchcovitch. O resultado da visita das celebridades irá em breve ao ar.

Mas o pequenino lugarejo, que um dia serviu para os almocreves descansarem à sombra de oitizeiros, tem muito do que se orgulhar, com a importância e o respeito que seu filho ilustre, Audálio Dantas, desfruta no Brasil.

No próximo mês de outubro, Audálio desembarca em Alagoas como patrono da 5ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas. Entre tantas homenagens recebidas pelo País afora, esta terá sabor especial, pois acontecerá em seu torrão natal. E olha que elas se sucedem pelos Estados brasileiros.

A mais recente vem em forma de artigo escrito por outro honrado alagoano, o jornalista, professor e escritor José Marques de Melo. Pelas páginas da revista Imprensa, discorre acerca da trajetória de Audálio. Assim como outros nordestinos, este enfrentou as adversidades da vida, desbravou caminhos e ocupou seu espaço com dignidade.

Desde a saudosa revista Realidade até a condição de líder dos jornalistas de São Paulo, ao assumir a presidência da categoria numa etapa tenebrosa da ditadura militar, quando, em pleno governo do general Ernesto Geisel, assassinaram covardemente, no calabouço do regime, o jornalista Wladimir Herzog, preso sem processo e morto sob tortura. Agora, prepara narrativa sobre a vida de Herzog.

Audálio conduziu a categoria de maneira corajosa, enfrentando as pressões, mas sem recuar e deixar de protestar. Pela sua conduta, alcançou a presidência da Federação Nacional dos Jornalistas. O povo paulista reconheceu a liderança do alagoano, conferindo-o mandato de deputado federal, que foi cumprido de maneira destacada.

Apesar de distante de suas raízes, nunca perdeu a referência nem o contato com a legião de amigos alagoanos. Os vínculos estão simbolizados na publicação “O chão de Graciliano”, que virou exposição e circulou com sucesso pelo Brasil.

No texto de abertura, faz viagem pelo interior de Alagoas, descrevendo em minúcias as regiões, como o morro do Pão-Sem-Miolo, adjacente à cidade de Viçosa. Faço, portanto, este registro para fazer justiça a tantos filhos da terra que contribuíram ou contribuem para inserir positivamente Alagoas na pauta nacional.

(*) É jornalista.

Nota do Blog: este artigo foi publicado na Gazeta de Alagoas do dia 08 de junho de 2011, e publicado aqui em homenagem ao amigo Audálio Dantas, leitor confesso deste blog e um ser humano justo, idealista e mais humano do que o perdão. A cidade em tela, Tanque d'Arca, fica a menos de cem quilômetros de Maceió e é um tantinho menor do que o arraial do Junco.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Luís Nassif - Antonio Torres, o escritor e seu ofício

O grande escritor é ele e seu ofício solitário, ele com ele. Não ambiciona riqueza ou poder. Sua ambição é o reconhecimento dos leitores e dos iguais, os demais escritores. Muitos escrevem pensando apenas no reconhecimento posterior; outros ambicionam o reconhecimento imediato. Mas seu mote, sua seiva vital é o reconhecimento de seus pares.

Um grande escritor não nasce, é construído ao longo de décadas e de livros, de personagens que cria, de tramas que tece, de sentimentos que explora, na solidão intermitente de seu quarto, raras vezes nos salões dos poderosos. Explora novas formas de conhecimento, a atualização permanente da leitura e da análise de pessoas e circunstâncias.

Não busca a popularidade fácil dos jornalistas, a exploração do factual, do imediato, o atendimento da catarse dos leitores. O grande escritor ambiciona a eternidade. Para os de família quatrocentona, a eternidade pode ser um mausoléu no Cemitério da Consolidação; para os muitos ricos letrados, uma fundação que leve seu nome; para o provincianismo brasileiro, um nome de rua.

Para o grande escritor, deveria ser a Academia Brasileira de Letras (ABL). Mas não é.

A ABL, a casa de Machado de Assis, que deveria ser a guardiã implacável dos valores da literatura, a defensora intransigente da meritocracia, a defensora dos escritores, o selo de qualidade, o passaporte final para a posteridade, é uma casa menor, em alguns momentos parecendo mais uma cloaca de fazenda do que um lugar de luzes e de letras.
Ao preterir o escritor Antônio Torres em favor do jornalista Merval Pereira, a ABL demonstrou a pequenez não propriamente dela, mas de uma certa elite superficial brasileira, provinciana, atrasada.

De pouco adiantou o fato de que os livros de Torres ajudaram o Brasil a ser mais conhecido por leitores da Itália, Argentina, México, Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Portugal, Bélgica, Holanda, Israel, Bulgária. Ou o fato de dois livros seus – Um táxi para Viena D’Áustria e Essa Terra - traduzidos na França, terem levado o governo francês, em 1999, a lhe conferir o título de "Cavaleiro das Artes e das Letras”.

Merval tem a visibilidade e o poder proporcionados pela Rede Globo. Tem moeda de troca – o espaço na Globo, podendo abastecer o ego de seus pares e as demandas da ABL. Poderia até ganhar prêmios jornalísticos, jamais a maior condecoração da literatura brasileira.

Tem apenas dois livros, um de 1979, feito a quatro mãos, outro mais recente, mera compilação de artigos que escreve para o jornal “O Globo”.

Mas representa poder – no caso, a mídia -, assim como, em outros tempos, o poder era o general Lyra Tavares, Getúlio Vargas, Roberto Marinho, ao quais também se curvou a ABL.
De Merval, duas declarações de endosso. Da indescritível Nelida Piñon, enaltecendo seu... cavalheirismo. E a informação de que, dos acadêmicos, conhece apenas João Ubaldo Ribeiro – colunista de “O Globo”.

Nota do blog: Publicado, originalmente, no site www.luisnassif.com.br em 06/06/2011


segunda-feira, 6 de junho de 2011

Conversa de Botequim


– Garçom, dois “chopiisss”!
– O meu sem colarinho branco.
– Tudo bem com você? Faz um tempão que não lhe vejo.
– Ando sumido do mapa mesmo. Depois que terminei os estudos voltei a morar no interior, com meus pais. Queria fugir do caos urbano, mas quem disse?! Lá tá pior do que aqui. Uma barulheira infernal, traficante andando pra cima e pra baixo na maior tranquilidade e o pau comendo no couro da população.
– A minha cidade também está assim, por isso nem me arrisco a pôr os pés lá. Depois que a droga se globalizou não tem essa de lugar pequeno não ter viciado não. É maconha, é crack... só não tem cocaína porque custa caro e o povo de lá vive eternamente duro.
– É justamente pela dureza que tudo descamba pra violência, pro roubo, pro latrocínio. Virou moda se roubar ou até mesmo matar os velhinhos no dia do pagamento da aposentadoria.
– Pior é que não tem polícia. E, quando tem, os policiais também estão envolvidos no ilícito. Todo dia a gente vê na tevê policial sendo preso.
– Também não adianta prender porque logo, logo um juiz manda soltar. Viu aquele jornalista que matou a namorada? Réu confesso, foi julgado, condenado, e somente doze anos depois foi preso.
– Isso é que dói. Lembra daquela mãe que pegou dois anos só porque roubou uma lata de leite pra dar pro filho faminto? Ainda continua presa.
– A Justiça no Brasil não é justa. Mas mudemos de assunto: e o resto da turma? Nunca mais tive notícias de ninguém.
– De vez em quando encontro um e outro vagando por aí. Alguns seguiram em frente com os estudos, outros estão trabalhando na informalidade e outros arriscam a sorte grande, como o Machado. Lembra dele?
– Como não haveria de me lembrar do Machadinho? Certa vez queria brigar porque eu disse que ele não podia ver um pau em pé.
– E você queria o quê? Chama o cara de viado...
– Não foi isso. Quem é que corta pau? O machado. Levei séculos explicando isso a ele.
– Ah! Sim.
– Ele vivia dizendo que ia se dar bem na vida.
– E parece que vai. Da última vez que o encontrei, ele me disse que estava empenhado em entrar para Academia Brasileira de Letras.
– Brasileira de quê?!
– Letras! Aquele lugar onde deram uma condecoração a Wanderley Luxemburgo e Ronaldinho Gaúcho.
– Ah! A CBF...
– Não, jumento! Vai pro interior e esquece tudo. A ABL. Aquela casa que reúne os melhores escritores do país.
– E Ronaldinho Gaúcho escreveu um livro?
– Não escreveu e nem vai escrever. Aliás, ele mesmo disse que nunca leu um livro. Mas disseram que um escritor famoso lá da academia morreu e era fã de Ronaldinho Gaúcho. Aí lhe fizeram essa homenagem póstuma. Mas eu acho que os escritores da tal academia queriam mesmo era ficar bem na fita depois que andaram falando mal de um livro sem terem lido o livro.
– Oxente! E escritor agora é adepto do “não li e não gostei”? Quem falava assim era uma tia minha, que se achava muito importante. Já o meu avô dizia que não devíamos falar daquilo que não conhecemos. Nem falar bem, nem falar mal. O que não se conhece, desconhecido é, dizia ele.
– Pois é. Nem todos de lá tiveram um avô sábio igual ao seu. E a academia ficou numa situação vexatória. Aí inventaram essa de condecorar um cara que nunca leu um livro.
– Isso me lembra o Machado. Desde quando ele virou escritor? Nunca soube que tivesse escrito um livro. Aliás, ele sempre tirou nota baixa em Redação.
– E ele não escreveu livro nenhum.
– Como que não?! E como é que ele quer entrar pra essa tal de ABL? Não tem que ser escritor pra entrar pra lá?
– Aí é que tá: o critério deveria ser esse. Mas não é assim que funciona. Hoje, o principal critério é ser funcionário da Rede Globo e o Machado já conseguiu espetar um crachá dessa empresa no peito.
– Deus do Céu! Garçom, passa a régua rapidinho que vou voltar pro interior!


domingo, 5 de junho de 2011

Edna Lopes - Academia Brasileira de Quê?

Sempre que sei por ler ou por ouvir dizer de alguma notícia que alguém recebeu de uma UNIVERSIDADE o título de Doutor Honoris Causa, atribuído a personalidades que tenham se distinguido pelo saber ou pela atuação em prol das artes, das ciências, da filosofia, das letras ou do melhor entendimento entre os povos, fico feliz pelo reconhecimento que aquela instituição faz, mesmo in memoriam, a quem de alguma forma se destacou ou se destaca em algum campo do conhecimento humano.

Sempre que sei por ler ou por ouvir dizer de alguma notícia que alguém recebeu de uma ACADEMIA DE LETRAS o título de imortal, fico me perguntando na minha vã mortalidade o que de relevante aquele alguém contribui ou contribuiu para a literatura daquele lugar, estado ou país.

Houve um tempo em que a minha vã mortalidade e santa ingenuidade de leitora achava que os critérios, ou ao menos, dois critérios para a escolha fosse uma presumida (confirmada, óbvio) produção literária e a tal relevância levada a serio pelos tais que faziam a escolha.

Bastou dar uma olhada com mais atenção para as ACADEMIAS DE LETRAS de vários estados, bastou tropeçar em gente tão sem expressão nas letras, que minha ilusão de seriedade caiu por terra, pois encontrei devidamente imortalizados políticos que tenho lá minhas dúvidas se escreveram seus discursos.

Houve um tempo em que a minha vã mortalidade e minha santa credulidade de leitora olhava a ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS com alguma sacralidade. Acreditava piamente que lá estava o Crème de La Crème (desculpem a presunção) da produção literária do Brasil. Acreditava também que uma instituição como aquela estaria acima de interesses politiqueiros, acima do desejo mesquinho da fama a qualquer custo.

A eleição do jornalista, comentarista da rádio CBN, do canal Globonews e colunista de "O Globo" Merval Pereira com “dois livros publicados (uma reunião de artigos, sozinho, e uma série de reportagens, em coautoria) que venceu com folga (25 votos a 13) o escritor Antônio Torres, 17 obras publicadas, entre romances, contos e crônicas”( Fabio Victor, folha.com) . Fábio sintetiza e não menciona os prêmios de Torres todos ligados a sua produção literária mas ilustra muito bem, a meu ver, a equivocada linha de atuação que o atual presidente da ABL, Marcos Vilaça vem adotando.

Basta dar uma olhada com mais atenção para a lista dos IMORTAIS para ver quantos acadêmicos são de outras áreas que não das LETRAS. Não que eu advogue o purismo, não que não defenda que mereçam honrarias, mas entendo que há um exagero nessa “abertura”.

Minha vã mortalidade só espera que tanta ampliação e abertura não signifique que mais dia menos dia não haja mais representantes da escrita literária naquela casa, pois aí sim, a pergunta “Academia Brasileira de Quê?” fará total sentido.
*subtítulo de reportagem da Folha de S. Paulo de 04 de junho de 2011;
** Os grifos são meus, para que fique bem ACESO o que destaco, o que penso e digo.



sábado, 4 de junho de 2011

Os três sexos



Certa vez, passeando por esses cem números de canais por assinatura, parei em uma briga de travesti, sapatão, hermafrodita, um médico especialista no assunto, um padre e um instrutor de luta livre que mais parecia um membro dos “skin head”, de tão exaltado que estava. Até que o falapau estava interessante, cada um querendo fazer justiça à sua maneira.

Eu fiquei num misto de admiração e espanto com a peça pregada pela Natureza no que dizia respeito aos três sexos envolvidos. Digo “três” porque o hermafrodita é – como direi – uma peça de traumatológico resultado. Que gênero se dá ao hermafrodita? No caso em questão, era um homem que, além da documentação necessária para identificação alfandegária, tinha também vagina e útero, não podendo, porém, fazer sexo consigo mesmo. O seu sexo mental, aquele que prevalece na hora de movimentar os cinco sentidos, era o de homem. E, sentindo-se injustiçado pela Natureza, pediu reparação a um médico-cirurgião, especialista no assunto, e submeteu-se à intervenção cirúrgica para extirpar o útero e demais partes pudendas femininas. Recebeu garantias científicas de que ficaria um homem normal. Arranjou namorada e marcou casamento. Talvez pudesse até ter filhos. Queria cinco, caso fosse possível.

A cirurgia transcorreu sem nenhum imprevisto ou contratempo. Os médicos, experientes no ramo, não tiveram dificuldades em colocar o cidadão dentro da classe gramatical substantiva comum de um gênero só. Ele não viu nada, pois foi apagado por uma dose cavalar de anestesia. Dormiu sonhando com o primeiro coito de sua vida e, por via das dúvidas, comprou duas caixas de Viagra e um pacote de camisinha.

Ao retornar feliz do apagão cirúrgico, o médico olhou para ele, sorridente, e disse que a cirurgia tinha sido um sucesso completo, e lhe mostrou um pênis que repousava tranqüilamente mergulhado em um recipiente de formol. Isso foi dito por ele.

Em Salvador, um cidadão se submeteu a uma simples cirurgia de fimose e o médico passou-lhe a cepa, colocando no lugar do pênis uma vagina a la Roberta Close.

Erro médico, quando não é fatal, é triste para o operado. Causa aleijão físico e moral. O paciente, geralmente apagado total ou parcial, confia sua vida ao saber pleno e seguro do especialista médico, não havendo margem para desconfiança ou insegurança no procedimento cirúrgico.

Fatalidade ou irresponsabilidade? Todos os dias, vemos ou lemos nos jornais algum caso de erro médico, trazendo sequelas inimagináveis – quando não a morte – para o paciente. E os médicos, de um cinismo revoltante, apenas pedem desculpas. Quando pedem. Milhares de processos cíveis e criminais pululam nas varas de Justiça, emperrada pela morosidade, corrupção e descaso com a função, ignorando-se a afirmação de Rui Barbosa: “Justiça tardia não é Justiça; é injustiça”.

Voltando ao tema central, fico aqui pensando nas adversidades biológicas ou nos erros cometidos pela Natureza. Em foco, três negações fantásticas do gênero substantivo: o masculino que era ela; o feminino que era ele, e o terceiro sexo que podia ser ele ou ser ela, dependendo da função ativa ou passiva assumida no instante do ato sexual.

O rapaz, dito hermafrodita, inseguro, parecia perdido no tempo e no espaço. A que nasceu mulher, desinibida e exibida, lembrava um estivador. O travesti, de conduta calma e meiga, tinha um ar angelical, suaves traços sensuais, voz melosa e delicada, e até o exaltado professor de luta livre, na sua falsa moral que fez corar até o padre, se arriscaria a uns amassos lascivos na maliciosa e oportuna cumplicidade noturna.

De noite todos os gatos são pardos. 


sexta-feira, 3 de junho de 2011

Maurício Melo Júnior - Elogio ao velho Capone


Conta a lenda que, caminhando pelo deserto da Palestina, sem comer nem beber há quarenta dias, Jesus Cristo avistou um canavial. E não me perguntem como este canavial foi aparecer no deserto; estamos no terreno da lenda. Pois bem, o filho de Deus descansou sob a sombra modesta, sim, mas generosa e saciou a sede e a fome com o caldo doce da cana. Ao sair abençoou a planta e decretou: “Daqui o homem irá tirar algo doce para seu alimento”. Assim surgiu o açúcar, o melaço, a rapadura.

Seguindo na mesma trilha, para atanazar Cristo, Satanás entrou no mesmo canavial do mesmo deserto. A palha da cana o deixou todo lanhado, não consegui uma sombra que fosse e quando tentou se encostar encheu as costas com aquele pelinho que dói prá lascar. Para aliviar a sede quebrou uma cana e a bicha tava mais azeda que jiló. Arretado com aquilo amaldiçoou o partido: “Daqui o homem irá tirar um produto que vai lhe queimar a goela, vai lhe deixar embriagado e vai lhe desgraçar a vida”. Assim surgiu a cachaça.

A lenda tem suas injustiças. Açúcar é doce, mas engorda. Cachaça desgraça, mas pode ser degustada com moderação e prazer. Tudo é uma questão de dosagem. No mais é secundar Ascenso Ferreira: “Suco de cana-caiana tirada do alambique / pode ser prejudique / mas bebo toda sumana…” Daí é apreciar sem culpas as qualidades de uma boa cachaça.

A lenda não fala, mas com certeza na maldição do diabo constava um item falando que a descoberta se daria num país onde o governo tem mais sede que nós, os bravos consumidores. Falo aqui de uma sede metafórica, pois é mais fácil sustentar a gula de um caminhão Ford com gasolina que o governo com imposto.

Esses dias, conversando com um produtor, o cabra foi categórico. Envolvendo todos os custos – plantio, colheita, destilação, armazenagem, embalagem, transporte, salários, direitos trabalhistas, lucros, etc –, ele consegue botar na prateleira uma garrafa de cachaça por 20 reais. Quando entram os impostos federal, estadual e municipal o custo pula prá 50 reais, o preço de um uísque de qualidade. Daí ele se complica com a concorrência.

Como para todo bebedor a persistência é uma norma, apelei para a Internet. Descobri uma página maravilhosamente bem surtida e com preços atraentes. Esperançoso, iniciei as negociações. E fui até a pergunta fatal: Onde devo entregar o produto? Em Brasília, respondi. Não dá, quando chegamos aí o governo local nos morde com tanta força que não há como compensar o prejuízo. Frustrado, fiquei na sede, ruminando prá onde vai tanto imposto.

De onde ele vem, eu sei. Uma pesquisa recente informou que até o dia 25 de maio todos os brasileiros, inclusive os aposentados, trabalharam apenas para pagar impostos. E isso se repete todos os santos anos. Ou seja, a coisa é bem mais séria do que simplesmente taxar a cachaça e seus sagrados consumidores.

Constantemente leio nos jornais que os governos comem 50% da conta de luz. Outro dia caminhei uns três quilômetros acompanhando uma imensa fila de carros para descobrir que todos esperavam pacientemente para abastecer sem pagar impostos. O preço da gasolina estava por menos da metade. E até o cândido açúcar, mesmo abençoado pelo Cristo, carrega 30% de seu preço em impostos.

E tudo piora quando, voltando aos jornais, lemos sobre estradas sem asfalto, hospitais sem médicos ou remédios, escolas sem merenda, sem professores, sem motivação. E o que se faz com todo dinheiro arrecadado? Será? Bom, pode ser uma explicação. Vamos lá.

Marcos Freire era presidente da Caixa Econômica Federal e recebeu a visita de Luís Portela de Carvalho, ex-prefeito de Palmares. Junto entrou no gabinete uma comissão de cinco prefeitos gaúchos que buscava dinheiro para comprar um patrol. Vendo aquilo, Portela desdenhou: “Comprei uma esta semana com recursos próprios.” “Como, tchê?” “Eu não roubo”, respondeu na lata, para constrangimento de todos.

Tudo uma questão de formação moral. Luís Portela sabia o sentido pleno da palavra república, coisa pública, e hoje é quase uma lenda urbana em Palmares onde há um verdadeiro culto à sua atuação na prefeitura.

O velho descontrole na fiscalização e as notícias que assolam os jornais explicam por que não pude comprar minha cachaça com entrega em domicílio. Um amigo chegou a se exaltar e defendeu o Chile como exemplo de política de impostos e de soluções. “Lá o vinho é considerado alimento e tem uma taxação justa.” Bom, como não dá para considerar cachaça alimento, a menos que se queira ser excomungado pelos patrulheiros de plantão, e sabendo que a economia chilena é igual a do estado de São Paulo, o melhor é apelar para nosso sagrado jeitinho.

É preciso ciência até para tomar cachaça. E neste caso a solução foi inspirar-me no velho Al Capone. Pois bem, procurei uma amiga que trabalha em Luziânia, uma cidade goiana nas imediações do Distrito Federal. De comum acordo passei ao fornecedor o endereço de trabalho da moça. Os cabras, livres da mordida distrital, deixaram ali a preciosa encomenda e eu a apanhei aqui, do outro lado da fronteira com ela, numa ação digna de um bom e nobre sacoleiro. Tudo muito prático.

Meu gesto faria ri o velho Capone, pois não passo de um reles amador, mas também nossa Lei Seca não chega aos rigores americanos de antanho, e no mais não consigo correr do governo quando compro açúcar, abasteço o carro, pago a conta de luz. Acho que preciso estudar melhor a vida do velho gangster, afinal a taxação da cachaça ainda dá para agüentar, mas bem que gostaria de saber em que árvore nascem os impostos. Com certeza conseguiria um bom exorcista para tirar dali a praga do cramunhão.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Cineas Santos - A poesia como passaporte

De O poeta Salgado Maranhão na praia de Cruz das Almas - Maceió AL

Fosse uma história infantil, poderíamos iniciá-la assim: era uma vez um menino negro e pobre que, mesmo sem existência civil, tinha o passaporte para o coração do mundo: a poesia. Como a história é verídica, que fale o poeta: “Até os dezesseis anos de idade, eu praticamente nem tinha existência civil, já que não tinha nem sequer uma certidão de nascimento. A minha desimportância era tamanha que só a poesia poderia me resgatar do nada. Então, ela foi-se achegando a mim e eu a ela, numa simbiose tão profunda que, contrariando a lei da Física, passamos a ocupar, ao mesmo tempo, o mesmo espaço”. Vista pelo prisma da poesia, a trajetória de Salgado Maranhão pode parecer simples e até glamourosa. Eu lhes asseguro que não foi. Nascido no interior do Maranhão, filho de agricultores pobres, Salgado passou a infância “ correndo atrás do sol/pés descalços pelos matagais/ por entre cascavéis e beija-flores”. Aos 16 anos de idade, semianalfabeto, veio para Teresina onde, em pouco mais de três anos, cursou, via supletivo, o primeiro e o segundo graus. Como já trazia a poesia, em estado bruto, no embornal do peito, começou a escrever e a publicar poemas nos jornais da cidade. Mas, entre um poema e outro, era preciso ganhar o sagrado feijão de cada dia. Entre outras atividades, foi vendedor de santos, profissão pouco rentável, mas que lhe propiciou o contato enriquecedor com a população periférica de Teresina. “Rico não precisa comprar santo: já tem o paraíso na terra”, garante.
Em 1973, com a cara e a poesia, mudou-se para o Rio de Janeiro. “Um dia, percebi que, em Teresina, não havia espaço para o que eu queria fazer. Eu precisava radicalizar, romper com os laços e amarras para tentar viabilizar o projeto de me tornar um escritor. Eu precisava de contato com uma realidade que representasse um violento contraste com o mundo que, até então, eu conhecia. O Rio de Janeiro era esse extremo. Seria, para mim, uma espécie de vestibular extremado, até mesmo em matéria de sobrevivência”. O Cristo Redentor, apenas ele, o recebeu de braços abertos... Mas Salgado, curtido na aspereza, não se deixou intimidar. Meteu-se entre os que, como ele, acreditavam no poder da palavra. Tantas fez que, em 1978, à frente de um grupo de jovens poetas, publicou, pela Civilização Brasileira, Ebulição da Escrivatura, uma antologia que marcaria época. Iniciou sua carreira solo com Punhos da Serpente (1989).Depois, vieram: Palávora; O beijo da fera; Mural de ventos; Sol sanguíneo; A pelagem da tigra; Solo de gaveta e, em 2009, a antologia A cor da palavra. A poesia, a quem nunca traiu,abriu-lhe muitas portas. E vieram os prêmios: “Ribeiro Couto” (98), “Jabuti” (2009) e, este ano, “Prêmio Poesia”, da Academia Brasileira de Letras. Lido por muito, estudado nas universidades, traduzido e elogiado pela crítica especializada, Salgado Maranhão já poderia dar-se por satisfeito. Mas, a um poeta com vocação apolínea, é sempre lícito querer mais, muito mais, sempre mais ...

domingo, 29 de maio de 2011

Univesp TV: Prof. Ataliba Castilho fala sobre polêmica do livro do MEC



O Professor, linguista e gramático Ataliba Castilho é entrevistado por Ederson Granetto, da UNIVESP TV, e fala da polêmica do livro para a Educação de Jovens e Adultos do MEC. Veja a opinião de quem realmente entende e, principalmente, de quem leu o livro.





Ataliba T. de Castilho


Professor titular da Universidade de São Paulo. Foi também professor titular da Unicamp e da Unesp. Livre-Docente pela USP. Foi professor visitante na University of Texas at Austin e pesquisador de pós-doutorado na Cornell University (Estados Unidos), na Université d'Aix-Marseille (França), na University of New México (Estados Unidos) e na Università degli Studi di Padova (Itália). Dirigiu projetos como o NURC e o Gramática do Português Falado. Fundou e presidiu o Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo. Criou o Sistema de Blibiotecas e o Sistema de Arquivos da Unicamp. Presidiu, de 1983 a 1985, a Associação Brasileira de Lingüística. É autor de vários livros e dezenas de atigos publicados em revistas científicas no Brasil e no exterior.
Fonte: Editora Contexto