domingo, 16 de junho de 2013
quarta-feira, 5 de junho de 2013
Charô Nunes - Deixar de ser racista, meu amor, não é comer uma mulata!
Elogio racista é toda demonstração de admiração,
afetividade ou carinho que se concretiza por meio de ideias ou expressões
próprias ao racismo. Com ou sem a intenção de, que fique bem claro. Um dos mais
conhecidos é o famoso "negro de alma branca” que nossos antepassados tanto
ouviram. Mas não são apenas nossos homens que conhecem muito bem os elogios
racistas. Nós mulheres negras também somos agraciadas com esses pequenos
monstrinhos, usados inadvertidamente por amigos, familiares. Muitas vezes até
por nossos parceiros.
Decidi fazer uma lista com cinco elogios racistas
(e sexistas, diga-se de passagem) que muitas de nós escutamos quase que
diariamente. Alguns são consenso, acredito. Outros nem tanto. Fico aguardando
ansiosa para que você, mulher negra, deixe seu comentário dizendo se também
acontece com você. Se concorda, se discorda. E, sobretudo, o que você faz para
deixar bem claro que esse tipo de comentário pode ser tudo, menos bem-vindo e
apreciado.
01. "Você é uma morena muito bonita”
Esse é o elogio racista que mais escutei em toda
minha vida. Minhas primeiras lembranças são do tempo da escolinha. Mesmo
mulheres como Adriana Alves ainda são chamadas de morenas, pois se acredita que
chamar alguém de negra é uma ofensa racial. Se você precisa se expressar, tente
um simples "você é bonita ou atraente”. Ou ainda "você é uma negra linda”,
o que, dependendo do contexto pode ser tão ruim quanto.
Mas em hipótese alguma diga que uma negra é morena,
moreninha, morena escura. Que não é negra. Isto sim é racismo dos graúdos, pura
e simplesmente. Quando acontece comigo, digo que não sou morena e nem
moreninha, sou n.e.g.r.a. O bom é que, dependendo de como essa resposta é dada,
a pessoa já se toca que ela não deveria ter começado o conversê, que
simplesmente não estou disponível para esse tipo de diálogo. Nem com
conhecidos, muito menos com estranhos.
02. "Seu cabelo é muito bonito, posso pegar?”
Há alguns anos atrás, uma senhora ultrapassou todos
os limites de uma convivência pacífica ao se aproximar de mim, cheia de dedos,
me tocando sem permissão e dizendo que eu tinha uma "peruca muito bonita”.
Não retruquei de caso pensado, antecipando seu constrangimento por jamais ter
cogitado que uma mulher negra pudesse ter um cabelo comprido, ao natural. Minha
vingancinha, e sou dessas, foi olhar aquela expressão de arrependimento por ter
percebido o que fez.
Entendo que simples visão de uma negra com cabelo
natural pode ser inebriante. Que persiste a completa desinformação sobre o
nosso cabelo. Porém, isso não justifica o toque sem permissão. Não importa se é
cabelo natural ou não. A menos que você conheça muito bem a pessoa, não toque
em seu cabelo sem consentimento. Eu iria mais longe. Para mim a boa etiqueta
simplesmente reza que não se deve nem mesmo pedir para tocar o cabelo de uma
pessoa desconhecida.
03. "Você tem os traços delicados”
Dizer que uma negra tem traços "delicados”
muitas vezes tem a ver com a ideia de que será bonita se tiver uma expressão
"fina”, leia-se semelhante a de uma pessoa branca. Como se determinado
tipo de nariz (ou bochechas) fosse exclusivamente dessa ou daquela etnia. Uma
de suas variantes é outra expressão igualmente racista – "você é uma
mulher negra bonita” – algo que ao meu ver é a mesma coisa de dizer que
"você é bonita para uma negra”.
Afinal, qual a dificuldade de dizer que uma mulher
negra simplesmente é… Uma mulher bonita? Porque Alek Wek tem de ser descrita
como uma "mulher negra bonita” enquanto as mulheres brancas são apenas
"mulheres bonitas”? Mais uma vez, toda a sutileza do elogio racista. Ele
reconhece que você é uma pessoa admirável, mas sempre fazendo questão de te
colocar "no seu lugar”, como se algumas fronteiras jamais pudessem ser
cruzadas.
04. "Você tem a bunda linda”
Essa é uma opinião que certamente não é unânime.
Faço questão de expressá-la como uma provocação que representa o pensamento de
uma parcela significativa de mulheres negras. Para muitas de nós, esse
comentário expressa a hipersexualização a que somos historicamente submetidas
como exemplifica a triste biografia de Saartjie, denominada a Vênus Hotentote,
exposta como atração circense em função da admiração que suas nádegas causaram
na Europa do século XIX.
Apesar de todo respeito que tenho por tudo aquilo
que acontece entre duas pessoas, preciso considerar a tradição racista secular
desse tipo de discurso. Trata-se de reduzir a mulher negra a um pedacinho do
seu corpo, desconsiderar sua humanidade, transformá-la num pedaço de carne
exposto no açougue como aconteceu e acontece diariamente. Meu conselho é
pergunte antes se a mulher a quem você pretende cumprimentar tem a mesma
leitura desse tipo de elogio.
05. "Você é uma mulata tipo exportação!”
Esse elogio ainda o tratamento dispensado à mulher
negra no seio da senzala, da casa grande. O pensamento que nos reduz em
brinquedos sexuais. Dizer que uma mulher negra é uma "mulata tipo
exportação” é esquecer uma tradição escravocrata secular, que transforma a mulher
negra em "peça” que alcançará boa cotação no mercado, onde a carne mais
barata é a nossa. O nome desse mercado é exotificação. Em alguns casos, hipersexualização.
Infelizmente também estamos falando sobre o modo
racista com que as mulatas de escola de samba, mulheres que respeito e admiro,
são mostradas e consumidas. Mulheres que levam o samba no pé, no sorriso, na
raça. Que, ao invés de ser uma referência de beleza, são vendidas como frutas
exóticas na temporada do carnaval. Mulheres que recentemente têm sido
preteridas por "personalidades da mídia” em nome de uma pretensa
"democracia racial” e muitas vezes com as anuências de algumas
agremiações.
Qual é a sua opinião?
Porém, preciso dizer que os elogios racistas podem
(e devem) ser subvertidos. Quando o assunto são as mulatas de quem já falei
aqui, isso é bastante evidente. Ser uma mulata exportação também atesta um
padrão de excelência e traduz qualidades como perseverança, força. Minha
professora de dança adora dizer que a graça de uma bailarina é diretamente
proporcional à sua força. Mulatas são as expressões mais concreta desse
enunciado.
Por isso fiz questão de usar como título desse
post, um trecho do poema de Elisa Lucinda, Mulata Exportação, que resume tudo o que tentei
dizer até aqui: "deixar de ser racista, meu amor, não é comer uma mulata”
como muita gente gosta de pensar. E acrescento, "opressão, barbaridade,
genocídio, nada disso se cura trepando com uma escura!”. Muito menos tecendo
elogios racistas, diga-se de passagem. Quem o diz é a mulata exportação do
poema. Sou eu, somos todas nós que já ouvimos essas porcarias.
Nota do blog: Siga Charô Nunes no twitter
e no facebook. Também pode ser encontrada no Indigestivos
Oneirophanta, onde escreve sobre arte, cultura e
sociedade . Ela é a responsável pelo Um Brasil de Cor, blog de colagens e notícias
sobre a não-representação da mulher negra.
segunda-feira, 3 de junho de 2013
Cineas Santos - O olhar de cada um
Há coisa de três anos, venho
fotografando flores nos monturos de Teresina, passatempo de velho. Já tenho
material suficiente para publicar um livrinho com essa beleza sazonal e efêmera
que não se mostra aos olhos apressados. A experiência já me rendeu uma
exposição itinerante e algumas histórias engraçadas. Há poucos dias, numa manhã
de domingo, eu fotografava as pequenas flores nas proximidades do Riverside, quando passou um conhecido, parou
o carro e, com ar de galhofa, perguntou: “Está procurando ouro no lixo, professor?”
A exemplo do velho coronel da Chapada, “dei o calado por resposta”.
No início da semana passada, resolvi
levar o projeto a um número maior de pessoas: fiz uma reportagem sobre flores
dos monturos de Teresina para ser exibida no programa Feito em Casa. As imagens falam por si sós. O resultado me deixou
bastante satisfeito. De quebra, ainda ganhei este arremedo de crônica.
Segunda-feira, às 9 horas, na Rua Visconde da Parnaíba, filmávamos um terreno
baldio recoberto de salsas de todas as cores, inclusive azuis, raras e belas.
De repente, para um automóvel de luxo e uma madame, com ar assustado, baixa o
vidro da porta é pergunta: “Tem algum
cadáver aí?”. O motorista que conduzia o carro da TV Cidade Verde respondeu: “Tem, mas ainda não localizamos”. A cidadã
arrancou de vez, queimando pneus no
asfalto.
O pessoal da equipe de reportagem
começou a rir. Pensando bem, como na letra daquela velha canção, “o que dá pra
rir dá pra chorar”. A atitude da senhora assustada, em seu carro de luxo, permite-nos
fazer duas leituras. A primeira: hoje, todos nós, independentemente do estrato
social, estamos apavorados, vazando adrenalina por todos os poros, prontos para
fugir ante o menor sinal de ameaça. A segunda: a TV brasileira, com raras
exceções, optou por mostrar o chamado “mundo cão” com toda a crueza que o caracteriza.
Os telejornais exibem, em sequência, furtos, sequestros, estupros e mortes, com
requinte de sadismo. Quanto mais sórdida a notícia, melhor. Depois de assistir
a um dos telejornais da noite, qualquer um, temos a impressão de que o mundo
está prestes a se acabar. Melhor esperar rezando.
Alguém que, como eu, atreve-se a
mostrar a beleza singela das flores de monturo, quando poderia estar exibindo
cadáveres insepultos, não passa de um “desocupado ou alienado”. Estou ciente de
que corro o sério risco de ser processado por flagrante atentado ao despudor
reinante. Fazer o quê? Como diria meu irmão “menos louco”, Edison do Ministério
de Nossa Senhora, “cada um, para o que nasce”. Nada além.
sábado, 25 de maio de 2013
O show que você perdeu, inclusive eu
Para Maria Lucia Rangel, a musa carioca que me inspirou a relembrar tempos vividos com intensidade.
Não
fui ao magnífico show “Poeta, Moça e Violão”, acontecido no dia 27 de fevereiro
de 1973, no Teatro Castro Alves, por vários motivos alheios à minha vontade, dos
quais contarei apenas alguns.
Nesta
data acima, de inquestionáveis lembranças, privava eu da minha linda
adolescência e só poderia ir para qualquer lugar longe de casa com a devida
autorização dos pais. Havia um grande e definitivo dilema: o meu pai, um “não
liga pra nada!”, vivia nos cafundós do Judas, e a minha mãe, uma “quero você
debaixo das minhas asas!”, muito perto demais para botar areia no meu melado.
Se ainda fosse Vicente Celestino ou Orlando Silva, vá lá, disse-me ela entre suas
raras justificativas para dizer um “não”. É que, naqueles tempos, se dizia que menino
e tamanco ficavam debaixo do banco, onde podiam ser pisados ou chutados feito
cão sarnento. “Não”, era não, e acabou.
–
Além do mais – tive a honra de um “além do mais” – Judith me disse que esse tal
de Vinícius é comunista, essa Clara Nunes é macumbeira e esse Toquinho é um
cotó que faz tudo que o comunista quer. Vai ver que é comunista também.
Judith
era uma vizinha que se orgulhava de ser membro da TFP. Os anos eram de chumbo,
Médici não media esforço para fazer do Flamengo campeão carioca, brasileiro, mundial
e intergaláctico.
–
E tem mais – muita honra em ter um “e tem mais” – você andou tomando injeção
nas veias e Judith me disse que a polícia vai dar batida na saída do teatro.
Com esse cabelão e essa barbona, você vai terminar dormindo no xilindró.
Naquele
tempo era assim: quando a polícia dava bacolejo na rua, a primeira coisa que
olhava era os braços do infeliz. Se tivesse marca de injeção e não mostrasse a
receita médica, era jogado num camburão tal qual um marginal. E se voltasse a
ver o sol nascer redondo, era por puro milagre ou por ser filho de político da
Arena.
–
E pra encerrar – morri de felicidade! Tive direito a um “e pra encerrar” -, faz
dois meses que o seu pai não manda um tostão furado aqui pra casa. Portanto, vá
na praia tomar um banho pra esfriar a cabeça e esquecer essas bobagens. Praia,
por enquanto, é de graça.
Não
tendo mais como insistir sem levar um safanão, recolhi-me à minha
insignificância de tamanco e fui remoer minha tristeza debaixo do banco.
Nesse
show, sucesso de público e de crítica, a convite de Vinícius de Moraes, Georges
Moustaki teve participação especial, interpretando a sua versão francesa de “Cotidiano
nº 2”. Como podem ver na contracapa do álbum do show inserida no vídeo-clip abaixo,
uma homenagem do blog ao recém-falecido Georges Moustaki, a gravadora
brasileira aportuguesou o francês-egípcio-baiano e grafou seu nome como Jorge
Mustaqui. Bem no popular.
O
LP do show foi lançado em 1991 (álbum triplo, com versão integral do show,
contendo trinta faixas de áudio) pela Collector's Editora, e em 2008 a Biscoito
Fino remixou em CD, porém passou a cepa em oito faixas, dentre elas, a
participação do “Jorge Mustaqui” e da música de encerramento, uma homenagem de
Vinícius aos baianos: Tarde em Itapuã.
Já
se vê que essas gravadoras pouco entendem de música!
sexta-feira, 24 de maio de 2013
Cineas Santos - As traquinices do menino Jesus
A exemplo de todos os moleques de minha geração, frequentei
aulas de catecismo, que me encharcaram a alma de pavor e dúvidas. Logo na
primeira, uma freirinha raquítica desenhou um estranho relógio na lousa com os
dois ponteiros sobre as palavras nunca
e sempre. Em seguida explicou:
“Meninos, este é o relógio do inferno. Um dos ponteiros nos lembra: nunca sairás
daqui; o outro nos diz: sempre permanecerás aqui”. Por pouco não “desbebi” ali mesmo, na presença
de todos. Em seguida, passou a descrever o reino de satã com tal riqueza de
detalhes que, na minha ingenuidade, pensei: ela
já esteve lá. Depois, nos falou de Deus, “um ser onipresente, onisciente,
onipotente que nos vê por dentro”. E vieram os mistérios, o mais complicado
deles ainda me perturba: o da Santíssima Trindade. Como entender um Deus uno e
trino ao mesmo tempo? Como três pessoas distintas e poderosas podem habitar harmonicamente uma mesma divindade?
Para mim, incompreensível: há mais de 60 anos tento conviver em paz comigo e
não consigo...
Outro mistério que sempre me verrumou a mente é a trajetória
existencial de Jesus Cristo. Vemo-lo na manjedoura, ao nascer, em Belém; vamos
reencontrá-lo, doze anos depois, no templo de Jerusalém, proseando sabiamente
com os doutores da lei. Só voltaremos a ter notícias dele 18 anos mais tarde,
quando batizado por João Batista. Três anos depois, sai do convívio dos
humanos. Minha maior curiosidade: como teria sido a infância de Cristo? Em
crônica memorável – “A missão de Jesus” – Humberto de Campos relata o
sofrimento de Cristo por não poder brincar com seus colegas de infância. O pai
explica ao filho: “ ...e se caísses em
uma dessas correrias, o que seria de nós e do teu povo?”. E conclui a narrativa
assim: “Jesus de Nazaré começava a sofrer, nesse dia, a tristeza de ter nascido
Deus”.
Há poucos dias, o poeta Elias Paz e Silva me emprestou o
livro “Apócrifos – os proscritos da Bíblia”, e lá, no “pseudo- evangelho” de
Tomé, filósofo israelita, encontrei uma passagem de rara beleza. Aos cinco anos
de idade, encontrava-se o menino Jesus brincando no leito de um riachinho, após
uma chuva. De repente, pega um pouco de lama e com ela molda alguns pássaros.
Como era dia do Sabbah, quando não se
pode fazer absolutamente nada, ao presenciar a cena, um judeu correu até José e
avisou: “Olha, teu filho está no riacho e, juntando um pouco de barro, fez uma
dúzia de passarinhos, profanando com isso o dia do Sabbah”. José foi até o riacho para ralhar com o filho: “Por que
fazes no Sabbah o que não é permitido fazer?”. Sem responder à pergunta do pai,
o menino limitou-se a ordenar: “voai!” e os passarinhos de argila voaram
alegremente gorjeando. No mesmo “pseudo-evangelho”, há passagens menos poéticas
nas quais o menino Jesus pratica algumas traquinices e até pequenas maldades,
compatíveis com a idade que tinha. Saí da leitura do livro com uma alegre certeza:
crianças agem como crianças, mesmo que sejam deuses.
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