domingo, 16 de junho de 2013

Cala a boca já morreu

O título acima era um axioma muito empregado nos meus tempos de criança-adolescente e que, de certo modo, revelava o direito de se falar o que se queria, principalmente pelas bocas desaforadas, e que depois foi traduzido para “liberdade de expressão”. Em verdade, a expressão completa é “cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu” e muitos dos meus dez leitores já devem ter ouvido ou feito uso dela.

Mas esse “cala a boca já morreu” acima, é o título de uma carta da Editora Abril, endereçada a este escriba, relembrando meus áureos tempos de assinante da Revista Veja quando ela se incluía como uma revista de resistência nos angustiantes anos de chumbo, sob a batuta do destemido Mino Carta. Agora, abraçada a causas menos nobres, ou melhor, espúrias, que já teve até um Carlos Cachoeira opinando sobre a linha editorial da revista, ela quer que eu volte a ser assinante e acompanhe as mudanças que se seguem nesse país pós-traumático. Para isso, me ofereceram até desconto de setenta por cento. Mesmo assim liguei para a Editora para pechinchar mais ainda:

- Vocês me mandam a revisa de graça e me pagam quinhentos pilas para ler!

Até que era uma proposta razoável. Meus advogados disseram que eu devia pedir dez mil, mas, depois de pagar os honorários devidos, iria ficar com menos de quinhentos paus. Por isso a negociação direta, sem intermediário.

Claro, a Editora não aceitou, mas na semana passada me ofereceram a revista Veja pelo preço de dez por cento do valor da assinatura. Mais dia, menos dia, vão terminar aceitando e aí quem não vai querer sou eu. Só se me pagarem os dez mil reais que os advogados sugeriram.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Charô Nunes - Deixar de ser racista, meu amor, não é comer uma mulata!



Elogio racista é toda demonstração de admiração, afetividade ou carinho que se concretiza por meio de ideias ou expressões próprias ao racismo. Com ou sem a intenção de, que fique bem claro. Um dos mais conhecidos é o famoso "negro de alma branca” que nossos antepassados tanto ouviram. Mas não são apenas nossos homens que conhecem muito bem os elogios racistas. Nós mulheres negras também somos agraciadas com esses pequenos monstrinhos, usados inadvertidamente por amigos, familiares. Muitas vezes até por nossos parceiros.

Decidi fazer uma lista com cinco elogios racistas (e sexistas, diga-se de passagem) que muitas de nós escutamos quase que diariamente. Alguns são consenso, acredito. Outros nem tanto. Fico aguardando ansiosa para que você, mulher negra, deixe seu comentário dizendo se também acontece com você. Se concorda, se discorda. E, sobretudo, o que você faz para deixar bem claro que esse tipo de comentário pode ser tudo, menos bem-vindo e apreciado.

01. "Você é uma morena muito bonita”

Esse é o elogio racista que mais escutei em toda minha vida. Minhas primeiras lembranças são do tempo da escolinha. Mesmo mulheres como Adriana Alves ainda são chamadas de morenas, pois se acredita que chamar alguém de negra é uma ofensa racial. Se você precisa se expressar, tente um simples "você é bonita ou atraente”. Ou ainda "você é uma negra linda”, o que, dependendo do contexto pode ser tão ruim quanto.

Mas em hipótese alguma diga que uma negra é morena, moreninha, morena escura. Que não é negra. Isto sim é racismo dos graúdos, pura e simplesmente. Quando acontece comigo, digo que não sou morena e nem moreninha, sou n.e.g.r.a. O bom é que, dependendo de como essa resposta é dada, a pessoa já se toca que ela não deveria ter começado o conversê, que simplesmente não estou disponível para esse tipo de diálogo. Nem com conhecidos, muito menos com estranhos.

02. "Seu cabelo é muito bonito, posso pegar?”

Há alguns anos atrás, uma senhora ultrapassou todos os limites de uma convivência pacífica ao se aproximar de mim, cheia de dedos, me tocando sem permissão e dizendo que eu tinha uma "peruca muito bonita”. Não retruquei de caso pensado, antecipando seu constrangimento por jamais ter cogitado que uma mulher negra pudesse ter um cabelo comprido, ao natural. Minha vingancinha, e sou dessas, foi olhar aquela expressão de arrependimento por ter percebido o que fez.

Entendo que simples visão de uma negra com cabelo natural pode ser inebriante. Que persiste a completa desinformação sobre o nosso cabelo. Porém, isso não justifica o toque sem permissão. Não importa se é cabelo natural ou não. A menos que você conheça muito bem a pessoa, não toque em seu cabelo sem consentimento. Eu iria mais longe. Para mim a boa etiqueta simplesmente reza que não se deve nem mesmo pedir para tocar o cabelo de uma pessoa desconhecida.

03. "Você tem os traços delicados”

Dizer que uma negra tem traços "delicados” muitas vezes tem a ver com a ideia de que será bonita se tiver uma expressão "fina”, leia-se semelhante a de uma pessoa branca. Como se determinado tipo de nariz (ou bochechas) fosse exclusivamente dessa ou daquela etnia. Uma de suas variantes é outra expressão igualmente racista – "você é uma mulher negra bonita” – algo que ao meu ver é a mesma coisa de dizer que "você é bonita para uma negra”.

Afinal, qual a dificuldade de dizer que uma mulher negra simplesmente é… Uma mulher bonita? Porque Alek Wek tem de ser descrita como uma "mulher negra bonita” enquanto as mulheres brancas são apenas "mulheres bonitas”? Mais uma vez, toda a sutileza do elogio racista. Ele reconhece que você é uma pessoa admirável, mas sempre fazendo questão de te colocar "no seu lugar”, como se algumas fronteiras jamais pudessem ser cruzadas.

04. "Você tem a bunda linda”

Essa é uma opinião que certamente não é unânime. Faço questão de expressá-la como uma provocação que representa o pensamento de uma parcela significativa de mulheres negras. Para muitas de nós, esse comentário expressa a hipersexualização a que somos historicamente submetidas como exemplifica a triste biografia de Saartjie, denominada a Vênus Hotentote, exposta como atração circense em função da admiração que suas nádegas causaram na Europa do século XIX.

Apesar de todo respeito que tenho por tudo aquilo que acontece entre duas pessoas, preciso considerar a tradição racista secular desse tipo de discurso. Trata-se de reduzir a mulher negra a um pedacinho do seu corpo, desconsiderar sua humanidade, transformá-la num pedaço de carne exposto no açougue como aconteceu e acontece diariamente. Meu conselho é pergunte antes se a mulher a quem você pretende cumprimentar tem a mesma leitura desse tipo de elogio.

05. "Você é uma mulata tipo exportação!”

Esse elogio ainda o tratamento dispensado à mulher negra no seio da senzala, da casa grande. O pensamento que nos reduz em brinquedos sexuais. Dizer que uma mulher negra é uma "mulata tipo exportação” é esquecer uma tradição escravocrata secular, que transforma a mulher negra em "peça” que alcançará boa cotação no mercado, onde a carne mais barata é a nossa. O nome desse mercado é exotificação. Em alguns casos, hipersexualização.

Infelizmente também estamos falando sobre o modo racista com que as mulatas de escola de samba, mulheres que respeito e admiro, são mostradas e consumidas. Mulheres que levam o samba no pé, no sorriso, na raça. Que, ao invés de ser uma referência de beleza, são vendidas como frutas exóticas na temporada do carnaval. Mulheres que recentemente têm sido preteridas por "personalidades da mídia” em nome de uma pretensa "democracia racial” e muitas vezes com as anuências de algumas agremiações.


Qual é a sua opinião?

Porém, preciso dizer que os elogios racistas podem (e devem) ser subvertidos. Quando o assunto são as mulatas de quem já falei aqui, isso é bastante evidente. Ser uma mulata exportação também atesta um padrão de excelência e traduz qualidades como perseverança, força. Minha professora de dança adora dizer que a graça de uma bailarina é diretamente proporcional à sua força. Mulatas são as expressões mais concreta desse enunciado.

Por isso fiz questão de usar como título desse post, um trecho do poema de Elisa Lucinda, Mulata Exportação, que resume tudo o que tentei dizer até aqui: "deixar de ser racista, meu amor, não é comer uma mulata” como muita gente gosta de pensar. E acrescento, "opressão, barbaridade, genocídio, nada disso se cura trepando com uma escura!”. Muito menos tecendo elogios racistas, diga-se de passagem. Quem o diz é a mulata exportação do poema. Sou eu, somos todas nós que já ouvimos essas porcarias.

Nota do blog: Siga Charô Nunes no twitter e no facebook. Também pode ser encontrada no Indigestivos Oneirophanta, onde escreve sobre arte, cultura e sociedade . Ela é a responsável pelo Um Brasil de Cor, blog de colagens e notícias sobre a não-representação da mulher negra.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Cineas Santos - O olhar de cada um



         Há coisa de três anos, venho fotografando flores nos monturos de Teresina, passatempo de velho. Já tenho material suficiente para publicar um livrinho com essa beleza sazonal e efêmera que não se mostra aos olhos apressados. A experiência já me rendeu uma exposição itinerante e algumas histórias engraçadas. Há poucos dias, numa manhã de domingo, eu fotografava as pequenas flores nas proximidades do Riverside, quando passou um conhecido, parou o carro e, com ar de galhofa, perguntou: “Está procurando ouro no lixo, professor?” A exemplo do velho coronel da Chapada, “dei o calado por resposta”.

         No início da semana passada, resolvi levar o projeto a um número maior de pessoas: fiz uma reportagem sobre flores dos monturos de Teresina para ser exibida no programa Feito em Casa. As imagens falam por si sós. O resultado me deixou bastante satisfeito. De quebra, ainda ganhei este arremedo de crônica. Segunda-feira, às 9 horas, na Rua Visconde da Parnaíba, filmávamos um terreno baldio recoberto de salsas de todas as cores, inclusive azuis, raras e belas. De repente, para um automóvel de luxo e uma madame, com ar assustado, baixa o vidro da porta é pergunta: “Tem  algum cadáver aí?”. O motorista que conduzia o carro da TV Cidade Verde respondeu: “Tem, mas ainda não localizamos”. A cidadã arrancou  de vez, queimando pneus no asfalto.

         O pessoal da equipe de reportagem começou a rir. Pensando bem, como na letra daquela velha canção, “o que dá pra rir dá pra chorar”. A atitude da senhora assustada, em seu carro de luxo, permite-nos fazer duas leituras. A primeira: hoje, todos nós, independentemente do estrato social, estamos apavorados, vazando adrenalina por todos os poros, prontos para fugir ante o menor sinal de ameaça. A segunda: a TV brasileira, com raras exceções, optou por mostrar o chamado “mundo cão” com toda a crueza que o caracteriza. Os telejornais exibem, em sequência, furtos, sequestros, estupros e mortes, com requinte de sadismo. Quanto mais sórdida a notícia, melhor. Depois de assistir a um dos telejornais da noite, qualquer um, temos a impressão de que o mundo está prestes a se acabar. Melhor esperar rezando.

         Alguém que, como eu, atreve-se a mostrar a beleza singela das flores de monturo, quando poderia estar exibindo cadáveres insepultos, não passa de um “desocupado ou alienado”. Estou ciente de que corro o sério risco de ser processado por flagrante atentado ao despudor reinante. Fazer o quê? Como diria meu irmão “menos louco”, Edison do Ministério de Nossa Senhora, “cada um, para o que nasce”. Nada além.

sábado, 25 de maio de 2013

O show que você perdeu, inclusive eu

Para Maria Lucia Rangel, a musa carioca que me inspirou a relembrar tempos vividos com intensidade.

Não fui ao magnífico show “Poeta, Moça e Violão”, acontecido no dia 27 de fevereiro de 1973, no Teatro Castro Alves, por vários motivos alheios à minha vontade, dos quais contarei apenas alguns.

Nesta data acima, de inquestionáveis lembranças, privava eu da minha linda adolescência e só poderia ir para qualquer lugar longe de casa com a devida autorização dos pais. Havia um grande e definitivo dilema: o meu pai, um “não liga pra nada!”, vivia nos cafundós do Judas, e a minha mãe, uma “quero você debaixo das minhas asas!”, muito perto demais para botar areia no meu melado. Se ainda fosse Vicente Celestino ou Orlando Silva, vá lá, disse-me ela entre suas raras justificativas para dizer um “não”. É que, naqueles tempos, se dizia que menino e tamanco ficavam debaixo do banco, onde podiam ser pisados ou chutados feito cão sarnento. “Não”, era não, e acabou.

– Além do mais – tive a honra de um “além do mais” – Judith me disse que esse tal de Vinícius é comunista, essa Clara Nunes é macumbeira e esse Toquinho é um cotó que faz tudo que o comunista quer. Vai ver que é comunista também.

Judith era uma vizinha que se orgulhava de ser membro da TFP. Os anos eram de chumbo, Médici não media esforço para fazer do Flamengo campeão carioca, brasileiro, mundial e intergaláctico.

– E tem mais – muita honra em ter um “e tem mais” – você andou tomando injeção nas veias e Judith me disse que a polícia vai dar batida na saída do teatro. Com esse cabelão e essa barbona, você vai terminar dormindo no xilindró.

Naquele tempo era assim: quando a polícia dava bacolejo na rua, a primeira coisa que olhava era os braços do infeliz. Se tivesse marca de injeção e não mostrasse a receita médica, era jogado num camburão tal qual um marginal. E se voltasse a ver o sol nascer redondo, era por puro milagre ou por ser filho de político da Arena.

– E pra encerrar – morri de felicidade! Tive direito a um “e pra encerrar” -, faz dois meses que o seu pai não manda um tostão furado aqui pra casa. Portanto, vá na praia tomar um banho pra esfriar a cabeça e esquecer essas bobagens. Praia, por enquanto, é de graça.

Não tendo mais como insistir sem levar um safanão, recolhi-me à minha insignificância de tamanco e fui remoer minha tristeza debaixo do banco.

Nesse show, sucesso de público e de crítica, a convite de Vinícius de Moraes, Georges Moustaki teve participação especial, interpretando a sua versão francesa de “Cotidiano nº 2”. Como podem ver na contracapa do álbum do show inserida no vídeo-clip abaixo, uma homenagem do blog ao recém-falecido Georges Moustaki, a gravadora brasileira aportuguesou o francês-egípcio-baiano e grafou seu nome como Jorge Mustaqui. Bem no popular.

O LP do show foi lançado em 1991 (álbum triplo, com versão integral do show, contendo trinta faixas de áudio) pela Collector's Editora, e em 2008 a Biscoito Fino remixou em CD, porém passou a cepa em oito faixas, dentre elas, a participação do “Jorge Mustaqui” e da música de encerramento, uma homenagem de Vinícius aos baianos: Tarde em Itapuã.

Já se vê que essas gravadoras pouco entendem de música!           

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Cineas Santos - As traquinices do menino Jesus


         A exemplo de todos os moleques de minha geração, frequentei aulas de catecismo, que me encharcaram a alma de pavor e dúvidas. Logo na primeira, uma freirinha raquítica desenhou um estranho relógio na lousa com os dois ponteiros sobre as palavras nunca e sempre. Em seguida explicou: “Meninos, este é o relógio do inferno. Um dos ponteiros nos lembra: nunca sairás daqui; o outro nos diz: sempre permanecerás aqui”.  Por pouco não “desbebi” ali mesmo, na presença de todos. Em seguida, passou a descrever o reino de satã com tal riqueza de detalhes que, na minha ingenuidade, pensei: ela já esteve lá. Depois, nos falou de Deus, “um ser onipresente, onisciente, onipotente que nos vê por dentro”. E vieram os mistérios, o mais complicado deles ainda me perturba: o da Santíssima Trindade. Como entender um Deus uno e trino ao mesmo tempo? Como três pessoas distintas e poderosas podem  habitar harmonicamente uma mesma divindade? Para mim, incompreensível: há mais de 60 anos tento conviver em paz comigo e não consigo...

         Outro mistério que sempre me verrumou a mente é a trajetória existencial de Jesus Cristo. Vemo-lo na manjedoura, ao nascer, em Belém; vamos reencontrá-lo, doze anos depois, no templo de Jerusalém, proseando sabiamente com os doutores da lei. Só voltaremos a ter notícias dele 18 anos mais tarde, quando batizado por João Batista. Três anos depois, sai do convívio dos humanos. Minha maior curiosidade: como teria sido a infância de Cristo? Em crônica memorável – “A missão de Jesus” – Humberto de Campos relata o sofrimento de Cristo por não poder brincar com seus colegas de infância. O pai explica ao filho: “ ...e se caísses  em uma dessas correrias, o que seria de nós e do teu povo?”. E conclui a narrativa assim: “Jesus de Nazaré começava a sofrer, nesse dia, a tristeza de ter nascido Deus”.

         Há poucos dias, o poeta Elias Paz e Silva me emprestou o livro “Apócrifos – os proscritos da Bíblia”, e lá, no “pseudo- evangelho” de Tomé, filósofo israelita, encontrei uma passagem de rara beleza. Aos cinco anos de idade, encontrava-se o menino Jesus brincando no leito de um riachinho, após uma chuva. De repente, pega um pouco de lama e com ela molda alguns pássaros. Como era dia do Sabbah, quando não se pode fazer absolutamente nada, ao presenciar a cena, um judeu correu até José e avisou: “Olha, teu filho está no riacho e, juntando um pouco de barro, fez uma dúzia de passarinhos, profanando com isso o dia do Sabbah”. José foi até o riacho para ralhar com o filho: “Por que fazes no Sabbah o que não é permitido fazer?”. Sem responder à pergunta do pai, o menino limitou-se a ordenar: “voai!” e os passarinhos de argila voaram alegremente gorjeando. No mesmo “pseudo-evangelho”, há passagens menos poéticas nas quais o menino Jesus pratica algumas traquinices e até pequenas maldades, compatíveis com a idade que tinha. Saí da leitura do livro com uma alegre certeza: crianças agem como  crianças, mesmo  que sejam deuses.