A exemplo de todos os moleques de minha geração, frequentei
aulas de catecismo, que me encharcaram a alma de pavor e dúvidas. Logo na
primeira, uma freirinha raquítica desenhou um estranho relógio na lousa com os
dois ponteiros sobre as palavras nunca
e sempre. Em seguida explicou:
“Meninos, este é o relógio do inferno. Um dos ponteiros nos lembra: nunca sairás
daqui; o outro nos diz: sempre permanecerás aqui”. Por pouco não “desbebi” ali mesmo, na presença
de todos. Em seguida, passou a descrever o reino de satã com tal riqueza de
detalhes que, na minha ingenuidade, pensei: ela
já esteve lá. Depois, nos falou de Deus, “um ser onipresente, onisciente,
onipotente que nos vê por dentro”. E vieram os mistérios, o mais complicado
deles ainda me perturba: o da Santíssima Trindade. Como entender um Deus uno e
trino ao mesmo tempo? Como três pessoas distintas e poderosas podem habitar harmonicamente uma mesma divindade?
Para mim, incompreensível: há mais de 60 anos tento conviver em paz comigo e
não consigo...
Outro mistério que sempre me verrumou a mente é a trajetória
existencial de Jesus Cristo. Vemo-lo na manjedoura, ao nascer, em Belém; vamos
reencontrá-lo, doze anos depois, no templo de Jerusalém, proseando sabiamente
com os doutores da lei. Só voltaremos a ter notícias dele 18 anos mais tarde,
quando batizado por João Batista. Três anos depois, sai do convívio dos
humanos. Minha maior curiosidade: como teria sido a infância de Cristo? Em
crônica memorável – “A missão de Jesus” – Humberto de Campos relata o
sofrimento de Cristo por não poder brincar com seus colegas de infância. O pai
explica ao filho: “ ...e se caísses em
uma dessas correrias, o que seria de nós e do teu povo?”. E conclui a narrativa
assim: “Jesus de Nazaré começava a sofrer, nesse dia, a tristeza de ter nascido
Deus”.
Há poucos dias, o poeta Elias Paz e Silva me emprestou o
livro “Apócrifos – os proscritos da Bíblia”, e lá, no “pseudo- evangelho” de
Tomé, filósofo israelita, encontrei uma passagem de rara beleza. Aos cinco anos
de idade, encontrava-se o menino Jesus brincando no leito de um riachinho, após
uma chuva. De repente, pega um pouco de lama e com ela molda alguns pássaros.
Como era dia do Sabbah, quando não se
pode fazer absolutamente nada, ao presenciar a cena, um judeu correu até José e
avisou: “Olha, teu filho está no riacho e, juntando um pouco de barro, fez uma
dúzia de passarinhos, profanando com isso o dia do Sabbah”. José foi até o riacho para ralhar com o filho: “Por que
fazes no Sabbah o que não é permitido fazer?”. Sem responder à pergunta do pai,
o menino limitou-se a ordenar: “voai!” e os passarinhos de argila voaram
alegremente gorjeando. No mesmo “pseudo-evangelho”, há passagens menos poéticas
nas quais o menino Jesus pratica algumas traquinices e até pequenas maldades,
compatíveis com a idade que tinha. Saí da leitura do livro com uma alegre certeza:
crianças agem como crianças, mesmo que sejam deuses.
Um comentário:
"Em seguida, passou a descrever o reino de satã com tal riqueza de detalhes que, na minha ingenuidade, pensei: ela já esteve lá." Gente que fala com tamanha propriedade do inferno só pode ter estado lá (risos) A crônica traz algumas facetas da vida do Cristo-menino-Deus. Dia desses, comentando sobre isso a uma tia evangélica tradicional das antigas, ao dizer que Jesus foi menino, que deve ter tido dor de barriga, relado as canelas, ela quase me excomungou(risos), alegando que ele era Deus. Jesus ao dar vida aos pássaros, rememora o Pai, ao dar molde e vida ao barro, o sopro da vida.
Postar um comentário