Em uma noite de Primavera de 1985 três perseguidos políticos do polo petroquímico de Camaçari vagavam pelos bares das cidades satélites de Brasília. No último que entramos, perguntamos se havia "folha podre". Um moço que bebia ao pé do balcão nos olhou curioso e disse:
- Esse negócio de folha podre é coisa de baiano.
- E somos - respondi.
Travamos conversa até a madrugada. Ele era caminhoneiro e estava indo para Vitória da Conquista. Nós estávamos acampados na Fetag, no Núcleo Bandeirantes, com mais oitenta companheiros em busca de reparação política. A ordem era pressionar os deputados. Afinal, o sindicato representava mais de sessenta mil trabalhadores e era a menina dos olhos dos políticos em tempo de eleição.
- Eu deixo vocês na Fetag.
Aceitamos. O dinheiro era escasso. A ditadura assaltou nossos direitos. Entrei na cabine com o companheiro Marins. O outro subiu na carroceria e se meteu debaixo de uma lona para se proteger do frio.
Chegamos ao nosso destino, descemos e agradecemos a carona. No outro dia, na fila do café, outro colega nos perguntou:
- Sales não saiu com vocês ontem?
Olhei espantado para Marins. Esquecemos de acordar Sales e pelo andar da carruagem ele já devia estar bem longe.
O medo na simplicidade ou a simplicidade do medo. Ou, como dizia o meu pai, quem não deve, não treme.
O meu irmão Nininho era supervisor do Censo lá pras bandas do Junco. Um dia ele resolveu passear nas roças para saber se os recenseadores estavam fazendo o trabalho direito. Na primeira casa que bateu, atendeu uma senhora, cigarro de palha nos lábios:
- Bom dia, minha senhora. Seu marido está?
- Quem deseja falá cum ele?
- Diga que é Nininho, sou supervisor do Censo do IBGE e queria fazer umas perguntas a ele.
A mulher jogou o cigarro no chão, entrou apressada, pulou pela janela da cozinha e saiu correndo para roça, gritando:
- Se esconde, Bié, que o ôme do governo veio lhe prendê!
A pandemia, além de consumir a nossa saúde, engoliu o sinal de celular. Em alguns lugares nem subindo em coqueiro a gente consegue uns traços. Precisando fazer uma ligação urgente no centro da cidade, perguntei a um guarda onde havia sinal forte de celular. Ele me olhou incrédulo e respondeu: - No presídio!
Aqueles que nunca tiveram um apelido na infância, jamais terão uma boa
história para contar. Se batizar João, se crismar João, se formar João e morrer
João ou outro nome qualquer, que graça tem? Êta vida besta, meu Deus! A
verdadeira felicidade consiste em se ter um nome para cada ocasião. Quem não
tem, trate de inventar um.
Jorge Silva Pacoa, o dileto sobrinho de Maricas Coxeba,
empacou ao ler um livro meu e descobrir que a sua tia, uma Guimarães de rocha,
tinha esse apelido. Ao contrário do povo do Junco que todo mundo foi, é ou será
Cruz e o que diferencia uns dos outros são só os apelidos, o povo de Inhambupe
tem essa mania de grandeza com o nome e sobrenome, apesar de agora abundar os
“dos Santos” e “da Silva”. Vou lhe processar! disse-me ele com todos os sinais
gráficos do mundo. Desafiei-o: vamos ao Junco saber se lá existiu alguma Maria
José Guimarães. Ele foi. Andamos de boteco em boteco entrevistando o povo,
pagando cachaça a uns, tira-gosto a outros, e ninguém nunca ouvira falar nesse
nome. Nem os mais velhos, nem os mais moços, nem os que ainda iam nascer. Mas
quando a pergunta era sobre Maricas Coxeba, ah! todo mundo abria um largo
sorriso: foi uma grande mulher! Até os fedelhos diziam que sabiam quem era. Ou
melhor, quem foi.
Maricas Coxeba foi a mulher mais importante do Junco, depois da
primeira-dama e da esposa de Zé do Padre, o motorista do ônibus que acordava o
povo às cinco da manhã para conduzi-lo até Alagoinhas. Escrivã da terra, aquela
que escrevia “é verdade e dou fé”, se se candidatasse a prefeita ganhava de
lavagem. Mas como a política é machista, nunca lhe deram essa chance.
Devo a ela a minha sobrevivência. Sem ela, seria um moço mais triste do
que sou hoje. Ou melhor, já teria morrido de tristeza. O que ela fez por mim é
digno de entrar nos anais da história.
Era um dia de sol, como todos os dias eram, e o meu irmão mais velho,
famoso no lugar por ser jornalista em São Paulo, chegou na surdina para tomar
um copo de umbuzada, coisa que em São Paulo não tem, disse ele. Quer dizer,
acho que disse, pois eu era pequeno e não me lembro bem. Foi uma festança. Meu
pai mandou matar um carneiro e as mulheres da redondeza ocuparam o terreiro.
Era mulher que não acabava mais, cada uma carregando uma cesta de umbu.
No auge da festa, ele prestou atenção em mim. Era a primeira vez que eu o via.
Perguntou à minha mãe: - Mamãe, como é o nome desse moleque?
- Tonho de Lisboa?! A senhora não sabe que isso não é nome de gente?
- Olhe pra ele: vê se isso é gente!
Ele me olhou penalizado, me deu um cascudo que afundou a minha moleira e
retomou a conversa.
- A senhora não sabe que maltratar animal é crime?
- Mas ele não é um animal. É só um coisa. E Tonho de Lisboa é só um nome.
A maioria dos Tonhos de Lisboa se suicida antes de completar os quinze anos.
- Sei disso. Foi por isso mesmo que dei esse nome a ele.
- E papai, o que diz?
- Toda vez que olha pro moleque, ele diz: “Se tivesse nascido mais feio podia
matar que era monstro”. Satisfeito?
- Não. O moleque ainda tem jeito. Vou falar com Maricas Coxeba. Assim falou Zaratustra. Não sei o que ele fez para convencer a escrivã a
mudar o meu nome, só sei que, graças a ela, consegui me livrar de ser um Tonho
de Lisboa e transpor a adolescência sem a vontade de me matar.
Um momento de ternura entre pai e filho que não se repetirá mais. Certa vez perguntei ao meu pai o que ele falava nesse instante. Ele me disse:
- Falei ao seu irmão: "Meu filho, que bom que você se tornou alguém na vida!"
- E o que ele respondeu? - perguntei.
- Ele me respondeu: "Devo tudo isso ao meu irmão Toninho. Se não fosse ele, eu não seria ninguém". Como assim?, perguntei, surpreso. E ele me disse: "Papai, toda vez que olhava para aquele moleque correndo atrás das cabras, eu dizia a mim mesmo: quero ser qualquer coisa na vida, menos igual a esse coisa ruim!"
De pai pra filho.
Ele dizia:
"Um homem sem seu chapéu
É um homem sem cabeça.
Um homem com seu chapéu,
É simplesmente um homem."
Não necessariamente assim.
Mas era como se fosse.
Nem ia mais à missa
Apesar de toda a devoção,
Porque na igreja era obrigado
A entrar sem seu chapéu.
Foto do dia do lançamento do livro "O cachorro e o lobo", de Antonio Torres, na Fundação Jorge Amado (Pelourinho), em 1997.
♪ ♫ Aí um analista amigo meu / disse que desse jeito não vou viver satisfeito... ♫ ♪
No meu eterno conflito existencial, indicaram-me um analista. Analista de madame, afiançaram-me.
- Você já teve uma calça Lee legítima? - me perguntou o tal analista.
- Não. Tive a Faroeste. Legítima. Comprada no camelô da Feira do Pau, em Alagoinhas.
- E Kichute. Já teve um Kichute?
- Não. Só usava Conga.
- E cueca Zorba? Já usou uma Zorba, a que deixa o passarinho solto?
- Que nada! Só samba-canção da feira da Sulanca, em Caruaru.
- E o relógio Citizen, automático e 21 rubis, já teve um? - Não. Só um Seikuzinho de camelô.
- E cigarro? Fumava Carlton, Marlboro ou Camel king size, filter?
- Não. Só escora-carroça. Os famosos arromba-peito: Astória e Continental sem filtro, que me deixaram sem pulmão.
- Como assim?
- Enfisema, doutor, enfisema... nos dois pulmões.
- E você ainda não morreu?
- Já. Só que se esqueceram de me avisar.
- Ah! Então faça o favor de ir embora. Seu caso não tem solução. Peça à atendente pra devolver seu dinheiro da consulta. E não apareça mais aqui que não sou pastor pra fazer milagres.
O oftalmologista me entregou uma tabela de letras ordenadas aleatoriamente e me disse: - Diga qual a que você vê melhor. - Todas, mas pra não perder tempo, direi as miudinhas: a, i, z, p. - Tá enxergando bem. Vamos pra distância. Comece pelas menores. - p, s, t, v. - Meus parabéns, você não precisa mais de óculos. - Doutor, acho que fiquei com visão de Raio-X. - Como assim? - É que estou vendo a calcinha da sua atendente. - Puta merda, já disse pra ela não vir trabalhar com vestido transparente!
Da escravidão
negra no Brasil, tudo se fala, tudo se cala, ou até mesmo há quem negue a
história de sofrimento do negro trazido a ferro e a fogo nos infectos porões
dos navios tumbeiros, talvez como forma de se aplacar o grito de dor solto da
garganta dos condenados ao suplício das senzalas que ecoa sem clemência na demência
e consciências amorfas. Mas não adianta, por mais que se regurgite essa mancha
negra na constituição da “pátria brasilis”, porque essas vozes suplicantes
estão presas no recôndito de nossa constituição e percepção moral e ética.
A
civilização europeia, em pleno gozo do Iluminismo, entra de ponta-cabeça no
capitalismo e transfere o feudalismo para suas colônias; a Igreja, piedosa e justa,
lucra com o sofrimento de seres humanos sob a desculpa de que não possuíam alma;
um deus de amor e bondade a quem diligentemente a Igreja representava, digladiava
com os deuses africanos, e nessa guerra de santos e demônios a corda
arrebentava do lado do desventurado.
“Senhor
Deus dos desgraçados, dizei-me vós, Senhor Deus, se é loucura... se é verdade
tanto horror perante os céus?!” E o então deus branco respondia potencializando
a força da chibata e minando a resistência do desditoso preso no pelourinho.
A
vinda da Família Real e a consequente independência do Brasil mexeu com a
consciência de alguns bem-aventurados. Abolicionistas surgiam em todos os
cantos e recantos ao longo do Império. Muitas leis se fizeram para aliviar a
escravidão, mas eram só paliativos, um “cala a boca” à oposição. No meio do
caminho do governo imperial houve uma guerra, a do Paraguai, e muitos negros
escravos que foram guerrear como bucha de canhão, retornaram heróis ou bravos
guerreiros e foram alforriados pelo Imperador. Mal o cheiro da pólvora
assentou, o Nordeste foi tomado por uma seca que dizimou mais de quinhentas mil
almas. Não havia água de beber nem comida para a casa grande, então as senzalas
foram abertas e os escravos ficaram ao léu. Por falta de escravos, em 1884 a
abolição foi decretada no Ceará. Já no Sul e Sudeste, por causa da proibição de
se traficar escravos, a imigração ganhava corpo e os negros foram sendo
substituídos gradativamente pelos assalariados asiáticos e europeus. Foi nessa
época que o Brasil passou a viver a dinâmica do capitalismo: construções de estradas de ferro, implantação
do sistema bancário, exportação de café e industrialização.
Nesse
contexto, a pressão dos escravizados ameaçava explodir as portas das senzalas.
Grupos de abolicionistas se uniam com escravos alforriados e davam fuga aos negros
cativos. Quilombos se formavam aos montes por todo o país. Senhores foram
obrigados a negociar salários com os escravos e a escravidão dançava na corda
bamba. Vozes importantes ecoavam na literatura, na imprensa, na política, aqui
e também na Europa. O Brasil era o único país a manter a escravidão e a pressão
ecoava forte nos salões e na senzala do Paço Imperial, ameaçando derrubar o Império.
E para não perder o bonde da História, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, e
ficou conhecida como “Redentora”, pincelando a abolição da escravatura com as
cores imperiais, negando a histórica luta e resistência dos atores abolicionistas
e dos escravos alforriados ou não, cujas aspirações libertárias começaram a
partir da formação de mocambos e quilombos ao longo de mais de três séculos,
sendo que o Quilombo dos Palmares foi sacramentado como símbolo de resistência e
luta pela liberdade.
Com ou
sem a Princesa Isabel, a abolição era um fato. “Redentora” seria se depois da
promulgação da Lei Imperial 3.353 (Lei Áurea) também houvesse um amparo
econômico-social aos setecentos mil escravos libertos que não sabiam para onde
ir ou que atitude tomar diante de um mundo livre por decreto, mas que o tornaram
escravos das necessidades e povoavam as estradas e cidades como zumbis
desorientados.
Deste
modo, os pais joões que encharcaram de sangue as senzalas e os campos e ainda
serviram de cavalo para sinhozinhos montar; as mulheres dos pais joões que
amamentaram os futuros algozes dos seus próprios filhos; as filhas dos pais
joões que foram mucamas para as senhoras e senhorinhas e na folga viravam
escravas sexuais, nessa Pátria Amada Mãe Gentil, onde quer que se vá, onde quer
que se pise, há o sangue talhado de Pai João adubando a terra, há o suor
escorrido e escarrado de Pai João molhando a relva e os jardins, há o lamentoso
banzo de Pai João em noites de senzalas nas nossas consciências amassadas.
E eis que, nalgum ano de Nosso Senhor Jesus Cristo, pelas mãos da
parteira Tindole, nasceu na Fazenda Pilões u'a bela criança que veio para
contrariar o mundo. Riu, em vez de chorar, para espanto das primas que já o
vaticinavam um safado de marca maior. A sua mãe, ainda em estado de êxtase,
pois o rebento lhe parecia um príncipe zárabe, soprou um desconjuro quando o
menino, que mal abrira os olhos, perscrutava curioso o ambiente, detendo-se nos
fartos seios de sua prima Carlinha:
- Quero mamar! Quero mamar!
- É um príncipe - disse a sua mãe.
- É um tarado! - vaticinou a parteira Tindole que ainda lavava suas partes
íntimas e sentiu uma pequena, mas significante ereção.
Seu pai, homem da roça, largou a lida do campo, compareceu ao quarto, olhou o rebento e saiu
contrariado e resmungando:
- Essaí vai dar trabalho! Essaí vai dar trabalho!
Meteu-se num copo de cachaça, acendeu um cigarro de palha, olhou para o
horizonte e viu um lindo pôr de sol por detrás do Cruzeiro dos Montes. Então
resmungou sublimado:
Resolveu dar-se de presente de setenta anos uma visita a um amigo no pantanal mato-grossense. Chegando à cidade hospedou-se na primeira pensão que encontrou. Pelo menos a placa dizia ser familiar.
Cansado, faminto, sujo, pediu à dona da pensão para preparar dois ovos no café da manhã enquanto ele tomava banho. Pedido feito, pedido aceito e na hora de colocar o sal nos ovos ela ficou na dúvida: e se ele fosse cardíaco e não pudesse comer sal? Dirigiu-se à porta do quarto e indagou: