Da escravidão
negra no Brasil, tudo se fala, tudo se cala, ou até mesmo há quem negue a
história de sofrimento do negro trazido a ferro e a fogo nos infectos porões
dos navios tumbeiros, talvez como forma de se aplacar o grito de dor solto da
garganta dos condenados ao suplício das senzalas que ecoa sem clemência na demência
e consciências amorfas. Mas não adianta, por mais que se regurgite essa mancha
negra na constituição da “pátria brasilis”, porque essas vozes suplicantes
estão presas no recôndito de nossa constituição e percepção moral e ética.
A
civilização europeia, em pleno gozo do Iluminismo, entra de ponta-cabeça no
capitalismo e transfere o feudalismo para suas colônias; a Igreja, piedosa e justa,
lucra com o sofrimento de seres humanos sob a desculpa de que não possuíam alma;
um deus de amor e bondade a quem diligentemente a Igreja representava, digladiava
com os deuses africanos, e nessa guerra de santos e demônios a corda
arrebentava do lado do desventurado.
“Senhor
Deus dos desgraçados, dizei-me vós, Senhor Deus, se é loucura... se é verdade
tanto horror perante os céus?!” E o então deus branco respondia potencializando
a força da chibata e minando a resistência do desditoso preso no pelourinho.
A
vinda da Família Real e a consequente independência do Brasil mexeu com a
consciência de alguns bem-aventurados. Abolicionistas surgiam em todos os
cantos e recantos ao longo do Império. Muitas leis se fizeram para aliviar a
escravidão, mas eram só paliativos, um “cala a boca” à oposição. No meio do
caminho do governo imperial houve uma guerra, a do Paraguai, e muitos negros
escravos que foram guerrear como bucha de canhão, retornaram heróis ou bravos
guerreiros e foram alforriados pelo Imperador. Mal o cheiro da pólvora
assentou, o Nordeste foi tomado por uma seca que dizimou mais de quinhentas mil
almas. Não havia água de beber nem comida para a casa grande, então as senzalas
foram abertas e os escravos ficaram ao léu. Por falta de escravos, em 1884 a
abolição foi decretada no Ceará. Já no Sul e Sudeste, por causa da proibição de
se traficar escravos, a imigração ganhava corpo e os negros foram sendo
substituídos gradativamente pelos assalariados asiáticos e europeus. Foi nessa
época que o Brasil passou a viver a dinâmica do capitalismo: construções de estradas de ferro, implantação
do sistema bancário, exportação de café e industrialização.
Nesse
contexto, a pressão dos escravizados ameaçava explodir as portas das senzalas.
Grupos de abolicionistas se uniam com escravos alforriados e davam fuga aos negros
cativos. Quilombos se formavam aos montes por todo o país. Senhores foram
obrigados a negociar salários com os escravos e a escravidão dançava na corda
bamba. Vozes importantes ecoavam na literatura, na imprensa, na política, aqui
e também na Europa. O Brasil era o único país a manter a escravidão e a pressão
ecoava forte nos salões e na senzala do Paço Imperial, ameaçando derrubar o Império.
E para não perder o bonde da História, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, e
ficou conhecida como “Redentora”, pincelando a abolição da escravatura com as
cores imperiais, negando a histórica luta e resistência dos atores abolicionistas
e dos escravos alforriados ou não, cujas aspirações libertárias começaram a
partir da formação de mocambos e quilombos ao longo de mais de três séculos,
sendo que o Quilombo dos Palmares foi sacramentado como símbolo de resistência e
luta pela liberdade.
Com ou
sem a Princesa Isabel, a abolição era um fato. “Redentora” seria se depois da
promulgação da Lei Imperial 3.353 (Lei Áurea) também houvesse um amparo
econômico-social aos setecentos mil escravos libertos que não sabiam para onde
ir ou que atitude tomar diante de um mundo livre por decreto, mas que o tornaram
escravos das necessidades e povoavam as estradas e cidades como zumbis
desorientados.
Deste
modo, os pais joões que encharcaram de sangue as senzalas e os campos e ainda
serviram de cavalo para sinhozinhos montar; as mulheres dos pais joões que
amamentaram os futuros algozes dos seus próprios filhos; as filhas dos pais
joões que foram mucamas para as senhoras e senhorinhas e na folga viravam
escravas sexuais, nessa Pátria Amada Mãe Gentil, onde quer que se vá, onde quer
que se pise, há o sangue talhado de Pai João adubando a terra, há o suor
escorrido e escarrado de Pai João molhando a relva e os jardins, há o lamentoso
banzo de Pai João em noites de senzalas nas nossas consciências amassadas.
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