quarta-feira, 13 de maio de 2020

Pai João, de Jorge de Lima, é a alegoria histórica da era escravagista

Para entender o texto é preciso ouvir o poema.





Da escravidão negra no Brasil, tudo se fala, tudo se cala, ou até mesmo há quem negue a história de sofrimento do negro trazido a ferro e a fogo nos infectos porões dos navios tumbeiros, talvez como forma de se aplacar o grito de dor solto da garganta dos condenados ao suplício das senzalas que ecoa sem clemência na demência e consciências amorfas. Mas não adianta, por mais que se regurgite essa mancha negra na constituição da “pátria brasilis”, porque essas vozes suplicantes estão presas no recôndito de nossa constituição e percepção moral e ética.

A civilização europeia, em pleno gozo do Iluminismo, entra de ponta-cabeça no capitalismo e transfere o feudalismo para suas colônias; a Igreja, piedosa e justa, lucra com o sofrimento de seres humanos sob a desculpa de que não possuíam alma; um deus de amor e bondade a quem diligentemente a Igreja representava, digladiava com os deuses africanos, e nessa guerra de santos e demônios a corda arrebentava do lado do desventurado.

“Senhor Deus dos desgraçados, dizei-me vós, Senhor Deus, se é loucura... se é verdade tanto horror perante os céus?!” E o então deus branco respondia potencializando a força da chibata e minando a resistência do desditoso preso no pelourinho.

A vinda da Família Real e a consequente independência do Brasil mexeu com a consciência de alguns bem-aventurados. Abolicionistas surgiam em todos os cantos e recantos ao longo do Império. Muitas leis se fizeram para aliviar a escravidão, mas eram só paliativos, um “cala a boca” à oposição. No meio do caminho do governo imperial houve uma guerra, a do Paraguai, e muitos negros escravos que foram guerrear como bucha de canhão, retornaram heróis ou bravos guerreiros e foram alforriados pelo Imperador. Mal o cheiro da pólvora assentou, o Nordeste foi tomado por uma seca que dizimou mais de quinhentas mil almas. Não havia água de beber nem comida para a casa grande, então as senzalas foram abertas e os escravos ficaram ao léu. Por falta de escravos, em 1884 a abolição foi decretada no Ceará. Já no Sul e Sudeste, por causa da proibição de se traficar escravos, a imigração ganhava corpo e os negros foram sendo substituídos gradativamente pelos assalariados asiáticos e europeus. Foi nessa época que o Brasil passou a viver a dinâmica do capitalismo:  construções de estradas de ferro, implantação do sistema bancário, exportação de café e industrialização.

Nesse contexto, a pressão dos escravizados ameaçava explodir as portas das senzalas. Grupos de abolicionistas se uniam com escravos alforriados e davam fuga aos negros cativos. Quilombos se formavam aos montes por todo o país. Senhores foram obrigados a negociar salários com os escravos e a escravidão dançava na corda bamba. Vozes importantes ecoavam na literatura, na imprensa, na política, aqui e também na Europa. O Brasil era o único país a manter a escravidão e a pressão ecoava forte nos salões e na senzala do Paço Imperial, ameaçando derrubar o Império. E para não perder o bonde da História, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, e ficou conhecida como “Redentora”, pincelando a abolição da escravatura com as cores imperiais, negando a histórica luta e resistência dos atores abolicionistas e dos escravos alforriados ou não, cujas aspirações libertárias começaram a partir da formação de mocambos e quilombos ao longo de mais de três séculos, sendo que o Quilombo dos Palmares foi sacramentado como símbolo de resistência e luta pela liberdade.

Com ou sem a Princesa Isabel, a abolição era um fato. “Redentora” seria se depois da promulgação da Lei Imperial 3.353 (Lei Áurea) também houvesse um amparo econômico-social aos setecentos mil escravos libertos que não sabiam para onde ir ou que atitude tomar diante de um mundo livre por decreto, mas que o tornaram escravos das necessidades e povoavam as estradas e cidades como zumbis desorientados.  

Deste modo, os pais joões que encharcaram de sangue as senzalas e os campos e ainda serviram de cavalo para sinhozinhos montar; as mulheres dos pais joões que amamentaram os futuros algozes dos seus próprios filhos; as filhas dos pais joões que foram mucamas para as senhoras e senhorinhas e na folga viravam escravas sexuais, nessa Pátria Amada Mãe Gentil, onde quer que se vá, onde quer que se pise, há o sangue talhado de Pai João adubando a terra, há o suor escorrido e escarrado de Pai João molhando a relva e os jardins, há o lamentoso banzo de Pai João em noites de senzalas nas nossas consciências amassadas.




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