sábado, 3 de julho de 2010

Em Frente ao Espelho - Eduardo Proffa




- Não! Não! Não!

Negarei três vezes que não choro por mim... Que não choro pelo fim, ou pelo novo recomeçar...

Choro pelo trajeto de catástrofes naturais que ocorreram nestes últimos meses...

Choro pela falta de consciência política...

Choro pelo grande índice de analfabetismo...

Choro pelo pífio salário que recebemos...

Choro pelas drogas, mortes, estupros, prostituição infantil, pedofilia...

Choro por uma equipe palpável, e que com toda certeza tinha todas as condições de conquistar o hexa-campeonato...

Choro por tanta coisa, porém choro pelas perspectivas latentes que existiam em um “zilhão” de brasileiros...

Acredito que fizemos o nosso melhor e não posso entender que um locutor, ou comentarista que tenha condutas tão negligentes interfiram em nossos conceitos...

Execro pessoas que torçam contra seu país, seus irmãos e seus pares...

Nosso mundo cego e medieval ainda é conduzido por regras definidas pela oligarquia e clero constituído, porém não podemos nos deixar levar. Existem coisas mais importantes:

Nosso filho que vai nascer...

Nosso cônjuge e família...

Nosso trabalho...

Nosso amanhecer...

Nosso entardecer...

Nossos amigos...

Nossa poesia de viver...

Conduzir o barco no maremoto é que são elas!

Na vida tudo é mais importante do que tudo, é questão de prioridade... Então, levanta sacode a poeira e dá a volta por cima...

Pensando direitinho: terça, tenho que trabalhar o dia inteiro...

Putz! Fazer o quê? Quem mandou acreditar em personagem de contos de fada... E, ainda tinha o pé frio do Mick Jagger...


Nota do Blog: Eduardo Proffa é poeta, compositor, cantor e professor de Educação Física na rede pública do estado das Alagoas.



quarta-feira, 30 de junho de 2010

Das Artimanhas do Torto - Cineas Santos




De Roseane e a dinheirama

É perceptível o extraordinário esforço que a Santa Madre Igreja vem fazendo no sentido de reabilitar a figura do Diabo. Por favor, não me tomem por herege. Explico tudo: Bento XVI, homem de vasta sabença, já se deu conta de que, sem a presença do mal, o bem se esvaece. Urge, pois, reabilitar o Tinhoso antes que se comece a duvidar da existência de Deus. Há quem afirme que a derrocada do Demo se iniciou no dia em que São Paulo (Coelho) desistiu de apostar nele. Antes de acharem que exagerei na dose do chá, um refresco para os desmemoriados. Em 1982, Paulo Coelho publicou, pela Shogum Editora, Arquivos do Inferno, livrinho sobre o qual se derramou conveniente silêncio. Com um pouco de sorte, é possível encontrar algum exemplar perdido nos sebos do mundo. A partir daí, o Mago bandeou-se para o partido do Altíssimo e, embora continue cometendo os mesmos erros gramaticais, tornou-se o maior vendedor de livros do mundo. Sua meta é provar que “Deus escreve certo por linhas tortas”. Mas isso já é outra história.

Como autêntico sertanejo que sou, nunca duvidei da existência do Troncho. Certa feita, ouvi de uma irmã catequista uma advertência que me marcaria profundamente: “O Demônio é um cão raivoso preso a uma corrente de aço. Para não ser mordido por ele, basta manter prudente distância”. A piedosa freirinha só se esqueceu de um detalhe: estipular a extensão exata da corrente. Volta e meia, ainda me pergunto, apavorado: Não estarei muito próximo? Quase sempre estou.

Um exemplo: certa feita, em 1992, fui procurado por um cidadão falante, maneiroso, que, sem motivo aparente, resolveu brindar-me com uma garrafa de “Dom José”, vinho do Porto de boa safra. Puxou conversa, falou de poesia, de música e revelou em mim qualidades que eu nem suspeitava que existissem... Finalmente, exibiu as presas: “Caro mestre, venho lhe fazer uma proposta irrecusável”. Tremi nos tamancos: sempre que me apresentam propostas irrecusáveis, fico alguns centavos mais pobre. Intrépido, prosseguiu: “Como o senhor já deve saber, a governadora Roseana Sarney desponta como o ‘fato novo’ na corrida pela presidência da República. Eis a proposta: sou editor de uma revista política e vou lançá-la, nacionalmente, com a Roseana na capa”. Até aí, nada de extraordinário. O desfecho: “Com essa edição, pretendo faturar, no mínimo, meio milhão de reais”. Diante do meu espanto, arrematou: “Cada inserção de uma mensagem de apoio de um município maranhense custará cinco mil reais. Que prefeito se recusará a participar dessa campanha, levando-se em conta o fato de a governadora ainda ter dois anos de mandato? Venho propor ao senhor uma parceria: racharemos despesas e receitas, meio a meio”. Quando lhe perguntei o porquê de ter sido eu o escolhido, tentou fisgar-me com o anzol da vaidade: “O senhor é um homem sério, tem o respeito de todos”. Atordoado com a possibilidade de enriquecer subitamente, pedi um tempinho para refletir. Ele aquiesceu, com a advertência: “Duas semanas, professor. Lembre-se de que estamos correndo contra o tempo!”. Ao retirar-se, senti no ar um inexplicável cheiro de enxofre.

Antes do prazo que me fora concedido, estourou o escândalo da dinheirama encontrada no escritório da governadora. O balão murchou. Não tive dúvida: aquele moço blandicioso era a reencarnação do Tinhoso. Vade retro, Satanás!

terça-feira, 29 de junho de 2010

Torcida Até Debaixo d'Água - Luiz Alberto Machado





De Palmares - PE



Gentamiga, uma tragédia! E a casa caiu!
Choveu tanto que até os sapos, como diz meu conterrâneo Ascenso Ferreira, pediram aos céus clemência.

O meu povo pernambucalagoano viu a catástrofe nesses últimos dias: cidades completamente alagadas, moradias destruídas, gente desabrigada.

Na minha terra de Hermilo Borba Filho não deu nem para ficar balançando as pernas do alto do sino da igreja da matriz, não sobrando nem minha casa que restou só escombros com a desolação geral de outros tantos sem lar.

O Rio Una se juntou ao Pirangi e tomaram conta da situação por lá. Como também transbordaram muitos rios nos dois estados, só deixando os estragos pelas inundações. Um desmantelo dos grandes mesmo.

No meio dessa consternação toda, o jogo mesmo não deu pra ver. Só pude brechar pescadores de geladeira e brebotes boiando, canoeiros solidários, correria da muita de nego até de um olho só e muito oh e chororô.

Mas aprumando o papo da torcida na copa do mundo, o negócio ainda anda devagar, quase parando. Soube que ganhou, mas não convenceu. Até o timeco que ganhamos apertado na primeira rodada, sofreu uma lavagem de 7 de Portugal. Pode? Estão colocando a culpa na jabulani. Ou no juiz que deixou arriar a lenha, da gente ver que pros tanques da Costa do Marfim, do pescoço pra baixo tudo é canela. Foi cada solada de chegar a ver o Elano de cambitos torados. Afora as cipoadas que foram distribuídas a granel do juiz francês deixar rolar. Um vitupério!
Também, não adianta falar nada, a coisa está mais pra gente ter um treco, ou sair troncho com chiliques mais azoados. Por que não convocam emergencialmente a Marta pra desmoralizar os paspalhos?

Pra mim essa seleção de bem comportados está feito o Banco do Brasil ou a Caixa Econômica Federal: só tem alarde e quando a gente vai ver a coisa é mais precária que merece ser taxada de esculhambação de quinta categoria. Não tem o mínimo respeito pelo cidadão consumidor.

Vamos empurrar o jipe. Se o mandú não pega, minha fia, não tem outro jeito! Tem que empurrar o troço e segurar o pipoco dos peidos pra ver se vai no tranco. Se todo mundo num fizer força, aí acho que a coisa vai empenar de vez. Quem bota fé?

As previsões continuam. Até uma equipe de pesquisadores do Centro de Estudos do Risco (CER) do Departamento de Estatística da UFScar, já sapecou o campeonato para Alemanha (27,5%), ficando a Holanda em segundo (17,05%), Brasil, em terceiro (10,78%) e Argentina (7,86%), em quarto. Nem mesmo a gente aqui acredita que a gente chegue lá. Só o economista Jim O Néill da Goldmann Sachs que nas pesquisas dele acha que o Brasil ganha, seguido da Espanha, Alemanha e Inglaterra.

Enfim, entre mortos e feridos, até agora escaparam todos. Vou colocar a solidariedade em dia e ajudar a minha gente das cidades desoladas. E vamos que vamos capengando embaixo da chuva rumo ao hexa em 2014 e cantando o frevo da Folia Caeté.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Discussão - Luís Pimentel






– Para onde vocês vão?
– Vou levar o Júnior ao estádio.
– Que estádio?
– De futebol, claro.
– Futebol, Arlindo?
– Por que o espanto, Clarinha?
– Logo hoje?!
– O que tem hoje?
– Hoje é domingo.
– Exatamente. É dia de jogo.
– Combinei de levar o Júnior ao teatro.
– Combinou com o próprio Júnior?
– Com uma amiga, que também vai levar o filho dela.
– Ele prefere futebol.
– Teatro é mais legal.
– O menino gosta de futebol, Clarinha.
– O menino ou o pai do menino?
– Os dois.
– Ele vai ao teatro e pronto.
– Escuta, que tal perguntar ao garoto o que ele prefere fazer?
– Boa idéia. Vou perguntar.
– Isso. Faça isso. Mas se ele preferir essa droga de Flamengo de novo, você me paga.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Ih! Sei não. Acho que essa seleção vai matar gente do coração - Luiz Alberto Machado

Pronto, entrei em campo com meus bacorejos. E quando vou pro jogo é sem medo de perder. Empate é derrota pros dois.



De Era Dunga II



A distância entre ganhar ou perder é como o fio da navalha ou um cabelinho de sapo: qual? Quem estiver mais preparado, motivado, com a sorte em dia e a vontade pro que der e vier, não dá outra. Quem tem medo de cagar, não come. E morre de fome.

Quando o Brasil começou a jogar pros lados, de banda, meio que sem graça, saquei logo o aguado. Desliguei e resolvi arrumar uma lavagem de roupa. Pra falta de garra, de raça e de mostrar pro que veio, melhor assobiar qualquer outra cantiga. Parece mais o ditado popular: quem tem furico, tem medo.

Como qualquer melepeiro entende mais essa seleção que eu, encontrei uma curiosidade: uma pesquisa feita por analistas do banco inglês Standard Chatered (ah, esses entendem mesmo do riscado!), baseada nos critérios das análises de Monte Carlo, nos spreads dos swaps para default de crédito e na taxa de cambio real efetiva (como é que é?!?!), publica um relatório reunido num catatau de 73 páginas, que o Brasil não será campeão nessa Copa de 2010 de jeito nenhum. Novidade!

Os 18 analistas de crédito e câmbio do Departamento de Análise de Risco da instituição financeira mencionada, chegaram nessa conclusão cientifica por meio de metodologias estatísticas que comprovam tintim por tintim, noves fora e prova dos nove. Negócio sério mesmo! Babau!

Para eles os campeões serão ou Espanha (que emperrou hoje), ou Alemanha, ou Inglaterra ou Argentina. E é?

Se eu tivesse no meio deles acrescentaria além desses qualquer um, debochando com uma risada boa.

Outros que presumo serem raçudos especialistas no assunto são os videntes que flagrantemente sabem, além do futebol, toda obviedade da besteirada nunca vista. Pois é, eles tambem adivinham que o Brasil não ganhará. E lá vai a vidente Maca que aposta na Alemanha derrotando o Brasil na final. A Miss Knock diz que dá Gana. O feiticeiro Zulu Sebenzile Nsukwini sapeca na África do Sul (que levou um chocolate do Uruguai). A Bete Strauss apostou na Espanha (de novo!?), Inglaterra, Italia, Alemanha ou França (só?). A cartomante Cinara Mattos diz que vai de França. O bruxo mexicano Antonio Vásquez acha que o Brasil perderá na final para um selecionado europeu, indicando a Holanda. A numeróloga Fatima Cald vai de Espanha ou Itália. O espírita Ubirajara Pinheiro diz que a final será entre Itália e Alemanha. Somente o nigeriano John Adatiri e o Pai Paulo de Oxalá apostaram que dará Brasil. Eita!

Nessa penca de pitacos, também o adivinho presidenciável sempre preterido Doro, botou as mangas de fora e água na moringa vociferando seu borborigmo intelectual: dá Brasil. Isso, entre flatulências e coprólitos, batia o pé dizendo que não adianta olho gordo, secagem, macumba, vudu, urucubaca braba e esconjurada geral! E pra imunizar a nossa seleção o apadeguado tomou a providência de fazer um arrumado com pena de bacurau, patuá, carranca, sino-salomão e cocar para enfunar o peito, saçaricando que o Brasil não vai voltar da África do Sul com os beiços com que mamou.

Sei não. Gostaria muito de queimar minha língua – feito fiz com Felipão: meti o pau até o jogo da Inglaterra. Depois, fiquei na minha. Peru que não se emenda, melhor piar baixinho ou cair no mutismo.

Mas digo lá: ih, acho que essa seleção vai matar muita gente do coração.


Nota do Blog: Luiz Alberto Machado é poeta, músico, escritor, compositor pernambucano com um pé na antiga província, Alagoas. Mais informações podem ser colhidas no seu site http://www.luizalbertomachado.com.br/

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Vuvuzelas Silenciosas - Macléim Damasceno

De Era Dunga


Escrever obviedades remoídas sobre a seleção brasileira, seu técnico e jogadores, seria o mesmo que murmurar um sinal de alerta anunciando um enxame de abelhas no meio das vuvuzelas a todo vapor. Dizer que estranho a nossa seleção, pentacampeã mundial, ter o seu ponto forte na defesa e abrir mão do talento em prol de uma seriedade que descaracteriza o nosso futebol, além de óbvio, é frustrante como uma retranca. Seja de qual era for. No entanto, o interessante é que o meu ponto de vista camicase também não passa de obviedades. Sobretudo, aquelas que, paradoxalmente, estão camufladas pelo silêncio dos interesses econômicos, pela conivência vantajosa da grande mídia, pelo óbvio escondido sob os tapetes, os quais torcedor nenhum admite sequer conjeturar.

Descarto o maniqueísmo intelectualoide que permeia, sobretudo, os pernas-de-pau sem barriga de chopinho. Porém, se o Brasil é o país do futebol, causa e efeitos lhes são inerentes. Se não, vejamos alguns fundamentos, não necessariamente técnicos e táticos, e suas implicações sócio-culturais. Tudo, claro, a partir do meu ponto de vista camicase. Antes, porém, uma historinha interessante: dizem que quando nem sonhava existir Charles Miller, por volta de 3000 anos antes de Cristo, o futebol deu o seu pontapé inicial com os soldados chineses – eles estão em todas mesmo – que, depois das guerras, usavam como bola as cabeças decepadas dos adversários derrotados. A partir daí, cabeças de técnicos e jogadores de futebol têm rolado diariamente. Porém, são apenas essas as que rolam. As que comandam permanecem chutando.

Mas, vamos aos tais fundamentos do meu ponto de vista camicase, sem qualquer pretensão de arranhar os alicerces da devoção brasileira pelo futebol e, tão pouco, da minha vocação para torcedor sazonal. Pois bem, no Brasil tudo começa com a criação de ídolos que naturalmente deixam de estudar, sem qualquer intervenção do Estado, e formatam no imaginário coletivo - principalmente das crianças - a legitimidade desse desinteresse. Depois, dentro das quatro linhas, para delírio dos torcedores, a violência faltosa e desleal se justifica sob a perspectiva da garra, da raça e da torcida a favor. A dissimulação, no intuito de ludibriar, de enganar, de auferir vantagens, é algo corriqueiro e plenamente aceito pela massa e pelos atores de uma partida de futebol. A desmoralização da autoridade em campo (o árbitro) parece ser uma tentativa constante e, talvez, o único fator de irmandade entre as torcidas. Tudo isso, que doravante chamarei de ingredientes, é cozinhado durante noventa minutos num caldeirão efervescente. Frio ou quente, não é consumido apenas ali, direto do caldeirão. O caldo forte também é servido para viagem.

Portanto, é óbvio que os tais ingredientes serão, no mínimo, arrotados no dia a dia do “torcedor-cidadão” de todos os níveis e classes sociais.

Nota do Blog: Macléim Damasceno é jornalista, cantor, compositor, programador da Rádio Educativa de Maceió e cronista nas horas vagas.
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terça-feira, 15 de junho de 2010

O Brinde

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De Alagoinhas Atlético Clube - 1973



Lourival Andrade acumulava as funções de diretor, comentarista e narrador esportivo da Rádio Emissora de Alagoinhas nos anos 1970, cuja importância aumentou depois da inauguração do Estádio Antonio Carneiro e a consequente fundação do Alagoinhas Atlético Clube, ou simplesmente “Atlético”.

Lourival, na sua vida de artista do microfone, perseguia dois sonhos: um, era ser como Djalma Costa Lino, à época, o maior narrador esportivo do rádio do Norte-Nordeste. Para tanto, se esmerava no microfone, principalmente em jogos de grande audiência, como Atlético versus Bahia ou Vitória.

O outro sonho era narrar uma final do campeonato baiano de futebol diretamente do Estádio da Fonte Nova, quando o Atlético fosse um dos protagonistas. Em 1973, aconteceu o milagre e Lourival me procurou no Armazém União, do meu tio Edgard, onde eu exercia a função de gerente:

– Meu querido, preciso falar com você.
– Pode falar, Lourival.
– Queria que seu armazém patrocinasse a transmissão diretamente da Fonte Nova da final do campeonato baiano no próximo domingo. Vamos ser campeão de audiência no interior. Mais ainda se o Atlético sair vencedor.
– Sem problemas, Lourival, mas há um porém. Aliás, dois.
– Quais?
– Primeiro: o armazém não é meu. Segundo: na hora de você dar o prefixo da rádio, terá que dizer assim: “Rádio Emissora de Alagoinhas, quatro bocas de alto-falantes falando baixinho, baixinho para todo o mundo”...
– Ora, vá...
– Calma! Calma! Calma. Tô brincando.

O Armazém União não só patrocinou a transmissão como pagou a passagem desse escriba que vos fala para ver o Atlético de Alagoinhas ser garfado em dois gols irregulares do Bahia e voltar para casa com a inconformidade à flor da pele. Em terra de campeões, ser vice e último lugar não há diferença.

Lourival Andrade dividiu seus noventa minutos de fama com seu fiel repórter de campo Belchior, um jovem estudante que também exercia a função de cobrador de ônibus. O primeiro gol do Bahia, ele descreveu assim:

– Douglas recebeu a bola em impedimento e chutou para o gol, sem a menor chance de defesa para o goleiro Gato. E agora tá o maior cu de boi na área do Atlético...
– Olha o Português, Belchior! – advertiu Lourival.
– Esse tal de Português vai entrar no lugar de quem, Lourival?

No ano seguinte, Lourival foi à forra das brincadeiras que eu fazia a ele. Copa do Mundo de 1974. Ele anunciava brindes e mais brindes em sua resenha esportiva, ao meio-dia, para o primeiro que ligasse e dissesse o placar da final da Copa de 1970, com os devidos artilheiros. Metade e meia da população de Alagoinhas sabia, mas eu tive a sorte de estar perto do telefone naquele momento. Ávido para ganhar um prêmio, liguei para o programa. Ia ser de lambuja.

– Alô, Lourival, suspenda a promoção que o prêmio já é meu. A final de 70 foi Brasil 4, Itália 1. Com os gols de Pelé, Gerson, Jairzinho e Carlos Alberto, para o Brasil, e Roberto Boninsegna para a Itália.
– Ok., você ganhou. Venha buscar seu brinde até as 14 horas de hoje.

O armazém ficava perto da Rádio Emissora e em menos de cinco minutos estava lá, ansioso para receber o tal brinde. Depois de passar um tempo falando abobrinhas, no ar, me entregaram um envelope com timbre da emissora contendo minha prenda. Feliz, abri na saída do estúdio e contive um palavrão ante a surpresa: simplesmente eram tabelas dos jogos da Copa fornecidas pelo Armazém União.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Um Sequestro Inesquecível - Luís Pimentel



De Ou casa ou morrre!


Já que o momento é inteiramente futebolístico, vai uma sobre tema:

O acontecido aconteceu na cidade de Nazaré das Farinhas, faz muito tempo. O time era o Misererenóbis Futebol Clube. A escalação: Capenga, Tonho Doido, Bilau e Coceira. Zé Sapateiro e Alecrim. Nenga, Cabeça-de-Nêgo, Desvairado e Timbu. O esquema de jogo era o 4-2-4, como nos velhos tempos. Lateral não era ala. Não tinha um líbero, todo mundo corria. E tinha beque, ponta-de-lança, essas coisas.

O Miserê – assim carinhosamente chamado pela torcida – era o terror interiorano. Líder do campeonato intermunicipal de equipes, derrotara, naquele ano, todos os adversários, inclusive o glorioso Esporte Clube Berimbau, de Feira de Santana.
Os onze – não havia reserva; se alguém se machucasse, o time jogava no prejuízo – guerreiros de Nazaré embarcaram no sábado pela manhã para Cruz das Almas. A decisão do título seria na tarde do dia seguinte, com o vigoroso Cruzmaltense. A viagem de ônibus durava pouco mais de uma hora, mas era melhor embarcar na véspera, para no dia estarem todos bem descansados.

O sequestro inesquecível foi perpetrado na sexta-feira, depois da meia-noite. Letícia era filha de Seu Joaquim, português que esbarrou em terras baianas por engano e acabou importante proprietário da única mercearia da cidade e com status de quase prefeito.

O atleta miserenobense Zé Sapateiro cultivava um olho grande para cima da menina, há muito tempo. E era correspondido: o olhar de Letícia formava, com o dele, uma linha de passe bem legal.

Zé combinou com os demais companheiros de equipe se juntar ao time em Cruz das Almas, pois precisava embarcar mais cedo. Então passou a mão em Letícia e se mandaram, escondendo a moça em casa de um correligionário, lá mesmo em Cruz. No sábado ao meio dia já estava com os companheiros, com cara de sonso, fazendo gestos diante das notícias:

– Sequestraram Letícia, filha de Seu Joaquim.
– Não diga!
– O português garante que vai matar o seqüestrador.
– Ele está certo.
– Mas diz que antes vai capar o infeliz.
– Nossa Senhora!

Alguém denunciou, como era de se esperar. Seu Joaquim manteve a polícia longe do caso, encheu a espingarda de chumbo e viajou no domingo para a cidade da grande decisão. Foi direto para o estádio e pulou a cerca que separava os craques da torcida, atirando feito um doido.

Letícia também pulou a cerca e se ajoelhou diante do pai, chamando o velho à razão com essa pérola:

– Faz isso não, pai. O Miserê tá perdendo o jogo e Zé Sapateiro, jogando um bolão, é a nossa única esperança de empate e, depois, de vitória!

Seu Joaquim resolveu, em nome do espírito esportivo, pensar duas vezes, adiar a contenda, deixando a vingança para depois do jogo. Sentou-se em um banquinho de madeira na arquibancada improvisada e começou a torcer também.

Zé meteu um golaço e deu outro de bandeja para Alecrim marcar e virar o jogo, garantindo o título e conquistando, também, o coração do sogro.

Voltaram todos para Nazaré festejando, dando tiros de comemorações para o alto, com a espingarda do português e anunciando o fim do seqüestro: sem sangue, sem resgate, sem uma linha sequer nos jornais.

sábado, 12 de junho de 2010

POR QUEM ERRA MEU CORAÇÃO - Cineas Santos




De Bola



Esférica tentação de todos os meninos,
lua cheia de graça nos pés de Ademir,
trigal de Van Gogh a bailar nos gramados.
Cúmplice de Adílio,treteiro e tinhoso:
finge que bate a acaricia...
Não falarei Dele, suprema magia,
de quem foste escrava, amante, estrela-guia;
nem do Outro, anjo-passarinho,
revoadas de alegria.
Falarei de mim, coração e pernas em descompasso,
pois ao menor sinal de ti,todo emoção
em erros me desfaço.
Vício que consome e alimenta,
paixão que nunca se evola.
Bela, incomparavelmente bela, Bola.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Sobre Pessoas - 16 - Antonio Torres

Oficialmente a Copa do Mundo de Futebol começa hoje, com o jogo África do Sul e México. Brindo os leitores do blog com esta belíssima e emocionante crônica de Antonio Torres sobre João Saldanha.

Foi um prazer te ouvir, João

“As pessoas não morrem. Ficam encantadas”.
Guimarães Rosa – outro João

De João Saldanha



As tevês não mostraram as fotos em que ele aparecia abraçado a Ho Chi Min e Mao Tse Tung. Nem poderiam. Foram queimadas por sua filha Rutinha, em 1972. É preciso dizer quais eram as paranóias de 1972?


E se a imprensa não lhe poupou encômios, não chegou a contar muito de sua história – uma rica, atribulada e longa história, intrinsecamente ligada à própria História do nosso tempo.

João Saldanha era um arquivo vivo de acontecimentos. E adorava relembrá-los, em narrações que dariam para entreter os seus ouvintes por mil e uma noites.

Foi assim que o conheci um pouco mais, em Maricá, no litoral fluminense, sempre que passávamos um fim de semana na casa da sua filha Rutinha (a Kika), e do Rogério, que ficava perto da dele, onde o almoço era sagrado. E ai se não lhe obedecêssemos! E que chegássemos cedo. Impunha tal condição com uma desculpa: “Para os meninos aproveitarem bem a piscina”. (Os meninos eram os meus filhos, Gabriel e Tiago, que a Kika e o Rogério cuidavam como se deles fossem). E ali, numa mesa à sombra de um avarandado, meio que tomando conta das crianças, dávamos os trabalhos por iniciados, significando isto o destampar da primeira garrafa de cerveja, para destravar o seu baú de memórias.

“Põe isto no papel, João, antes que tudo se perca na espuma dos dias” – eu me dizia, sem conseguir interromper aquele senhor de uma energia impressionante que, quando desatava a falar, não parava mais. Às vezes, lá pelas tantas, ele se lembrava de que precisava escrever uma crônica, para deixar na portaria do Jornal do Brasil, a caminho do Maracanã, onde dali a pouco iria cumprir a sua tarefa de comentarista radiofônico do jogo daquele domingo. Então pegava uma máquina de escrever portátil e papel e, numa velocidade de metralhadora, batia as suas trinta linhas. “Vê aí” – dizia, me passando a página escrita, e uma caneta, para que eu corrigisse os seus erros. Mas que erros? Aqui e ali um tropeço datilográfico. E nada mais.

No embalo, ele enfiava outro papel na máquina. E aí engatava uma segunda crônica, depois outra e mais outra, e isso num tempo mais rápido do que o que levávamos para beber um copo de cerveja. E eram linhas soltas, espontâneas, escritas por alguém que jamais se submetera a ditadura alguma, muito menos à da gramática.

João Saldanha escrevia como falava. Daí o charme, a força, a extraordinária expressividade do seu texto. Ele tinha a voz da galera em seus ouvidos. E batia firme e fundo contra os que a traíam. Temperamental por natureza, não conseguia evitar os rompantes violentos, quando contrariado, como no dia em que deu um tiro à porta de uma farmácia do Leblon, na qual uma sua empregada doméstica fora destratada. A sangue frio, era uma doce figura. De uma simpatia inacreditável.

Legou-nos uma verdadeira epopéia – Os subterrâneos do futebol -, em que relata uma excursão caça-níqueis do Botafogo por países das Américas, sob o seu comando. Treinou a seleção de feras que deu o tricampeonato mundial ao Brasil, mas não recebeu os louros, por não aceitar a intervenção de um ditador de plantão - o general Emílio Garrastazu Médici -, que teria tentado meter o bedelho em seu trabalho. (Seria injusto empanar aqui os inegáveis méritos do Zagallo, o técnico que o substituiu, e teve um desempenho brilhante nos gramados do México, em 1970. Tanto quanto esquecer que João Saldanha lhe entregou um selecionado praticamente pronto para a conquista daquela Copa do Mundo, na qual nos apoderamos, definitivamente, da Taça Jules Rimet).

Meus amigos...

Engrossei a multidão que foi dizer adeus ao “João Sem Medo”. O que não se curvava ao despotismo. Nunca poupou os cartolas corruptos ou simplesmente estúpidos do futebol. Nem os jabazeiros da crônica esportiva. Naturalmente, isso lhe rendeu alguns desafetos. Porém irrisórios, se comparados aos que compareceram na hora em que ele finalmente acabava de dar todos os seus combates por encerrados, todas as suas histórias por contadas – e para a nossa desolação. Acompanhando o cortejo que o conduzia à sua última morada, vi artistas, políticos, jornalistas, publicitários, dirigentes (uns poucos), e torcedores (muitos) de futebol. Mas o mais emocionante foi quando reconheci os pescadores de Maricá, aquela gente anônima com a qual ele proseava nas noites de junho, entre as barracas da festiva pracinha da Divinéia, e que viera de longe certamente para agradecer-lhe pela graça da sua fala. E ali, com minha mulher, a Sonia,
ao lado de Ruth Viotti, a mãe da Rutinha, digo, a Kika, eu fazia minhas as palavras de Scott Fitzgerald – devidas ou indevidamente adaptadas para aquele momento -, escritas como um epitáfio a um amigo dele, chamado Ring Lardner, que também fora um cronista esportivo:


“Um grande e bom homem morreu. Não o escondamos sob flores, pelo contrário, contemplemos aquele belo rosto todo sulcado de mágoas e tribulações que talvez não estejamos equipados para compreender. Foram muitos os que dele receberam os melhores momentos de evasão e inesquecível recreio de suas vidas”.

- Vidas que seguem – como diria João Saldanha.
(23.07.90)

terça-feira, 8 de junho de 2010

Acidente em uma noite de chuva - Luís Pimentel

De Toco na estrada


– Que barulho foi esse?
– Acho que atropelamos alguém ou alguma coisa. Um gambá ou um cachorro.
– Só pode ter sido um cachorro. Nunca vi gambá por aqui.
– Claro que você nunca viu gambá por aqui. Você nunca passou por aqui.
– Tomara que não tenha sido uma pessoa.
– Vi o vulto. Muito pequeno para uma pessoa.
– Então, você matou um cachorro.
– Se matei foi sem querer. Está escuro pra cacete. Com essa chuva piora. E a estrada é uma porcaria.
– Não acredito. Você mata um cachorro inocente e reage assim?
– Assim, como?
– Com essa calma.
– Devo fazer o quê? Me jogar embaixo do carro para morrer junto com o cachorro? De mais a mais, que bobagem é essa de cachorro inocente? Todo cachorro é inocente.
– Como é que você sabe?
– Sei o quê?
– Que todo cachorro é inocente.
– Por quê? Você conhece algum cachorro culpado? Culpado de quê? Cachorro carrega culpas, se penitencia, tenta o suicídio? Será que esse tentou o suicídio hoje?
– Acho que não. Mas você deveria carregar a culpa, uma puta de uma culpa por ter tirado a vida de um ser, friamente.
– Friamente?! Foi um acidente, caramba! Uma porra de um acidente. Está escuro, chovendo, o bicho atravessou a estrada.
– Bicho?
– Bicho. Nem sabemos ao certo se é mesmo um cachorro.
– Como assim, “se é mesmo um cachorro”?
– Pode ser uma raposa, um macaco, um veado, uma onça, um tatu!
– Tatu?
– Por que não? Estamos numa estrada quase deserta. Tem mato pra todo lado. Por que não pode ter um tatu e o filho da puta do tatu resolver atravessar a estrada justo na hora em que passamos nessa porra dessa estrada, com essa bosta desse carro de faróis ruins, limpador de pára-brisa fodido, e praticamente sem freios?
– O carro está praticamente sem freios?
– Pastilha gasta, sei lá.
– Você pega uma estrada desconhecida com um carro sem freios e ainda me convida para participar da aventura?
– Não convidei você. Você se ofereceu para vir comigo.
– Não senhor. Você disse “quer vir comigo, venha”.
– Eu disse quer vir comigo, venha, porque você já tinha se oferecido.
– E daí? Isso justifica?
– Justifica o quê, meu cacete?!
– Vê como fala comigo! Quero saber se isso justifica você meter o carro em cima de um pobre de um cachorro que não tinha nada que ver com o seu desespero.
– E eu estou desesperado, por acaso? Atropelei esse infeliz de caso pensado, por acaso?
– Infeliz? A vítima agora é que é infeliz?
– Maneira de falar.
– Infeliz não é o cachorro, não. Infeliz é você, que vai hospedar essa mancha na alma para o resto da vida.
– Não vou hospedar mancha nenhuma. Já disse que não tive culpa desse acidente.
– Acidente?! Já percebeu que é sempre assim?
– Sempre, como? Assim, o quê?
– As barbaridades, a violência, os desatinos, as atitudes deploráveis são sempre justificados como se fossem acidentes. Os assassinos modernos são todos personagens de acidentes.
– Assassino!? Eu sou um assassino?
– Sei não. Pergunte à sua consciência.
– Já disse que não tenho culpa, merda!
– Entendi. Culpado é o cachorro.
– Para de falar bobagem e faz alguma coisa.
– Fazer o quê? Eu não matei ninguém.
– Pega o cachorro e põe no banco de trás. Pode ainda estar vivo. Se estiver, levamos a um veterinário.
– Levamos, não. Você leva. E não vou pegar nenhum cachorro morto ou moribundo. Essa função é, por lei, do atropelador.
– Está bem, imprestável. Vou pegar.
–...
– Merda! Mil vezes merda.
– Não trouxe por quê? Já está morto?
- ...
– Não era um cachorro?
– ...
– Uma pessoa? Meu Deus.
– Era um toco de madeira podre.
– Que porra fazia um toco de madeira podre no meio de uma estrada, numa noite de chuva, com tanto maluco que tem por aí nos volantes?
– ...
– Estou falando com você. O cachorro comeu sua língua?
– ...
– Vamos seguir, ainda temos muito chão pela frente.
– Mais alguma recomendação?
– Os tocos. Cuidado com eles.

sábado, 5 de junho de 2010

Das Coisas Impossíveis - Cineas Santos

De 8ª SALIPI


Sempre que faz referência ao Salão do Livro do Piauí, o escritor Edmílson Caminha, citando autor que desconheço, afirma: “Se os meninos soubessem que era impossível, não teriam feito”. Exagero à parte, a sentença contém muita verdade. Quando, em 2003, os professores Wellington Soares, Luiz Romero e Nilson Ferreira me propuseram participar do que, à época, me pareceu uma aventura errante, fui taxativo: Estou fora! Eu tinha as minhas razões. Durante cinco anos, a duras penas, realizei, praticamente sozinho, cinco edições do seminário Língua Viva, tarefa para Hércules nenhum botar defeito. Por minha conta e risco, eu convidava grandes autores (Celso Pedro Luft, Antônio Houaiss, Evanildo Bechara, Napoleão Mendes de Almeida, Celso Cunha, entre outros), alugava espaço, contratava som e, como um camelô, saía pelos colégios de Teresina tentando convencer os diretores das escolas a liberarem (na verdade, libertarem) os professores para que pudessem participar do evento. Colecionei toneladas de nãos. Eu estava farto daquilo.

Os três mosqueteiros voltaram à carga e, desta feita, já me trouxeram um projeto formatado, muito embora nenhum deles tivesse a menor ideia do custo de um salão e, menos ainda, de onde sairiam os recursos para bancá-lo. A bem da verdade, nenhum de nós tinha qualquer experiência na realização de grandes eventos. Não bastasse isso, éramos (somos ainda) apenas um punhado de duros. Mas o Wellington é movido a desafios e acabou me arrastando para a empreitada. Assim, na primeira semana de julho de 2003, realizamos a primeira edição do SALIPI no velho Centro de Convenções de Teresina. De todas as dificuldades, a maior foi convencer os livreiros a participar. Com a colaboração de alguns parceiros – Governo do Estado e Prefeitura de Teresina, desde a primeira hora – realizamos o que, aos olhos de muitos, parecia impossível: um grande e belo salão. Eu não teria a menor dúvida em afirmar que o SALIPI só se viabilizou porque os teresinenses adonaram-se dele. Aspiração antiga, o público compareceu em peso, obrigando os incrédulos a prestarem atenção nele. A mídia piauiense, por seu turno, acreditou no Salão e deu-lhe a necessária visibilidade.

Ao longo desses anos, tivemos muitas decepções e grandes alegrias. Para mim, a maior delas foi receber de uma cidadã do povo um cofrinho de barro com um punhado de moedas e o pedido de desculpas: “O senhor me desculpe, mas espero que dê para pagar o almoço de um dos convidados”. Não deu porque aquele cofrinho continua fechado: tornou-se uma espécie de amuleto. Como um objeto sagrado, é inviolável.

Impossível saber aonde essa aventura vai dar, mas parece que até a grande mídia já descobriu que a SALIPI existe. Para mim, que ultimamente tenho participado pouco, ver milhares de crianças da periferia da cidade adentrarem o espaço do Salão, como gralhas felizes, já me diz que valeu a pena. O Poeta tem razão: “Tudo vale a pena/ se a alma não é pequena”. A nossa é do tamanho do universo.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

A bola sobrenatural - Toninhobira

De Jabulani



Nosso país realmente é uma pérola, quando se fala de futebol, a bola da vez, é a própria bola que será usada pelos astros dos países envolvidos nesta edição da Copa do Mundo a ser realizada na África do Sul. Como não podia deixar de ser os jogadores brasileiros foram os primeiros a criticar a pobre bola, concebida pela ADIDAS, empresa que há 11 anos circunda as copas pelo mundo com sua grife, inundando de milhares de dólares, euros, os milhares de jogadores. Logo na chegada e contato com a bola, o goleiro brasileiro já critica a pobre bola como produto de supermercado, numa clara insinuação de que estes estabelecimentos vendem os piores produtos de esporte quando se fala de bola, o que pode ser um extremismo, visto que marcas famosas e oficiais são comercializadas nestes.

A tal bola recebeu o nome de JABULANI, que no dialeto africano ZULU significa CELEBRAR, que cabalisticamente fora confeccionada com o numero 11 em seu conceito, sendo ainda pintadas em 11 cores, que é o numero de jogadores de um time de futebol e fechando com as 11 comunidades nas quais se divide a África do Sul e 11 idiomas presentes no país.

Segundo a ADIDAS esta bola fora exaustivamente testada ao longo de cinco meses por vários e países e competições, inclusive em uma competição oficial a Copa das Confederações, numa alusão de descrédito as criticas do famoso goleiro brasileiro. Com esta situação os críticos de plantão, já insinuaram que desculpas já estariam sendo dadas, para justificar um possível fracasso deste goleiro ou da própria seleção da era Dunga. Mas pondera-se, que a bola possa sofre influencia de trajetória por problemas de altitude em algumas cidades da África.

Cá com meus botões fiquei a pensar naquelas bolas do passado, feitas de couro costuradas com aquelas agulhas imensas que nosso cronista Claudionor Pinheiro já relatara em suas belas crônicas do futebol daquele tempo. Quando molhadas pesavam o dobro, fico a imaginar, como os nossos melhores jogadores se destacaram usando estas bolas, rudemente confeccionadas sem nenhum teste de laboratórios como as atuais. Seriam eles sobrenaturais ou super-jogadores? Ou nosso rebanho bovino se apaixonara pelo futebol de campo, e assim forneciam um couro amigo, que aplicado nas bolas as deixavam adaptadas ao malabarismo e pontarias de nossos jogadores?

Quando o assunto parecia contornado, outro jogador brasileiro agora um atacante, sai com mais uma pérola, dizendo que a bola parecia sobrenatural, pois sentia que ela tomava rumo estranho quando saia de seus chutes, volta a polemica sobre a inofensiva JABULANI cantada por todas as mídias especializada.

Cá com meus outros botões restantes vaguei por aquele país, comecei a ver coisas, nos campos desnivelados, esburacados, minados por todos os lados, onde jamais jogadores ousariam mostrar suas artes, pois nem se envolvem em conhecer, saber o que se passa ou passou com aqueles tantos de sacis, com suas muletas rudes a perambularem e jogarem bolas em tais campos. Nesta viagem encontrei vários seres esqueléticos mutilados, que driblavam a vida, a sorte, mas não se livraram da morte. Eram oriundos de Soweto, que jogados em valas rasas, ouviram o toc- toc das JABULANI e assim ressuscitaram invadindo os luxuosos e suntuosos campos construídos para o mundial. Numa algazarra subterrânea estes seres estariam interferindo nos rumos das bolas dando a elas esta qualidade sobrenatural, que tanto pavor vem causando aos nossos jogadores, com suas pérolas de definições para a JABULANI que ora rola em treinos da nossa Mama África do Sul.

Atenção jogadores de todas as seleções, principalmente a nossa canarinho. Aconselho a conhecerem a África por *Nelson Mandela, que poderá explicar e orientar como conviver e comportar na sua África, sem que sejam afetados e estejam assustados por tantos mistérios que encerram naquela terra. Assim quando a bola rolar oficialmente, saberemos quem aprendeu a lição.

Brasileiro eu torço, mas não sofro.

* “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar." [Nelson Mandela].

Dadá Maravilha (rei das pérolas) deu a dica aos boleiros para conseguir o sucesso esperado com a bola do Mundial sul-africano. "A bola, você tem que falar com ela, -"oh querida, minha queridinha, minha delícia", chama ela de meu amor, dá carinho pra ela que ela te atende. Conversa com ela. Chama ela de mocinha, de maravilhosa, de linda, elogia, trata ela bem, dá carinho e amor. Afinal, quem é que não gosta de ser bem tratado?".

Mais do autor: http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=68012

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Que Fim Levou Ana Maria?

De Cavaleiros Medievais

Compreendi a dor da solidão depois que os bárbaros tomaram de assalto a nossa casa e levaram a minha prima Ana Maria para um mundo além de nossa imaginação. Nessa hora o sol se escondia atrás do Cruzeiro dos Montes, formando um clarão avermelhado e triste. O Cruzeiro era uma tosca cruz de madeira, fincada no topo do morro mais alto e podia ser vista de mais de légua de distância. Ou, como diziam os primitivos, “até onde o olhar do homem pode enxergar as criações divinas”.

Naquela tarde as galinhas se aninharam mais cedo no poleiro. Os pássaros procuraram abrigo seguro entre as folhagens das árvores que resistiam ao verão inclemente. As cigarras cantaram réquiens metálicos como carpideiras em noite de luto. Pareciam adivinhar a minha tragédia particular, embora não fossem elas insetos de mau agouro.

Ana Maria era a filha mais nova do meu tio Oduvaldo. Sua casa ficava perto da nossa, menos de meia légua, por isso suas visitas eram constantes, com ou sem companhia. Eram os tempos da inocência, não havia roubo nem violência física. Fomos criados unidos na mesma traquinagem e gozando da liberdade que o campo nos oferecia. Porém, naquela tarde, Ana Maria andava reticente e triste, sem seu riso brejeiro e a espontaneidade inocente da pré-adolescência.

– Você está esquisita, Ana. Que bicho lhe mordeu?
– Não sei, Tomás. Estou sentindo uma coisa no peito.
– Como assim?
– Minha mãe disse que virei mulher e terei que casar.
– Casar? Você não tem nem namorado. Quer se casar comigo?
– Ora! Deixe disso! Somos primos, se esqueceu? Minha mãe disse que primo que casa com prima os filhos nascem aleijados.
– E como é que os filhos nascem?
– Não sei. Ouvi minha irmã Maristela comentar que é por entre as pernas, onde a gente faz xixi.
– E por que tia Florinda disse que você agora era mulher?
– Também não sei. Mas ela disse isso no dia que acordei de manhã e a cama estava empapada de sangue. Me assustei e gritei por socorro. Minha mãe apareceu sorrindo e disse que era o “chico” que tinha chegado e que todos os meses isso ia acontecer, que era coisa de mulher. Depois ficou cochichando com minhas irmãs e, quando meu pai chegou da roça, ela disse assim: “Oduvaldo, Ana Maria virou mulher e já pode se casar”. E ele fez uma cara de satisfação e disse: “Bom, nesse caso vou falar com Malaquias pra marcar a data do casamento”.
– Malaquias? Quem é ele?
– Não sei. Nunca ouvi falar.
– Vamos brincar de pega-pega?
– Vamos. Você me pega primeiro. – disse e saiu correndo pelo terreiro, esquecida que virara mulher e podia se casar. A gente não entendia nada disso. E não queria entender. Tudo ao seu tempo, dizia meu pai. Crianças não precisam entender os problemas dos adultos. Como em Eclesiastes: “Há tempo para plantar e tempo para colher”. Nosso tempo, embora não estivesse escrito nas Sagradas Escrituras, era só para brincar.

Havia três dias que Ana Maria estava lá em casa sem que eu atinasse o motivo dessa longa hospedagem. Isso só acontecia quando os meus tios viajavam e os meus primos ficavam sob os cuidados dos meus pais. Mas iam todos eles, do menor ao maior, no total de oito. A mais velha era Maristela, com dezessete anos. O mais novo dos homens era Edilson, e tinha uma enorme hérnia no umbigo, lembrando uma laranja de caroço. Havia também: Totonho, Jackson, Regina, Berivaldo e Raimundo, mais conhecido por Mundinho.

Ana Maria era da minha idade: doze anos. Nascemos no mesmo dia e mês. Comemorávamos nosso aniversário na mesma casa, para não ter que dividir os convidados. Um ano era na minha, no outro, na sua. Diziam sermos primos-gêmeos.
– Será que esse ano vem todo mundo pro nosso aniversário? – perguntei
– Hein?! Ah! sim! Mas ainda está longe.
– Eu sei. É que não estou agüentando esperar esse tempo todo.
– A gente devia ter nascido com seis meses de diferença.
– Por quê?
– Assim não precisava esperar um ano pra reunir todos os primos.
– É mesmo.

Nossa conversa fora interrompida por um chamado de minha mãe:

– Ana Maria, venha aqui experimentar o vestido!
– Que vestido?! – perguntei.
– O de noiva. Você não sabe que sua prima vai se casar amanhã? Ela está aqui porque estou costurando seu vestido.
– Eu?! Estou sabendo agora. Não sabia nem que ela tinha namorado.
Ana Maria caiu em soluço. Daqueles três dias, somente naquele momento se dera conta de sua sorte.
– Não quero me casar não, tia! Fale com minha mãe. Ainda sou muito nova e nem conheço meu noivo. Minhas irmãs são mais velhas que eu, por que não elas? Por favor, me ajude, tia!
Senti minha mãe hesitar. Amarelou penalizada. Abraçou Ana Maria e falou rouca de emoção:
– Não posso, minha filha! Essa é a nossa sina de mulher. Conforme-se com seu destino e vamos entrar que Oduvaldo vem já lhe buscar.

Ana Maria caminhou trôpega, como se carregasse o mundo nas costas. Sentei-me no avarandado e fiquei matutando, tentando entender o que se passava. Não podia ser verdade. As duas estavam brincando, tentavam me assustar. Só podia ser isso. Diziam que Ana Maria ainda fazia xixi na cama, como era que podia se casar?

Não queria imaginar a vastidão daquela campina sem as suas alegres peraltices. Desde quando nos entendíamos por gente que brincávamos ali, de pega-pega, peteca, pula-corda. No fim do dia, sentávamos no oitão da casa para nos extasiar com o entardecer no horizonte. Como naquele momento, antes de sermos interrompidos pela minha mãe. Éramos crianças felizes e imaginávamos que assim seria para todo o sempre.

O fim veio a galope. Dois cavaleiros apearam à porta. À sombra da quase noite, lembravam dois bárbaros em missão de rapto da princesa na torre do castelo.

– Ô de casa! Doralice!

Minha mãe saiu segurando a mão de Ana Maria. Ambas choravam.

– Não me deixe ir, tia! – implorou minha prima.
– Nada há a se fazer, Ana. Você vai se acostumar. É só uma questão de tempo. Oduvaldo, converse com o noivo e peça pra ter paciência. Ana ainda é uma criança.
– Já conversei, Doralice. Fique sossegada. Vamos, Ana! Antes, se despeça do seu primo Tomás. Esta será a última vez que vocês poderão conversar. Depois do casamento você vai pra longe.

Ana Maria correu ao meu encontro e me abraçou soluçando. Pediu-me para rezar por ela. Disse para eu não me esquecer dos nossos momentos, porque eu estaria sempre em suas lembranças, principalmente no nosso aniversário. Montou na garupa do irmão enquanto o meu tio levava com extremo zelo o vestido de noiva. Antes de desaparecer no horizonte, virou-se e jogou um beijo. O primeiro e único de nossas vidas.

No dia seguinte acordei entre soluços. Sentia uma dor no peito, um nó na garganta, uma vontade de sair correndo gritando por ela. Levantei-me e a casa estava em alvoroço. Todo mundo se preparava para o casamento, cada um envolvido em cuidar de sua própria vaidade. Esqueceram-se de mim. Minha mãe levou um susto quando me viu.

– Tomás, você ainda está assim! Corra, vá se aprontar que o casamento é daqui a duas horas e ainda temos que ir pra rua!


A igreja estava enfeitada para o evento. Havia um tapete vermelho estendido até o altar. Chegamos a tempo de nos acomodarmos no banco da frente. Era o primeiro casamento que eu participava e tinha que ser justamente o dela. O mundo não era justo.

A organista dedilhou a marcha nupcial e o povo se levantou em obediência ao comando musical. Todos olhavam numa só direção: a porta da frente e a entrada compassada de Ana Maria. Parecia assustada dentro do vestido de noiva, que me lembrou uma mortalha. Caminhava trêmula, vacilante. Em suas mãos, em vez de um buquê de flores, a boneca de matéria plástica por mim arrematada no último leilão beneficente da igreja. Sua boca, ressecada pela desdita, sufocava um grito de agonia. Ao passar por mim, seu olhar refletia a angústia aguda de quem está prestes a selar aliança com o próprio carrasco.