De Toco na estrada |
– Que barulho foi esse?
– Acho que atropelamos alguém ou alguma coisa. Um gambá ou um cachorro.
– Só pode ter sido um cachorro. Nunca vi gambá por aqui.
– Claro que você nunca viu gambá por aqui. Você nunca passou por aqui.
– Tomara que não tenha sido uma pessoa.
– Vi o vulto. Muito pequeno para uma pessoa.
– Então, você matou um cachorro.
– Se matei foi sem querer. Está escuro pra cacete. Com essa chuva piora. E a estrada é uma porcaria.
– Não acredito. Você mata um cachorro inocente e reage assim?
– Assim, como?
– Com essa calma.
– Devo fazer o quê? Me jogar embaixo do carro para morrer junto com o cachorro? De mais a mais, que bobagem é essa de cachorro inocente? Todo cachorro é inocente.
– Como é que você sabe?
– Sei o quê?
– Que todo cachorro é inocente.
– Por quê? Você conhece algum cachorro culpado? Culpado de quê? Cachorro carrega culpas, se penitencia, tenta o suicídio? Será que esse tentou o suicídio hoje?
– Acho que não. Mas você deveria carregar a culpa, uma puta de uma culpa por ter tirado a vida de um ser, friamente.
– Friamente?! Foi um acidente, caramba! Uma porra de um acidente. Está escuro, chovendo, o bicho atravessou a estrada.
– Bicho?
– Bicho. Nem sabemos ao certo se é mesmo um cachorro.
– Como assim, “se é mesmo um cachorro”?
– Pode ser uma raposa, um macaco, um veado, uma onça, um tatu!
– Tatu?
– Por que não? Estamos numa estrada quase deserta. Tem mato pra todo lado. Por que não pode ter um tatu e o filho da puta do tatu resolver atravessar a estrada justo na hora em que passamos nessa porra dessa estrada, com essa bosta desse carro de faróis ruins, limpador de pára-brisa fodido, e praticamente sem freios?
– O carro está praticamente sem freios?
– Pastilha gasta, sei lá.
– Você pega uma estrada desconhecida com um carro sem freios e ainda me convida para participar da aventura?
– Não convidei você. Você se ofereceu para vir comigo.
– Não senhor. Você disse “quer vir comigo, venha”.
– Eu disse quer vir comigo, venha, porque você já tinha se oferecido.
– E daí? Isso justifica?
– Justifica o quê, meu cacete?!
– Vê como fala comigo! Quero saber se isso justifica você meter o carro em cima de um pobre de um cachorro que não tinha nada que ver com o seu desespero.
– E eu estou desesperado, por acaso? Atropelei esse infeliz de caso pensado, por acaso?
– Infeliz? A vítima agora é que é infeliz?
– Maneira de falar.
– Infeliz não é o cachorro, não. Infeliz é você, que vai hospedar essa mancha na alma para o resto da vida.
– Não vou hospedar mancha nenhuma. Já disse que não tive culpa desse acidente.
– Acidente?! Já percebeu que é sempre assim?
– Sempre, como? Assim, o quê?
– As barbaridades, a violência, os desatinos, as atitudes deploráveis são sempre justificados como se fossem acidentes. Os assassinos modernos são todos personagens de acidentes.
– Assassino!? Eu sou um assassino?
– Sei não. Pergunte à sua consciência.
– Já disse que não tenho culpa, merda!
– Entendi. Culpado é o cachorro.
– Para de falar bobagem e faz alguma coisa.
– Fazer o quê? Eu não matei ninguém.
– Pega o cachorro e põe no banco de trás. Pode ainda estar vivo. Se estiver, levamos a um veterinário.
– Levamos, não. Você leva. E não vou pegar nenhum cachorro morto ou moribundo. Essa função é, por lei, do atropelador.
– Está bem, imprestável. Vou pegar.
–...
– Merda! Mil vezes merda.
– Não trouxe por quê? Já está morto?
- ...
– Não era um cachorro?
– ...
– Uma pessoa? Meu Deus.
– Era um toco de madeira podre.
– Que porra fazia um toco de madeira podre no meio de uma estrada, numa noite de chuva, com tanto maluco que tem por aí nos volantes?
– ...
– Estou falando com você. O cachorro comeu sua língua?
– ...
– Vamos seguir, ainda temos muito chão pela frente.
– Mais alguma recomendação?
– Os tocos. Cuidado com eles.
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