sábado, 18 de setembro de 2010

Seminário Antonio Torres - Música, Maestro!

Eram apenas quatro membros, mas valeu pela orquestra inteira. A Orquestra do Centro Universitário de Cultura e Arte - CUCA - da Universidade Estadual de Feira de Santana, rendeu homenagem ao escritor Antonio Torres nos seus setenta aninhos. Tive que cortar um pouco o final de duas músicas porque a apresentação extrapolou o tempo permitido pelo Youtube.


70 anos de Antonio Torres




Foram muitas as homenagens nesse mês de setembro ao escritor Antonio Torres. Antes de seguirmos para Feira de Santana, fizemos uma parada no arraial do Junco, onde o mesmo reviu alguns parentes, deu entrevista na rádio da cidade, falou pra alunos e professores, visitou a Biblioteca Antonio Torres e, à noite, foi homenageado pelo prefeito e Câmara de Vereadores durante um jantar na casa de Luiz Eudes.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Ai, Que vida!

Uma homenagem de Edna Lopes ao cinema piauiense, terra do nosso querido Cineas Santos





Quem, mesmo que acidentalmente, viu alguma cena de novela ou filme retratando o nordeste, protagonizada por atores do eixo Rio/São Paulo e acha que o nosso jeito de ser e nosso sotaque é assim, permita-me dizer o quanto está enganado. Os atores e atrizes fazem personagens caricatos, quase sempre ridicularizando os tipos, os falares do povo, em sua maioria desrespeitosos com nossa cultura e nossa gente.
Quem acompanha o desenrolar de uma campanha eleitoral numa cidade pequena, certamente que já presenciou cenas do tipo que aparecem nesse filme bem humorado, mas muito sério no trato respeitoso com a alma do povo nordestino. São tipos do nosso convívio, cenas e locação familiares, com atores e atrizes locais, o que garante a veracidade do sotaque e o jeitinho de ser tão peculiar do povo nordestino.
Ainda não conheço o Piauí e fiquei encantada com o filme. Recomendo que vejam e divirtam-se também com o olhar bem humorado do diretor, o jornalista e cineasta Cícero Filho, que dá uma aula de como se faz arte, mesmo nas condições mais adversas.
O resumo da história leiam na sinopse abaixo, mas, qualquer semelhança com o processo eleitoral em curso, não é mera coincidência.

Sinopse

Em meados dos anos de 1990, a fictícia cidade de Poço Fundo, no interior do Nordeste, está vivendo um verdadeiro caos em sua administração pública. O Prefeito Zé Leitão (Feliciano Popô) é um corrupto de mão cheia, capaz de tudo pelo dinheiro, seu egoísmo é a sua principal característica.

Zé Leitão já governa Poço Fundo há quatro anos, mas nada fez pela cidade em seu mandato. A população não consegue enxergar as coisas ruins que o prefeito faz. São iludidos com as falsas palavras de Zé Leitão e subestimados com os “programas sociais” que são realizados em seu mandato. Visto isto, a micro-empresária Cleonice da Cruz Piedade (Antonia Catingueiro) se revolta com os absurdos administrativos de seus governantes e decide “acordar” o povo sobre a atual situação da cidade. E luta pelos direitos do seu povo e conseguirá arrastar multidões em seus claros discursos, tornando-se assim querida por toda a população da cidade.

O filme também conta com uma segunda vertente: o triângulo amoroso entre Jerod (Welligton Alencar), Valdir (Rômulo Augusto) e Charleni (Irisceli Queiroz).

Nota de produção
“Ai que vida "
Gênero: Comédia
Duração: uma hora e meia
Direção Geral: Cícero Filho
Classificação: 12 anos
Vejam essas duas postagens interessantes sobre o filme:
http://www.overmundo.com.br/overblog/filme-piauiense-ai-que-vida-e-sucesso-de-publico
http://www.overmundo.com.br/overblog/filme-piauiense-em-detalhes

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Seminário Antonio Torres - Universidade Estadual de Feira de Santana




70 vezes obrigado, Feira de Santana!

Por iniciativa do professor, doutor e escritor Aleilton Fonseca, a Universidade Estadual de Feira de Santana (Bahia) realizou, nos dias 8 e 9 de setembro de 2010, no seu Anfiteatro – Módulo II –, o Seminário Narrativas e Viagens do Junco ao Mundo, em homenagem aos 70 anos do autor destas linhas, numa celebração à sua obra que surpreendeu em todos os sentidos: pelo interesse despertado dentro e fora da UEFS; pela repercussão nos mais variados meios de comunicação dentro e fora do estado da Bahia; e pelo nível dos textos apresentados, assim como das palestras e dos debates, a cargo de vários estudiosos (professores, pesquisadores, mestrandos e graduandos) que deram ao evento uma alta voltagem acadêmica e literária - e de que o retrospecto aqui, em imagens captadas por Ronaldo Torres, serve apenas de amostra.

O homenageado, que participou de tudo intensamente, sensibilizado, recorre a este veículo eletrônico para renovar o seu agradecimento à UEFS pela promoção de tão honrosa efeméride, assim como a todos que contribuíram para o seu êxito, cuja lista é imensa. 70 vezes obrigado, Feira de Santana. E viva a Bahia!

Antônio Torres
Itaipava (Petrópolis, RJ), 15 de setembro de 2010.


Nota do Blog ao povo de Feira de Santana: Clique na foto do seminário para ter acesso ao álbum.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

A Natureza Se Faz Presente - Rita Jankowski



De Ipê



A beleza das obras literárias de Antônio Torres assemelha-se à florada dos ipês. Sua nobreza, harmonia e grandeza seduzem nossos olhares de leitores contemplativos.
A origem da exuberância em talento deste escritor possui raízes de sustentação e absorção profundas e vigorosas nos valores de uma bela e numerosa família do sertão nordeste da Bahia. Lá, onde o amor familiar foi alento durante os longos períodos de hegemonia do sol a enrugar a terra. E foi neste mesmo cenário, onde a escassez da umidade do solo determina destinos, que a carreira literária de Antônio Torres veio a ser a primeira das muitas florescências em meio aos irmãos literatos igualmente bem sucedidos. Pouco após a época das primeiras letras, iluminada pelo amor materno de D. Durvalice, a emoção ao declamar Castro Alves veio à flor do rosto. A professora passara a ser D. Serafina e os ouvintes já não eram mais os do âmbito familiar, mas os de um convívio a céu aberto de toda uma cidade. Junco foi não somente o local de nascimento de um sertanejo como o de um sertanista.

Em Essa terra, Antônio Torres, no papel de sertanista, descreve a fotossíntese das árvores esparsas sob temperaturas abrasadoras; no papel de beletrista revela a foto - síntese de conterrâneos unidos em situações desoladoras.

Semelhante ao ipê que se adapta a terrenos secos e pedregosos, Antônio Torres soube amoldar em Um cão uivando para a lua, O cachorro e o lobo e em Pelo fundo da agulha, a aridez e os obstáculos que todos nós conhecemos, ao longo do tempo, nos compromissos familiares e profissionais. Contrabalanceou olhares opacos e brilhantes ao analisar as etapas da vida. Pelo fundo daquela agulha passou uma poesia completa contida somente em três frases:

“Amor rima com flor. E também murcha. Ficam os espinhos nas extremidades dos caules“.


Entretanto, sua experiência deixou a cargo da sucessão das estações o que pertence ao tempo. Este de tudo se encarregou. Esta prova está também em Sobre Pessoas. Um relato da versatilidade de um profissional que se dedicou às diversas culturas no campo do Jornalismo e da Publicidade e que compartilha as alegrias de um mestre no cultivo das amizades. Conserva na madeira impermeável do tronco, como em um frondoso ipê, um coração que se opõe às diversas formas de racismo, como o fez com propriedade na crônica O lado infame do genial Borges. Para reforçar esta luta, na tentativa de diminuir preconceitos e aumentar a paz, recordo-me de um conselho em espanhol “Doctor se hace, senõr se nace“, o qual adapto em “Doutor por formação, cavalheiro por nascimento.”

Ao reunir crônicas referentes ao mesmo tema, em Sobre Pessoas, o carinho do autor presta homenagem a diversos amigos de forma similar à da natureza, com pequenos buquês, a avolumar as copas dos ipês. E mesmo os amigos que já não mais sorvem a seiva desta vida, agora, prestam homenagem ao dileto Antônio e à sua cidade natal, juncando o solo ao redor deste ipê com a eterna beleza de suas flores.

E é chegado o momento quando a floração violácea do inverno dá as boas vindas aos dias de primavera refletidos na inflorescência amarela da árvore símbolo do Brasil. Este se adorna, também, para mais uma celebração da vida __ os setenta anos do amado escritor Antônio Torres no dia 13 de setembro. As sementes de seu talento, conhecimento e ensinamento foram dispersas pelos ventos nas mais variadas paisagens citadinas e campesinas mundo afora. Para expressar os votos de todos os amigos para uma vida longa,a natureza se faz presente.

Nota do blog: Ontem, dia 13 de setembro, o escritor Antonio Torres completou 70 anos.




Carniça - Luís Pimentel


De Tiro na cabeça


Quem vê a cena não diz que eu e o Carniça somos amigos desde a infância. Conheci esse neguinho quando éramos bem pequeninos, não precisávamos usar sapatos, nem mesmo tênis, o campo de futebol onde a gente jogava era usado só para jogar futebol, não era um terreno cheio de casas, mercearias e igrejas, evangélicas, e chamar um amigo de cor negra de neguinho não era ofensivo.

Minha profunda amizade com aquele neguinho começou na vila em que demos os primeiros passos, os primeiros pontapés um no outro, os primeiros chutes na bola de couro. A vila era pobre, muito pobre, onde eu nasci, filho de meu pai e de minha mãe, e ele também nasceu, filho do pai dele e da mãe dele.

Chamava-se Vila da Esperança – mesmo sendo verdade que esperança ali era o que menos havia –, era cheinha de casas pequenas e humildes, de homens e mulheres que quase sempre trabalhavam muito, e de umas noites que chegavam no final da tarde, como todas as noites de todos os lugares, mas que parecia acabar mais cedo. Geralmente, antes mesmo de clarear o dia, quando as mulheres saíam de casa para os seus trabalhos, quase sempre de empregadas domésticas, e os homens carregavam suas marmitas para as oficinas mecânicas, os postos de gasolina ou os bares do centro da cidade, onde a maioria deles deixava o próprio couro.
Não lembro quando foi que o Carniça passou a ser chamado de Carniça, como e porque arrumou esse apelido fedorento, mas sei que todos na vila só o tratavam assim. Mas ele tinha um nome, que era Reginaldo. Só que como Reginaldo ninguém o conhecia, só mesmo os seus pais. Para os vizinhos todos, os moleques, sobretudo, era Carniça pra lá, Carniça pra cá, de manhã, de tarde e de noite. Carniça nunca reclamou.

A Vila da Esperança só tinha construções de um cômodo, quartos apertados e banheiro no final do corredor. Cresci ao lado de Reginaldo-Carniça, neguinho bom de bola que só vendo, pois tinha canelas finas, braços compridos para ajudar no drible e corria como ninguém. Com esse neguinho – como eu já disse, não era feio nem horrível chamar um amigo neguinho de neguinho, era até carinhoso – mal-agradecido disputamos chupeta, usamos as mesmas roupas, jogamos muito futebol de botão juntos, entramos juntos na Cartilha do ABC e na escola pública para fazer o curso Primário, e só não fizemos o Ginasial juntos porque a vida torta logo chamou o meu amigo sei lá para onde.

Como acreditar que fui até irmão de leite desse sujeito que agora faz uma coisa dessas comigo? Passei muitos apertos na vida por causa daquele amigo. Lembro como se fosse hoje do dia em que minha mãe me deu dinheiro para ir até o açougue, comprar um pedaço de carne para o nosso almoço, e tive o desacerto de encontrar Carniça no caminho.

– Para onde você vai assim, tão apressado? – ele quis saber.
– Vou comprar carne para minha mãe fazer um almoço lá em casa.
– Carne, é? Huuummm... menino rico é outra coisa.
– Rico o quê, cara? Que história é essa de rico?
– Só rico come carne, rapaz. Sabia não?
– Não.
– De mais a mais, carne não faz falta. Ovo e verdura são bem melhores. Vamos usar esse dinheiro para comprar uns refrigerantes, bolachas, biscoitos, balas de coco, essas delícias. Depois você diz à sua mãe que perdeu o dinheiro.

Claro que eu não deveria ter caído nessa conversa. Mas caí. A desculpa não convenceu minha mãe, levei uma surra inesquecível.

Nossas mães, a minha e a de Carniça, eram amigas desde mocinha. Mamãe batizou aquele moleque, e foi a mãe de Carniça quem arranjou com o dono do quartinho para minha mãe, meus irmãos e eu morarmos um tempo sem pagar aluguel, até ela se arrumar na vida.

A mãe de Carniça era empregada doméstica, que nem a minha. Mas tinha mais facilidade para arranjar trabalho, pois esbanjava saúde. Era uma preta magrinha, também de canelas finas, que passou para o filho, pelo DNA, olho muito vivo e uma disposição de matar de inveja. Minha mãe andava sempre adoentada, branquinha das pernas fracas, coitada, e volta-e-meia tinha que deixar o emprego para se tratar. E nem sempre encontrava o lugar vago quando recebia alta lá no instituto.

Meu pai morreu cedo, eu era bem pequeno. O pai de Carniça durou um bom tempo, mas não trabalhava e vivia bebendo cachaça. Dona Laura – era esse o nome dela – comeu o pão que o diabo amassou com aquele marido. Minha mãe dizia:

“Pra ter um marido assim, é melhor viver sem homem”.

A pobre concordava:

“Fazer o quê, minha comadre, se foi essa praga que Deus botou no meu caminho?”

Não contei que o pai de Carniça era uma praga? Pois o meu amigo, infelizmente, depois se tornou uma praga também, parece que puxou ao pai, porque nunca vi tanta ruindade.

Já repeti umas quinhentas vezes que não tenho culpa no cartório, não falei nada para a polícia, não conheço polícia nenhuma, pois não me dou com essa gente, mas o desgraçado não acredita. Mesmo achando errado o que ele faz, eu não ia, de jeito nenhum, causar a desgraça de um sujeito que conheço desde bebê ou molequinho, que ainda por cima minha mãe batizou e ele bebeu leite no peito dela.

Digo não sei de nada, não falei nada, para com isso, você está maluco, mas não adianta. Meu quase irmão mantém essa porcaria desse revólver encostado em minha nuca, enquanto cospe, ruge, baba e grita que não tem nada a perder e vai disparar daqui a pouco.

E sei que vai.



quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Ecos do Salipa - Cineas Santos


De 2º Salipa


“Não se nasce para ontem” – Salgado Maranhão

Não por acaso, abro este arremedo de crônica usando como epígrafe o belo verso de Salgado Maranhão. Parnaíba precisa, com a maior urgência, livrar-se dos fantasmas de Simplício Dias e de outros figurões que, no passado, fizeram-na “rica e gloriosa”.Não se está pedindo aos parnaibanos que esqueçam os vultos históricos que enobrecem as origens da cidade. O que se lhes pede é que se louvem na lição de Mário de Andrade: “O passado é lição para se meditar, não para reproduzir”.

Louvo, pois, com imensa alegria, iniciativas como a realização do Salão do Livro de Parnaíba que, em sua segunda edição, já se configura como um divisor de águas na vida cultural da cidade. De tudo o que vi o mais animador foi a sede do novo que anima os parnaibanos. A plateia, constituída em sua maioria de jovens professores e estudantes, participou ativamente de tudo, com o entusiasmo dos que apostam no futuro. Para ilustrar o que digo, citarei apenas um exemplo: no início da palestra da superintendente do IPHAN no Piauí, Diva Figueiredo, faltou luz. Era de se esperar uma debandada geral. A plateia, numa demonstração de civilidade, não arredou pé do auditório. Outro incidente, bastante revelador, foi o lançamento do livro de um dos figurões da terra. Depois da bela conferência da filósofa e romancista Márcia Tiburi, antes que o público pudesse manifestar-se, alguns organizadores do evento exigiram que a moça, muito solicitada pela plateia, saísse do auditório para que se realizasse o lançamento. A jovem escritora saiu e, com ela, a plateia inteira. O mais não posso dizer porque também saí...

A 2ª edição do Salipa, bancada pela Prefeitura de Parnaíba, teria custado ao município apenas 60 mil reais, dinheiro insuficiente para contratar uma dessas bandas de forró do Ceará. E por falar em forró, parte musical do evento contou com a presença de Soraia Castelo Branco e Patrícia Melodi, para citar apenas duas das muitas atrações. Mais que uma simples feira de livros, o Salipa foi uma bela mostra da multifacetada cultura parnaibana. Literatura, música, dança, teatro, artesanato e culinária, tudo misturado num caldeirão cultural com sabor de “queremos mais”.

Marcaram presença na festa do livro, entre outros, os escritores Salgado Maranhão, Márcia Tiburi, Ondjaki, Assis Brasil, Manoel Domingos, Fonseca Neto, Diva Figueiredo e a fina flor da intelectualidade parnaibana. Com sua beleza arquitetônica, com o apelo do mar, do Delta, do clima e, principalmente, com simpatia de sua gente luminosa, Parnaíba poderá, em curtíssimo espaço de tempo, realizar o mais belo salão de livros do Piauí. Assim seja.

sábado, 28 de agosto de 2010

Das Andanças e das Lembranças



Um Canto de Afoxé Para Izabel


De Placa de Aviso
Mais cedo da manhã, antes que o dia esquentasse, fiz uma caminhada pelas ruas do bairro de Cruz das Almas, aproveitando o frescor da brisa e a suavidade do sol entre nuvens. Passando pela Avenida Santana do Ipanema, uma das principais ruas do bairro, um letreiro curioso no portão de uma casa chamou a minha atenção. Estava escrito em letras graúdas, para míope nenhum reclamar: “CUIDADO COMOÇÃO”. Fiquei intrigado com a mensagem e os passos seguintes dediquei a decifrar que “comoção” era aquela.

Dentre outras coisas, o Houaiss diz que: “comoção é emoção forte e repentina”. Então posso afirmar, sem medo de errar, que, o que senti dia desses foi uma comoção, um choque emocional causado pela surpresa (grata, ressalte-se) de encontrar uma pessoa ligada ao meu passado chegando inocentemente para o meu barraco das convivências cibernéticas. E ela se chama Izabel Urpia, que chegou a mim trazida por um amigo português, discípulo de Alexandre O’Neill, o também poeta Jota Vilela.

O simples pronunciar do nome “Urpia” já me causa frisson, comichão espiritual, uma vontade de mergulhar no túnel do tempo e resgatar as lembranças dos áureos tempos da inocência. A presença de um “Urpia” é o próprio passado que me visita, as reminiscências que afloram contundentes, as recordações que me espetam como um roseiral de espinhos. A lógica da vida beira à raia da incongruência quando assistimos a tantas fatalidades despropositadas e que o nosso bom senso reluta em aceitar como uma regra justa da vida: a Morte não tem hora anunciada nem data marcada para acontecer. E nos rebelamos contra este enunciado democrático e universal, pois, por mais que tenhamos consciência do nosso processo de transmigração ou de desencarnação, há sempre uma forte indagação dos pranteadores mais próximos do pranteado: “Por que teve que ser ele (ou ela), meu Deus!?” esquecendo-se que a Morte é a regra número um da Vida e que uma não existe com a exclusão da outra. Vida e Morte coabitam no mesmo Destino.

Cristina, minha primeira mulher, era uma “Urpia” e vivia o apogeu dos seus vinte e sete anos quando a fatalidade resolveu nos procurar. Uma simples gripe mal cuidada virou pneumonia. O médico achou que ela devia se internar para se curar mais rápido. Renitente, em casa ela não faria o tratamento adequado, vez que fumava um cigarro atrás do outro e era adepta do “gripe se cura com cachaça, limão e mel”.

Às dezoito horas deu entrada na enfermaria do hospital Jorge Valente, enquanto aguardava vagar um quarto. Às vinte e duas horas saiu da enfermaria e foi direto para a UTI, em coma profundo, devido a um vírus hospitalar. Trinta dias depois veio a falecer, sem que os médicos tivessem respostas convincentes para a tragédia que se abateu sobre a família. Deixou três filhos pequenos e uma saudade imensa.

Conheci Cristina em 1977, em uma viagem de ônibus de Paulo Afonso para Salvador. Ela era a passageira da poltrona ao meu lado e, uma hora depois de conversa e prosa, marcamos casamento. Era o mês de maio, mês das marias, das noivas e do nosso Destino. Em setembro ela engravidou e em dezembro nos casamos na igreja de Nossa Senhora Santana, no Rio Vermelho. Ela estava com 17 anos; eu, 20.

Após o carnaval de 1983, na quarta-feira de cinzas para ser mais exato, cheguei à conclusão que havia muita mulher em Salvador para pouco homem. Não era justo continuar amarrado quando tinha o mundo e as mulheres aos meus pés. Assim, com cara de ressaca, arrumei a mala e dei bye, bye que durou toda a sua curta vida. Porém, por um desses estranhos desígnios de Deus, ela conheceu e ainda recebeu em sua casa aquela que viria a cuidar dos seus filhos, meses depois.

Mas retomemos o tempo presente. Retornando da caminhada de hoje, pensando nisso tudo e na placa com o estranho aviso, não resisti e toquei a campainha da casa em questão. Um cachorro latiu amofinado, um velho tossiu irritado e uma senhora sorridente me atendeu:

– Desculpe-me pelo incômodo, moça, mas é que não resisti à curiosidade: o que significa esses dizeres “cuidado comoção”?
– Né comoção não, moço. O que está escrito é: “cuidado com o cão”. O senhor não sabe ler não, é?

Lá dentro o cão latiu hostil e um papagaio debochado afinou o chalreio: “uuh, babaca!”

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Sonho e Pesadelo - Luís Pimentel

De Congestionamento


– O senhor também teve o Rolex roubado, Seu Antônio, que nem o apresentador da televisão, ou simplesmente esqueceu o seu horário de trabalho?
– Quem sou eu, chefe, para ter um Rolex. O meu relógio é de camelô, de cinco reais.
– Quanto à segunda pergunta?...
– Peguei um engarrafamento cachorro, doutor Ayres. Horas parado dentro de um ônibus na 24 de maio. Não é fácil vir do Méier a Copacabana.
– Em uma cidade deste tamanho, constantemente engarrafada, engarrafamentos não podem mais servir como justificativa para atrasos. Trânsito parado, hoje, aqui e agora, é rotina. O que não pode virar rotina é o atraso no trabalho.
– Não entendi onde o senhor quer chegar.
– Não quero chegar a lugar nenhum, Seu Antônio. Eu precisava chegar até aqui, no meu serviço, e cheguei. Na hora. E também de ônibus.
– Doutor Ayres, francamente. Não seja tão Caxias.
– E se os papéis fossem trocados, Seu Antônio? Se o senhor estivesse em meu lugar e eu no seu, aceitaria que eu entrasse aqui a esta hora?
– Mas é claro. Sou a generosidade em pessoa.
– Pois saiba que, à nossa revelia, os papéis foram trocados. O senhor foi promovido e eu fui rebaixado, com a opção honrosa da demissão voluntária, caso não aceitasse. Aceitei. O senhor será o meu chefe, a partir de amanhã. Vamos ver como é que a banda toca.
– Não acredito.
– Acredite. E quanto aos engarrafamentos diários, a vida continua?
– Vamos ter que repensar, Seu Ayres. Vamos ter que repensar.
***
Dormindo ou acordado, a distância entre o sonho e pesadelo pode ser apenas de dois pra lá e dois pra cá. Ou vice-versa.

sábado, 21 de agosto de 2010

Vozes da Cidade - Cineas Santos




Dia desses, um político de carteirinha, desses cevados nos gabinetes da República, me fez a seguinte pergunta: “Professor, por que o final da letra do Hino de Teresina é tão pra baixo?“. De imediato, lembrei-me de uma coluna criada pelo Millôr Fernandes, denominada “Ministério das perguntas cretinas”. Engatilhei uma resposta condizente, mas segurei o freio de mão. Respondi: Talvez tenhamos ideias diferentes do que seja “para baixo”. Vejamos a última estrofe do hino: “Teresina, eterno raio de sol,/ Manhãs de claro azul num céu de anil;/ És fruto do labor da gente simples,/ Humilde entre os humildes do Brasil”. Pensando bem, o político tem razão: para um arrivista capaz de vender a alma ao diabo para chegar ao poder, os adjetivos simples e humilde devem soar depreciativas. Não bastasse isso, convém lembrar que os hinos, com raras exceções, são marchas marciais que conclamam os cidadãos a morrerem pela pátria. Até mesmo os hinos dos clubes de futebol, além de cantarem glórias e conquistas, incitam os torcedores a morrerem e matarem “pelas cores do time”. E como matam e morrem...

No caso de Teresina, há um dado curioso: a cidade passou 145 anos sem ter um hino, fato incomum. Pode-se argumentar que, a despeito disso, a capital cresceu e prosperou, o que é verdade. Mas, por oportuno, vale ressaltar que o homem é um animal que constrói sua identidade com símbolos. Alguém é capaz de imaginar o Cristianismo sem a imagem da cruz? Um hino, por pior que seja, é um símbolo e, como tal, deve ser entendido. Não por acaso, a autoestima do teresinense anda quase sempre ao rés do chão.

Como entrei nessa história? Bem: em 1997, a prefeitura de Teresina instituiu um concurso público para a escolha do hino da cidade. O músico Erisvaldo Borges compôs uma melodia e, sabendo do meu amor à cidade, pediu-me que escrevesse a letra. Na hora, retruquei que, em matéria de hino, o único que conhecia era o do Flamengo que, ainda hoje, mais choro do que canto. Por insistência do músico, encarei a empreitada. Nossa canção acabou sendo a escolhida e tornou-se o Hino de Teresina.
Na hora de iniciar a composição, pensei: vou cantar o essencial. E o essencial, em qualquer lugar do mundo, é Povo, o mais é paisagem. O Hino de Teresina é uma louvação ao cidadão comum, humilde, generoso e trabalhador. O que mais poderia cantar? O sol, os rios e o verde que, infelizmente, vai minguando a cada dia. Nada além. Não me cabia inventar guerras, feitos heroicos, grandes conquistas. A cidade sempre foi pacata, ordeira e acolhedora.

Talvez o ilustre político tenha considerado “pra baixo” justamente a louvação do povo simples, humilde e trabalhador, que lhe paga o salário e lhe garante um gabinete junto ao poder onde trama, alinhava conchavos e brinca de ser poderoso.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

AS FÉRIAS DO BRÓDER MARCÃO

Para o amigo Marcos Cunha,
Poeta de alta cepa.


De Morro de são Paulo



Marcão entrou em duplas férias: trabalho e faculdade. Aproveitou a oportunidade para conhecer Morro de São Paulo e suas turistas maravilhosas. Fez as malas, deu um beijo de despedida na mulher – que virou a cara em protesto gemente compreensivelmente humano de “na volta a gente se acerta!” –, deu um beijo na filha e entrou no táxi, rumo à Companhia Baiana de Navegação, vizinha ao porto de Salvador e em frente ao Mercado Modelo, onde embarcaria no “Catamarã” até Valença e de lá seguiria de canoa ou barco até a maravilhosa ilha, tão cantada em versos e prosas.

Viagem para Valença somente duas horas depois. Enquanto aguardava, resolveu jogar conversa fora na barraca do Miranda, no Mercado Modelo, regada a cerveja e tira-gosto de lambreta e pititinga, um peixinho tão miúdo que mal cabe na ponta do palito.

Em Salvador tem dessas coisas: quando você quer testar a baianidade de uma pessoa, leva-a ao Mercado Modelo. Chegando lá, se pedir uma dose de cachaça Januária e uma porção de lambreta, pode apostar que é baiano dos bons; caso contrário, é um impostor.

Passadas as duas horas, Marcão, ou melhor, Marcos Cunha, operador de processo metalúrgico da Caraíba Metais, embarcou para sua viagem encantada pela Baía de Todos os Santos, via mar de Itaparica e depois costa sul baiana.

Não descreverei o percurso, pois ele era marinheiro de primeira viagem e só conseguiu sair do banheiro quando o navio parou em águas calmas de Valença e não fica bem se falar do líquido verde que saía de sua boca quando o seu estômago não tinha mais nada para vomitar.

Em Valença, acertou com um barqueiro, atravessou a faixa que separa o continente do paraíso e, duas horas depois, andava sem rumo pelas ruas de Morro de São Paulo à procura de uma hospedagem. Em todas que batia, apenas uma resposta: lotação esgotada.

Procura daqui, procura acolá, já noite fechada, conseguiu uma esperança:

– Há uma cama vaga em um dos quartos, mas lá está dormindo um cidadão que ronca muito, muitíssimo, e alto, que interfere até nos quartos vizinhos e os outros hóspedes vivem reclamando.

– Não tem problema não. Sou acostumado a dormir na área da Caraíba, onde o barulho é ensurdecedor, quanto mais um ronquido à toa.

– Então a responsabilidade é toda sua. Depois não venha me dizer que não lhe avisei.

Marcão pegou a chave e foi para o quarto. No outro dia levantou-se disposto e, ao sentar-se à mesa para o café da manhã, o dono da hospedagem foi até ele. Sorridente, indagou:

– Como é que você conseguiu, cara? Pela primeira vez, desde que esse cidadão chegou, que todos dormiram sossegados, sem ouvir o ronco. O que foi que você fez? Que milagre foi esse?

– Eu não fiz milagre nenhum. Simplesmente, quando voltei pra dormir, o tal “roncador” se encontrava deitado de bruços. Puxei o lençol, dei um beijo na bunda dele e disse: “Que bundinha mais linda, meu Deus! Se dormir, eu traço! Há muito tempo que não vejo uma bundinha dessa!” Aí ele deu um pulo da cama, aterrorizado, se sentou num banquinho e passou a noite lá, sentado, me vigiando, com medo de fechar os olhos e dormir.


N.A. Qualquer semelhança com piada de botequim é mera coincidência.

Trio Irakitan na Tourada de Madri

Essas coisas raras que de vez em quando a gente acha na internet e não podem ficar perdidas no universo cibernético. Uma cena do filme nacional "Garota Enxuta" de JB Tanko, de 1959", com Grande Otelo e a participação do Trio Irakitan, interpretando a marcha carnavalesca "Touradas de Madri", de Braguinha. Vale a pena ver.

sábado, 14 de agosto de 2010

Para Lennon e McCartney - Luís Pimentel



– A maneira de escrever não era assim que nem a do meu nome, não. Está aportuguesado, escrito conforme o nosso linguajar. O João, por exemplo, é John. O Leno se escreve, na verdade, de outro jeito. Dois enes, um agá e coisa e tal. Marcarte quer dizer Mc Cartney, de Paul Mc Cartney.
– Sei.
– Sabe coisa nenhuma. Estou perdendo o meu tempo te explicando essas coisas. Tu não tem a menor idéia sobre os caras de que estou falando.
– E preciso ter? Nem sei para que tanta informação. Eu só perguntei como era o teu nome completo.
– É João Leno Macarte da Silva.
– É esquisito pra cacete.
– É uma homenagem, mané. A dois caras muito importantes. Lennon e Mc Cartney, astros principais dos Beatles. Os músicos mais badalados, os melhores cantores e compositores. Sacou? Saca os Beatles?
– Não é do meu tempo. Mas já ouvi falar.
– Jesus Cristo também não é do teu tempo. Já ouviu falar, não já? Tem essa não, cara. Os Beatles. O conjunto de rock mais importante da história do universo.
– Mais que os rolinstones?
– Pô! Deixa no chinelo.
– Só lembro da música. Era um garoto, que como eu, amava os bitos e rolinstones.
– Isso aí. Meu nome vem daí. Meu pai juntou os nomes dos dois caras.
– E o da Silva?
– Da Silva é de família mesmo.
– E por que os teus pais fizeram essa sacanagem contigo? Leva a mal não, mas o teu nome ficou muito esquisito.
– Eles eram loucos pelos Beatles, além de loucos mesmo, no geral. Meu pai tomava porre, botava o disco dos caras na vitrola e se deitava no chão, abraçado com a caixa de som, babando na barba e acompanhando o som dos caras. Sabia todas as letras, principalmente as do John Lennon.
– E a tua mãe?
– Minha mãe curtia o Paul.
– Quem?
– Paul Cartney, o outro. Ela achava o cara lindão. E era mesmo. Outro dia vi o malandro na televisão. Tá velhaço, mas um velho bem apanhado. Minha mãe até fugiu com um sujeito que trabalhava no restaurante da esquina, só porque ele se parecia com o Paul.
– E o teu pai?
– Ficou com o John. Deitando no chão, abraçado à caixa de som, babando na barba.
– E ele?
– Ele quem?
– O Jon. Tá velhaço também?
– Morreu.
– De que?
– Meteram umas balas nos cornos dele.
– No morro? Era envolvido com tóxico?
– Claro que não, meu irmão. Foi um maluco que apagou ele. Um fã. O cara tá preso.
– E tu?
– Que tem eu?
– E por que tu veio parar aqui, no Frei Caneca?
– Me pegaram com uma arma e não tenho porte. Tomaram a arma e ainda me enfiaram aqui.
– E pra que tu queria a arma? Ia assaltar?
– Deus me livre. Sou do bem. Eu ia matar um cara.
– Aqui mesmo?
– Não. Na Inglaterra.
– Quem?
– O outro. O que sobrou. O tal do Paul.


quinta-feira, 12 de agosto de 2010

A primeira ninguém esquece - Cineas Santos

De Pescador de piaba



A cidade era uma leseira só. A monotonia só se quebrava no período dos festejos do padroeiro, quando morria um dos bem-nascidos ou quando chegava algum cirquinho extraviado. No mais, a vida escorria lenta como um rio de águas viscosas... Para mim, que não conhecia outra cidade, tudo estava conforme: havia passarinhos e disposição para persegui-los; havia os campinhos de monturo e bola de meia; havia, principalmente, as piabas rutilantes no açude, que chamávamos de tanque. Pescá-las, no entanto, exigia alguns apetrechos básicos, paciência e alguma habilidade. Os arremedos de anzóis eram feitos de alfinetes, cuidadosamente, curvados, com uma leve inclinação para direita. Para distingui-los dos anzóis de verdade, criamos um neologismo: gués. Frágeis, só serviam para pegar piabas. A linha-zero, presa a uma varinha de pereira, não podia ultrapassar a medida de metro e meio. Pronto o gué, era preciso preparar a isca. Os mais apressados recorriam a miolo de pão ou beiju. Os expertos (modestamente, eu me incluía entre eles) usavam uma isca especial denominada bolo. Preparar o bolo era quase um ritual: farinha de mandioca pisada no pilão, uma pitada de goma, uns fiapinhos de algodão e água fervendo. Depois, era usar as mãos para manipular a massa até torná-la homogênea e consistente. Isto posto, bastava escolher o local e o horário adequados. Para quem não sabe, piaba tem hora de alimentar-se. O amanhecer e o final da tarde são os melhores horários. Um inconveniente: não se pesca piaba sem doar um pouco de sangue às muriçocas: a vida é feita de escambos...

Diariamente, armado dos apetrechos necessários, eu me dirigia ao velho tanque e, sem maiores sacrifícios, pescava uma enfiada de piabas. A pior parte – limpá-las e tratá-las – ficava por conta da Bia, minha irmã querida. Postas para secar numa folha-de-flandres, estavam prontas para serem fritas na gordura quente. Comê-las era sempre a melhor parte. Entre os comensais das minhas piabas, figurava seu Pojucã Aragão, com seu narigão de árabe e o cheiro de nicotina que o denunciava a distância. Seu Pojucã degustava as piabinhas fritas com cachaça Claudionor Carneiro. Só pagava a bebida: o tira-gosto era uma “cortesia” da tia Purcina. Todos os dias, antes do almoço, o ritual se repetia como se fosse uma devoção.

Vai que um dia, por um motivo qualquer, não fui pescar. No horário de sempre, o cidadão chegou, pediu uma talagada de cana e ficou à espera das piabas. Ao saber que não as teria, ficou bastante desapontado. Com ar de inquisidor, perguntou-me: - Você não foi pescar por quê? Como, desde pequeno, não gosto de dar satisfações a ninguém, mesmo correndo o risco de pegar uns cocorotes de dona Purcina, nem titubeei: Porque não quis! O cidadão percebeu que no grito nada conseguiria. Cordato, me fez a seguinte proposta: - Amanhã, se você pescar cem piabas, lhe dou uma camisa. Para encurtar a arenga, no dia seguinte, ao meio-dia, 102 piabas, salgadas e sequinhas, estavam à sua disposição. Homem de palavra, cumpriu o combinado. Foi assim que, aos nove anos de idade, comprei minha primeira camisa. Ganha um doce quem adivinhar a cor...

Por que me lembrei disso agora? Bem: na semana passada, fui a São Raimundo Nonato na companhia do violonista Josué Costa. Por falta de coisa melhor, levei-o ao velho açude para pescar piabas. Josué, que nunca pescara nada na vida, ao fisgar a primeira piaba, fez tamanho alarido que escorraçou as demais. Pediu-me que o fotografasse, exibindo a piabinha que, como uma pequena placa de cristal, debatia-se no ar. Aos olhos dos passantes, a cena poderia parecer patética. Aos meus, não. Sei, por experiência própria, que a primeira piaba ninguém esquece.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Um Causo de Arrepiar - Ronaldo Torres

De fogo-fátuo sertanez
Era noite de breu e o vento açoitava nas frestas das janelas tirando um som agudo e arrepiante. Parecia um gemido de almas penadas ou vozes vindas do Além, espectros em busca de um médium para se manifestar para os vivos. Os ponteiros se aproximavam da meia-noite, os meus irmãos e eu não conseguíamos dormir. Éramos três a dividir o medo e o mau presságio, cada um fantasiando e interpretando ao seu modo as variações sonoras do vento. Guidório, o mais velho, aproveitou o nosso medo para contar uma história verídica de assombração, acontecida com o nosso primo França, lá para as bandas do Arraial do Junco. “Era uma noite de lua cheia, de céu límpido e transparente, e dava até pra ver São Jorge lutando contra o dragão na Lua.” – disse-nos ele. “No Junco, nas noites de lua cheia, as crianças se sentam à porta de casa para ouvir os mais velhos contar estórias de além-mar, de Pedro Malasarte, ou estórias de assombração, de zumbis, fogo-fátuo, visagens, lobisomens e mulas-sem-cabeça. Vocês sabiam que a mula-sem-cabeça é o castigo de Deus para a mulher que transa com padre? E que o filho que bate na mãe vira lobisomem na quaresma?” Não. Não sabíamos. “O Junco” – prosseguiu – “é cheio de crendices e superstições, fruto da miscigenação indígena, e por isso é forte o temor ao sobrenatural, às coisas do Além. Nossos tataravôs eram portugueses casados com índias; como os filhos ficavam a maior parte do tempo com as mães, foram passados para os filhos seus presságios, lendas, crendices e todo o medo e respeito do índio ao sobrenatural. E os seus filhos passaram para os filhos que passaram para os filhos e estamos nós aqui, na quarta ou quinta geração, com medo do vento assobiando lá fora.” “O nosso primo França, nessa noite de lua cheia, estava voltando do seu roçado para sua casa, na cidade. Perdera a claridade do dia por causa de uma rês desgarrada que ele teve que ir atrás. Quando conseguiu trazê-la de volta para o seu pasto, já era noite fechada. Não se preocupou, pois a lua iluminava o caminho como se fosse a luz do sol e o cavalo seguia em trote leve, depois de um dia de labuta. De repente, França avistou um clarão vermelho ao longe e o seu coração acelerou descompassado:” “– Um facho! – gritou assombrado.” Facho, como vocês sabem, é como se chama o fogo-fátuo lá para aquelas bandas. E o fogo-fátuo nada mais é do que a combustão espontânea de gases de matérias orgânicas em decomposição, principalmente em cemitérios, e, por causa disso, pensa-se que seja uma aparição do sobrenatural, uma alma penada em busca de um corpo para reencarnar. E França, que muitas e muitas vezes ouvira falar do fogo-fátuo – ou do facho, conforme se chamava – estava tendo sua primeira experiência com o sobrenatural e não sabia como se defender. Rezou o Pai-Nosso, o Credo, a Ladainha de Nossa Senhora, oração para o anjo da guarda e quando esgotou seu acervo de orações, passou a inventar algumas, porém o facho parecia determinado em sua aparição e se aproximava dele no mesmo passo do andar do cavalo. Ora desaparecia, ora ficava piscando e quando França tomou ciência de que o encontro seria inevitável caso continuasse em sua marcha, encostou o cavalo em um arbusto, apeou, se escondeu em outro, e passou a noite ao relento, de cócoras, olhando as estrelas e aguardando o dia amanhecer para seguir viagem. Ao surgirem as primeiras barras da manhã, tomou as rédeas do cavalo, montou e picou esporas no caminho da cidade. Estava doido para chegar à venda de Luiz de Roxinho, molhar a garganta e contar a sua primeira experiência com o sobrenatural. Ao olhar em direção de onde tinha visto o facho, seu coração pulsou acelerado e o corpo retesou: o facho continuava a lhe perseguir. “Não pode!”, pensou, suando frio. Todos sabem que o “facho” não aparece no amanhecer, e como é que aquele estava lá? Aprumou as vistas em direção da assombração e então uma surpresa quase o fez cair do cavalo: o tão temido facho não passava da luz de sinalização da torre de telefone, no alto do Cruzeiro dos Montes, e sua aparição intermitente se devia ao trotar do cavalo que elevava a sua visão sobre os arbustos.” Meu irmão Guedes e eu disparamos em gargalhada que rompeu o silêncio da noite e vazou até o quarto dos nossos pais, que nos ameaçaram de surra caso o nosso irmão caçula acordasse. Abafamos o riso e então ouvimos um grito desesperado vindo da cozinha. Um, não; vários, e ainda com pedido de socorro. Levantamo-nos às pressas e corremos para ver o que estava acontecendo. Deparamo-nos com nossa irmã Zuleide em estado de choque, ofegante, trêmula, sem falar coisa com coisa. O velho chegou empunhando uma arma, pensando tratar-se de ladrão. – O que foi, Zuleide? – perguntou. – U’a alma! U’a alma penada! – balbuciou. – Onde? – Ali. No quintal! – e apontou porta afora. Olhamos para o quintal. O vento balançava as árvores e as folhas cantavam uma melodia arrepiante. Mais ao fundo um vulto branco parecia flutuar no ar, balançando de um lado para o outro. O meu coração disparou. Guedes se agarrou à barra da saia de nossa mãe e não quis largar, por mais que ela forçasse. O velho mandou Guidório dar um sumiço na bendita alma, pois não queria saber desse negócio de assombração no quintal. Que procurasse outra casa para assombrar. “Fantasmas desvalorizam o imóvel”, foi o que disse antes de retornar ao seu quarto. Guidório desapareceu no breu do quintal e Zuleide pedia, histérica, para ele voltar. Tempos depois vimos sua sombra se aproximar do espectro, confabular, fazer uns gestos e, espantados, o vimos ser engolido pela alma penada em questão de segundos. Zuleide gritou lamentosa: – A alma tomou o corpo dele! A alma tomou o corpo dele e vem vindo em nossa direção! De fato o fantasma caminhou em passos largos em nossa direção, com o gingado de capoeira peculiar de Guidório, um discípulo do mestre Pastinha. Tomara a forma do seu corpo. Quem seria essa alma desgarrada dos mortos, vagando pelo mundo dos vivos, em busca da transmigração? Será que nos faria algum mal depois de se apoderar da matéria carnal do nosso irmão? Antes que estas perguntas fossem respondidas e que nossa irmã desmaiasse de medo, Guidório se rematerializou e jogou um lençol branco sobre a mesa.