De Pescador de piaba |
A cidade era uma leseira só. A monotonia só se quebrava no período dos festejos do padroeiro, quando morria um dos bem-nascidos ou quando chegava algum cirquinho extraviado. No mais, a vida escorria lenta como um rio de águas viscosas... Para mim, que não conhecia outra cidade, tudo estava conforme: havia passarinhos e disposição para persegui-los; havia os campinhos de monturo e bola de meia; havia, principalmente, as piabas rutilantes no açude, que chamávamos de tanque. Pescá-las, no entanto, exigia alguns apetrechos básicos, paciência e alguma habilidade. Os arremedos de anzóis eram feitos de alfinetes, cuidadosamente, curvados, com uma leve inclinação para direita. Para distingui-los dos anzóis de verdade, criamos um neologismo: gués. Frágeis, só serviam para pegar piabas. A linha-zero, presa a uma varinha de pereira, não podia ultrapassar a medida de metro e meio. Pronto o gué, era preciso preparar a isca. Os mais apressados recorriam a miolo de pão ou beiju. Os expertos (modestamente, eu me incluía entre eles) usavam uma isca especial denominada bolo. Preparar o bolo era quase um ritual: farinha de mandioca pisada no pilão, uma pitada de goma, uns fiapinhos de algodão e água fervendo. Depois, era usar as mãos para manipular a massa até torná-la homogênea e consistente. Isto posto, bastava escolher o local e o horário adequados. Para quem não sabe, piaba tem hora de alimentar-se. O amanhecer e o final da tarde são os melhores horários. Um inconveniente: não se pesca piaba sem doar um pouco de sangue às muriçocas: a vida é feita de escambos...
Diariamente, armado dos apetrechos necessários, eu me dirigia ao velho tanque e, sem maiores sacrifícios, pescava uma enfiada de piabas. A pior parte – limpá-las e tratá-las – ficava por conta da Bia, minha irmã querida. Postas para secar numa folha-de-flandres, estavam prontas para serem fritas na gordura quente. Comê-las era sempre a melhor parte. Entre os comensais das minhas piabas, figurava seu Pojucã Aragão, com seu narigão de árabe e o cheiro de nicotina que o denunciava a distância. Seu Pojucã degustava as piabinhas fritas com cachaça Claudionor Carneiro. Só pagava a bebida: o tira-gosto era uma “cortesia” da tia Purcina. Todos os dias, antes do almoço, o ritual se repetia como se fosse uma devoção.
Vai que um dia, por um motivo qualquer, não fui pescar. No horário de sempre, o cidadão chegou, pediu uma talagada de cana e ficou à espera das piabas. Ao saber que não as teria, ficou bastante desapontado. Com ar de inquisidor, perguntou-me: - Você não foi pescar por quê? Como, desde pequeno, não gosto de dar satisfações a ninguém, mesmo correndo o risco de pegar uns cocorotes de dona Purcina, nem titubeei: Porque não quis! O cidadão percebeu que no grito nada conseguiria. Cordato, me fez a seguinte proposta: - Amanhã, se você pescar cem piabas, lhe dou uma camisa. Para encurtar a arenga, no dia seguinte, ao meio-dia, 102 piabas, salgadas e sequinhas, estavam à sua disposição. Homem de palavra, cumpriu o combinado. Foi assim que, aos nove anos de idade, comprei minha primeira camisa. Ganha um doce quem adivinhar a cor...
Por que me lembrei disso agora? Bem: na semana passada, fui a São Raimundo Nonato na companhia do violonista Josué Costa. Por falta de coisa melhor, levei-o ao velho açude para pescar piabas. Josué, que nunca pescara nada na vida, ao fisgar a primeira piaba, fez tamanho alarido que escorraçou as demais. Pediu-me que o fotografasse, exibindo a piabinha que, como uma pequena placa de cristal, debatia-se no ar. Aos olhos dos passantes, a cena poderia parecer patética. Aos meus, não. Sei, por experiência própria, que a primeira piaba ninguém esquece.
Nenhum comentário:
Postar um comentário