terça-feira, 10 de agosto de 2010

Um Causo de Arrepiar - Ronaldo Torres

De fogo-fátuo sertanez
Era noite de breu e o vento açoitava nas frestas das janelas tirando um som agudo e arrepiante. Parecia um gemido de almas penadas ou vozes vindas do Além, espectros em busca de um médium para se manifestar para os vivos. Os ponteiros se aproximavam da meia-noite, os meus irmãos e eu não conseguíamos dormir. Éramos três a dividir o medo e o mau presságio, cada um fantasiando e interpretando ao seu modo as variações sonoras do vento. Guidório, o mais velho, aproveitou o nosso medo para contar uma história verídica de assombração, acontecida com o nosso primo França, lá para as bandas do Arraial do Junco. “Era uma noite de lua cheia, de céu límpido e transparente, e dava até pra ver São Jorge lutando contra o dragão na Lua.” – disse-nos ele. “No Junco, nas noites de lua cheia, as crianças se sentam à porta de casa para ouvir os mais velhos contar estórias de além-mar, de Pedro Malasarte, ou estórias de assombração, de zumbis, fogo-fátuo, visagens, lobisomens e mulas-sem-cabeça. Vocês sabiam que a mula-sem-cabeça é o castigo de Deus para a mulher que transa com padre? E que o filho que bate na mãe vira lobisomem na quaresma?” Não. Não sabíamos. “O Junco” – prosseguiu – “é cheio de crendices e superstições, fruto da miscigenação indígena, e por isso é forte o temor ao sobrenatural, às coisas do Além. Nossos tataravôs eram portugueses casados com índias; como os filhos ficavam a maior parte do tempo com as mães, foram passados para os filhos seus presságios, lendas, crendices e todo o medo e respeito do índio ao sobrenatural. E os seus filhos passaram para os filhos que passaram para os filhos e estamos nós aqui, na quarta ou quinta geração, com medo do vento assobiando lá fora.” “O nosso primo França, nessa noite de lua cheia, estava voltando do seu roçado para sua casa, na cidade. Perdera a claridade do dia por causa de uma rês desgarrada que ele teve que ir atrás. Quando conseguiu trazê-la de volta para o seu pasto, já era noite fechada. Não se preocupou, pois a lua iluminava o caminho como se fosse a luz do sol e o cavalo seguia em trote leve, depois de um dia de labuta. De repente, França avistou um clarão vermelho ao longe e o seu coração acelerou descompassado:” “– Um facho! – gritou assombrado.” Facho, como vocês sabem, é como se chama o fogo-fátuo lá para aquelas bandas. E o fogo-fátuo nada mais é do que a combustão espontânea de gases de matérias orgânicas em decomposição, principalmente em cemitérios, e, por causa disso, pensa-se que seja uma aparição do sobrenatural, uma alma penada em busca de um corpo para reencarnar. E França, que muitas e muitas vezes ouvira falar do fogo-fátuo – ou do facho, conforme se chamava – estava tendo sua primeira experiência com o sobrenatural e não sabia como se defender. Rezou o Pai-Nosso, o Credo, a Ladainha de Nossa Senhora, oração para o anjo da guarda e quando esgotou seu acervo de orações, passou a inventar algumas, porém o facho parecia determinado em sua aparição e se aproximava dele no mesmo passo do andar do cavalo. Ora desaparecia, ora ficava piscando e quando França tomou ciência de que o encontro seria inevitável caso continuasse em sua marcha, encostou o cavalo em um arbusto, apeou, se escondeu em outro, e passou a noite ao relento, de cócoras, olhando as estrelas e aguardando o dia amanhecer para seguir viagem. Ao surgirem as primeiras barras da manhã, tomou as rédeas do cavalo, montou e picou esporas no caminho da cidade. Estava doido para chegar à venda de Luiz de Roxinho, molhar a garganta e contar a sua primeira experiência com o sobrenatural. Ao olhar em direção de onde tinha visto o facho, seu coração pulsou acelerado e o corpo retesou: o facho continuava a lhe perseguir. “Não pode!”, pensou, suando frio. Todos sabem que o “facho” não aparece no amanhecer, e como é que aquele estava lá? Aprumou as vistas em direção da assombração e então uma surpresa quase o fez cair do cavalo: o tão temido facho não passava da luz de sinalização da torre de telefone, no alto do Cruzeiro dos Montes, e sua aparição intermitente se devia ao trotar do cavalo que elevava a sua visão sobre os arbustos.” Meu irmão Guedes e eu disparamos em gargalhada que rompeu o silêncio da noite e vazou até o quarto dos nossos pais, que nos ameaçaram de surra caso o nosso irmão caçula acordasse. Abafamos o riso e então ouvimos um grito desesperado vindo da cozinha. Um, não; vários, e ainda com pedido de socorro. Levantamo-nos às pressas e corremos para ver o que estava acontecendo. Deparamo-nos com nossa irmã Zuleide em estado de choque, ofegante, trêmula, sem falar coisa com coisa. O velho chegou empunhando uma arma, pensando tratar-se de ladrão. – O que foi, Zuleide? – perguntou. – U’a alma! U’a alma penada! – balbuciou. – Onde? – Ali. No quintal! – e apontou porta afora. Olhamos para o quintal. O vento balançava as árvores e as folhas cantavam uma melodia arrepiante. Mais ao fundo um vulto branco parecia flutuar no ar, balançando de um lado para o outro. O meu coração disparou. Guedes se agarrou à barra da saia de nossa mãe e não quis largar, por mais que ela forçasse. O velho mandou Guidório dar um sumiço na bendita alma, pois não queria saber desse negócio de assombração no quintal. Que procurasse outra casa para assombrar. “Fantasmas desvalorizam o imóvel”, foi o que disse antes de retornar ao seu quarto. Guidório desapareceu no breu do quintal e Zuleide pedia, histérica, para ele voltar. Tempos depois vimos sua sombra se aproximar do espectro, confabular, fazer uns gestos e, espantados, o vimos ser engolido pela alma penada em questão de segundos. Zuleide gritou lamentosa: – A alma tomou o corpo dele! A alma tomou o corpo dele e vem vindo em nossa direção! De fato o fantasma caminhou em passos largos em nossa direção, com o gingado de capoeira peculiar de Guidório, um discípulo do mestre Pastinha. Tomara a forma do seu corpo. Quem seria essa alma desgarrada dos mortos, vagando pelo mundo dos vivos, em busca da transmigração? Será que nos faria algum mal depois de se apoderar da matéria carnal do nosso irmão? Antes que estas perguntas fossem respondidas e que nossa irmã desmaiasse de medo, Guidório se rematerializou e jogou um lençol branco sobre a mesa.

Um comentário:

Toninho disse...

Uma boa recordação de uma infancia feita sob o signo do medo, assim foi a minha lá no interior de Minas, onde os casos criavam vidas.Noites com apenas a lamparina a iluminar por certo tempo. Na beira do fogão a lenha os causos mais arrepiantes.Bela lembrança.