domingo, 20 de janeiro de 2013

Cineas Santos - Da arte de sobreviver




Contrariando as previsões de profetas, místicos, embusteiros, e assemelhados, o fim do mundo não aconteceu na data prevista: 21 de dezembro de 2012. É certo que milhares de mundinhos pessoais desceram pelo ralo, mas o Armagedom  foi adiado mais uma vez. Ainda teremos um tempinho para continuar cometendo pequenos e grandes crimes e fazendo bobagens. Quanto a mim, confesso que já estou no lucro.

A primeira vez que ouvi falar do fim do mundo, eu era praticamente virgem em matéria de pecados, a não ser do tal pecado original que, ao nascer, já trazemos embutido em nossas almas. Eu teria uns dez anos de idade, se tanto. Num início de noite, ouvi no rádio do padre Nestor Lima a trombeta do anjo vingador: “O mundo acabará em 1970”. Fiquei literalmente aterrorizado. A partir daquele instante, eu teria uns doze anos, no máximo, para realizar alguns sonhos acalentados desde sempre: comprar uma bicicleta Monark, uma sanfona Scandalli, um relógio Lanco, um rádio Philco, uma espingarda Rossi, uma lanterna de três elementos, uma chuteira feita pelo Raimundo do Pedro e um frasco de English Lavander. Na verdade, eu tinha um único fito: chegar ao coração de Cleonice, com quem iria me casar. A fim de levantar a dinheirama suficiente para comprar tudo isso, seria necessário ir a São Paulo onde, segundo atestava o baião de seu Luiz, corria ouro pelo chão. Fiz as contas e vi que não daria tempo. Sofri como um condenado...

Em 1970, eu já desistira da sanfona, do rádio, da espingarda, ou seja, da Cleonice... À época, meu coração bandoleiro errava por uma fulaninha, mais acesa que farol de milha... Conclusão: a despeito da ditadura que prendia, torturava e matava, nunca fomos tão felizes: “noventa milhões em ação” e a inesquecível conquista do Tri... Marcou-se uma nova data para o fim do mundo: o ano 2000. Voltei a fazer as contas e vi que já estava no lucro: em minha aldeia, a média de vida não excedia a 45 anos de idade.

Manquitolando, cheguei à virada do milênio. E, como naquela canção de Paulo César Pinheiro & Baden Powell, “Não fui feliz nem infeliz / só fui na vida um aprendiz / daquilo que eu não quis”.  Preparei-me, finalmente, para a data definitiva:  21 dezembro de 2012. Paguei a conta na quitanda, cancelei a viagem à Birmânia, alimentei as rolinhas que voejam pelo meu quintal, banhei os cães, queimei um punhado de poemas ruins, ouvi “Nervos de aços”, liguei para meia dúzia de sirigaitas  e comecei a rezar a oração que aprendi com São Bandeira: “Quando a indesejada das gentes chegar...”

Veio a data fatídica e nada aconteceu. Só então me dei conta de que, ocupado com ninharias, não percebi que  o meu estoque de English Lavander  está no final: restam apenas dois frascos. Corri a perfumarias, armarinhos, farmácias e descobri que o produto está em falta no mercado. Confesso, sem nenhum constrangimento, que suportaria estoicamente o fim do mundo; o fim do meu perfume, não. Sem ele, eu não me reconheço. Como no poeminha “Veritas”, seria eu / sem mim...   

    

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Adeus, Maria Helena Bandeira


 O blog  está de luto. Morreu, no último dia 06, no Rio de Janeiro, a nossa amiga e colaboradora Maria Helena Bandeira, vitimada por um câncer no intestino.

A Mhel, como era carinhosamente chamada por nós, era autora de FC, mas quando eu lhe pedia um texto para o blog, ela me dizia com seu jeito doce:

- Faço qualquer coisa por você, Tom Mix. Até mesmo escrever o que não sei.

E escrevia divinamente. E, para mim, fez muito mais do que escrever. Quando a minha filha Flávia foi se aventurar pela cidade carioca, Mhel tomou conta dela como se filha fosse.

A meu pedido, ela escreveu A Saga de Catende, o inverso da arribação nordestina, um texto em sete capítulos para ser lido e devorado por quem gosta de uma boa leitura. Catende é uma cidade de Pernambuco, terra de Ascenso Ferreira, Maurício Melo e da bisavó de Mhel. A saga conta a história da mocinha que é forçada a se mudar do Rio de Janeiro para a fazenda dos avós, em Catende, um lugar onde tomar banho de cuia era considerado luxo.

Abaixo, deixo o link para os textos da agora saudosa Maria Helena Bandeira, a irlandesa com sangue nordestino correndo nas veias, que cedo nos deixou para desvendar os mistérios do Universo que tanto aguçou os seus sentidos em vida

Descanse em paz, Mhel, e obrigado pela amizade. Sentirei saudades, mas qualquer dia a gente se encontra. Flavinha lhe manda um beijo de despedida.

LINK PARA OS TEXTOS DE MARIA HELENA BANDEIRA

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Eu era feliz e não sabia




Depois de assistir ao constrangimento de Roberto Carlos cantando e dançando “Ai, se eu te pego!” no seu tão badalado programa, pensei cá com meus botões: “Deus do Céu, a que vexame vestiram o rei!”

Já não bastava o “segura peão!” de outros programas. Nem a Banda Apocalipse. Ou Marília Pera interpretar suas canções. Era preciso chegar ao fundo do mau gosto para provar quem mandava no pedaço. “Que rei sou eu, afinal?” deve ter pensado Roberto Carlos em algum momento de lucidez. Era visível o seu mal estar nos gestos obscenos que a poética da música pedia.

Bebi um gole d’água e pensei: “No segundo bloco ele se safa.” Mas qual o quê?! Simplesmente ridículo seu ensaio no camarim das Empreguetes. Diria a minha mãe: “Sem jeito mandou lembranças!” Ele sorria amarelo, talvez mais surpreso do que eu com a peça que lhe pregaram. O rei do iê-iê-iê, o rei do ritmo, o rei da jovem guarda, o rei da juventude, o rei dos reis, de repente mais um título usurpado de Odair José: o rei das empreguetes.

Triste fim de carreira. Nem mesmo a pirataria de DVD levou fé nesse especial de fim de ano. Sem mais coragem para ver o que vinha pela frente, desliguei a televisão. Não há nada mais constrangedor para um súdito do que ver seu rei com cara de bobo da corte.

“O que é que falta acontecer agora?”, pensei enquanto contava carneirinhos. Não demorei muito para saber.  “Escola de samba homenageará um cavalo”, foi a chamada do noticiário do dia seguinte. Deve ser o cavalo de Tróia, pensei. Engano. É mesmo um presente de grego que a Beija-Flor dará aos seus passistas e simpatizantes. Em vez de samba no pé, trotes e coices. O tema é “Amigo Fiel”, que não é o cão, Jesus Cristo e nem Erasmo Carlos. É o cavalo Manga-larga marchador. Só não sei dizer se o ritmo será em “samba de enredo” ou em “galope de enredo”.

Depois que o Estado tomou conta das favelas cariocas, as escolas de samba andam numa pindaíba só. Meio mundo de bicheiros e traficantes na cadeia, a ordem é “salve-se quem puder!” Das doze escolas do grupo especial, nove receberam ajuda de governos estaduais, paises ou de empresas. Vai se cantar a Alemanha, Coreia do Sul, homem do campo, Revistas de fofocas de famosos, Cuiabá, novelas da Globo e até mesmo o Rock in Rio virou tema de enredo.

Samba de uma nota só é Moraes Moreira cantando “Bestetu” com os Novos Baianos. Besta somos nós. Esse “desconjuro” das escolas de samba cariocas está fazendo Sérgio Porto revolver-se em seu túmulo tentando reescrever seu samba do crioulo doido.

Fui consolado por um amigo que me ligou de Salvador para dizer que estava me enviando um cd com as músicas que iriam “bombar” no carnaval baiano. Coisa boa, nada a ver com a mesmice dos parangos e parangolés. Abri um sorriso de orelha a orelha. Finalmente uma notícia venturosa. Deixei de frequentar o carnaval da minha terra por causa da baixaria musical dos últimos anos. Credita-se a mediocridade musical à axé music, mas um dia parei para observar e vi que não tem nada a ver. A axé music, invenção de Luiz Caldas, foi concebida com ritmo, harmonia e letra dentro dos padrões carnavalescos. Eram melodias trabalhadas, afinadas, dançantes, mas depois que os próprios artistas passaram a controlar as gravadoras e a mídia, se esqueceram do que era a música. Qualquer coisa que fizessem, bastava tocar no rádio, aparecer na tevê, que era sucesso garantido. Foi assim que a bunda da Karla Perez sobreviveu a tantos carnavais.

Finalmente chegamos aos finalmentes. Antes do ano novo recebi o cd de música carnavalesca baiana, tão cantado em prosa e verso. Reuni a família na sala para ouvir o novo ritmo que estava “bobando”, segundo um amigo. Devo confessar que coloquei o cd no aparelho sem a curiosidade de olhar a track-list, e, por causa desse pequeno descuido, os vizinhos chamaram a polícia mal acabara de ouvir a primeira música.

Cito aqui o nome de algumas músicas que estão bombando na minha terra: “Dança do enfia o dedo”, “largar de barriga”, “tchu, tchu, baranga”, “aquecimento do bumbum”, “po... po... popozão”, “as magrinhas que fazem gostoso” e “pegando a tua irmã”.

Fiz planos em passar o carnaval em Salvador, mas, diante desses clássicos musicais, tive que desarrumar minha mala das ilusões, agravado também pela beleza que será o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Pensei alto: “Vou ter que passar o carnaval fora do Brasil. Vou pra Sergipe!”

– Sergipe é no Brasil, mané! – disse minha cara metade, que tem o dom de ler meus pensamentos.

– Então vou pra Aracajú!

MORAL DA HISTÓRIA: Nunca pensei que um dia sentiria saudades de Luiz Caldas no carnaval da Bahia.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Luís Pimentel - 86 anos do maestro maior



  
     O carnaval se aproxima e enquanto os tamborins, os surdos e as cuícas são retirados dos armários e invadem as quadras das escolas, me lembro de uma imagem que põe o samba em dimensões amplas e diversas, do maestro Tom Jobim cantarolando que “mandou subir o piano pra Mangueira”. Na parceria com Chico Buarque, ressalvando que o seu samba “não é de levantar poeira”, mas que tem todo o direito de “entrar no barracão”, Tom expõe toda a delicadeza e sinceridade da relação – músico Zona Sul, cidadão do mundo – com as manifestações mais populares de sua cidade:

     – Barracão nunca foi fechado nem é restrito. E a cidade devia espiar o morro mais de perto.

     A Estação Primeira entendeu a mensagem e também passou a espiar Tom. E também Chico. Em 1992 cantou o nosso grande maestro na Avenida, com o enredo “Se todos fossem iguais a você”. Seis anos depois repetiu a dose com o autor dos versos do piano que sobe o morro e de tantos outros que fazem a música brasileira reinar soberana, e saiu do desfile campeã, depois de apresentar o enredo “Chico Buarque da Mangueira”.

     O carioquíssimo Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, uma das mais perfeitas traduções de Ipanema, o amigo do peito da fauna e da flora do Jardim Botânico, nasceu num mês de janeiro, dia 25, em 1927. Foi um dos gigantes de nossa música, compositor-chamego de Frank Sinatra, o melodista a quem grandes nomes da música universal se renderam, a até mesmo um letrista talentoso e inspirado – nos mostrou isto em mosaicos de palavras como aqueles montados em “Águas de março”.

     Tom subiu com o piano para a eternidade em 1994, deixando por aqui inúmeras canções de sucesso e uma grife de respeitabilidade poucas vezes alcançada por um artista. Tornou-se conhecido internacionalmente quando sua “Garota de Ipanema” (parceria com Vinicius de Moraes) ganhou o mundo. Mas foi desde sempre merecedor do enorme carinho de todos nós, um patrimônio das praias, da boemia, do asfalto e também dos morros.
    

domingo, 16 de dezembro de 2012

Cineas Santos - Repensar a cidade



                                            
          Em boa hora, por iniciativa do ICC, CAU/PI e IAB/PI, realizou-se em Teresina, na semana passada, a 2ª edição do Teresina Sustentável, tendo como objetivo “discutir os caminhos do urbanismo e da arquitetura na cidade”. O momento não poderia ser mais oportuno: no próximo mês, a capital do Piauí terá nova administração e a necessidade premente de pensar e realizar ações capazes de, pelo menos, minimizar os problemas que nos afligem.

          A exemplo de outras capitais brasileiras, Teresina não está crescendo; está inchando. Sem planejamento sustentável, a cidade incorre nos mesmos erros que inviabilizam as metrópoles do país. O problema mais visível é do trânsito: caótico, ruidoso, violento. Por falta de soluções  inteligentes, os gestores insistem na ideia superada de alargar ruas, rasgar novas avenidas, construir viadutos, o que  implica diminuir  os espaços destinados aos pedestres. A cada “requalificação” de uma praça ou avenida, subtrai-se uma nesga das áreas destinadas aos sem-carro. Foi assim na Praça Saraiva (que corre o risco de ser dividida), na Praça da Bandeira; na Praça do Marquês, para citar apenas alguns exemplos. A cidade está sendo deformada para “facilitar” o  fluxo dos  automóveis que disputam cada polegada de chão com a fúria de mil demônios.

           O Código de Postura parece ter sido elaborado para ser desrespeitado. Assim, casarões de relevante valor histórico ou arquitetônico desaparecem na calada da noite, dando lugar a edifícios modernosos ou estacionamentos. As calçadas, estreitas, irregulares, esburacadas, põem em risco a saúde dos transeuntes. Acessibilidade não passa de um vocábulo, recém-descoberto, levianamente empregado em discursos oficiais.

          Os problemas não param por aí: o tal “cinturão verde” de Teresina converteu-se num rosário de favelas, rebatizadas com o nome de “vilas”, como se o substantivo tivesse o condão de melhorar a vida dos que sofrem ali. A cobertura vegetal da cidade desaparece rapidamente engolida pela especulação imobiliária. O que resta do verde essencial, notadamente nos espaços públicos, apresenta problemas muito sérios: as árvores de Teresina estão doentes, infestadas de erva-de-passarinho, corroídas por cupins ou mutiladas por podas irresponsáveis. Quanto aos dois rios que banham a cidade, há bastante tempo, foram transformados em escoadouro de efluentes indesejáveis. Como se pode ver, em matéria de problemas Teresina está “bem servida”.

          Curiosamente, na conferência de abertura do Teresina Sustentável, no dia 6, não vi nenhum representante da Prefeitura de Teresina ou do Governo do Estado. A bem da verdade, não avistei ninguém com poder político para alterar coisa alguma. Um tantinho desencantado, pensei comigo: ou esses iluminados já sabem tudo ou não estão interessados em aprender nada.