terça-feira, 12 de março de 2013

Marcelo Torres - De osso e papel

 O senhor Joaquim Maria Machado de Assis nos apresenta Miss Dollar e Quincas Borba. Este é belo, malhado, negro - amado órfão de um filósofo homônimo. Ela é uma violeta graciosa, rosa mimosa, enfim, uma miss - olhos castanhos e aveludados. Já Graciliano Ramos, desencantado com a humanidade, nos traz um ser diferente dos meninos de vidas secas, que nem nome têm - são apenas ‘o mais novo’ e ‘o mais velho’, ambos desgraçados, humilhados e destroçados, também sem sonho, entregues que estão ao destino

No início de seus Contos Fluminenses, Machado faz suspense. Diz que se o leitor é dado ao gênio melancólico, pode imaginar que a sua miss é uma inglesa sem carne e sem sangue, de olhos azuis, tranças louras, que sabe poetas de cor e salteado. Por outro lado, se o leitor não é chegado a tais devaneios, a personagem em questão pode ser uma americana robusta, sangue na face, olhos vivos e ardentes, mulher fecunda e ignorante, amiga de copo e mesa, mas que não compreende a beleza da literatura e prefere comer muito a se ver com leituras.

Na verdade, devaneios à parte, tanto os dois personagens de Machado como o de Graciliano Ramos (Baleia) são nada mais nada menos que cães. Cães amáveis por sinal, transformados em gente, talvez até com mais amor, sentimentos e paixão que o próprio homem – o homem que é reduzido a objeto de si mesmo (coisificação, reificação). “Cheio de profundo desgosto pelos homens, achou que era de boa guerra adorar os cães [...] No espírito dele, o cão pesava tanto como o amor, segundo uma expressão célebre: tirai do mundo o cão, e o mundo será um ermo...”

Se na publicidade os cães aparecem num significativo número de peças e filmes, na literatura há também presença marcante de cachorros nas tramas, enredos e títulos. O baiano Antônio Torres, por exemplo, tem romances intitulados Um cão uivando para a lua e O cachorro e o lobo – embora o cachorro aí tenha uma conotação metafórica para definir o narrador-personagem, em sentido alegórico, figurado. O cachorro é o filho sumido, que depois de 20 anos, volta para rever o pai (o lobo).

A morte de uma cadela foi o mote d’O auto da compadecida, do mestre paraibano Ariano Suassuna. Na definição de auto, no Aurélio, o próprio espelho da peça: “3. composição dramática originária da Idade Média, com personagens geralmente alegóricas, e que se caracteriza pela simplicidade da construção e caracterizações exacerbadas, podendo, também, comportar elementos cômicos e jocosos”.

Em O melhor amigo, de Fernando Sabino, uma criança acha um cão na rua e o toma pra si, mas logo se depara com a rejeição da mãe, que não quer saber de animal em casa. “Vamos, leve esse cachorro embora”, ela ordenou. Depois de choramingar, o menino saiu para dar um destino ao cão.  Meia hora depois, ele volta, radiante. “Pronto, mãe”, disse, mostrando uma nota de vinte e uma de dez. Vendeu o ‘melhor amigo’ por trinta dinheiros. E ainda pensou: “Eu devia ter pedido cinqüenta, tenho certeza de que ele dava”. 

Tão ou mais irônico que Sabino, Stanislaw Ponte Preta descreve o seu cão na divertida crônica Prova falsa: “Era um chato, desses cachorrinhos de raça, cheios de nhém-nhém-nhém, que comem comidinha especial, precisam de muitos cuidados, enfim, um chato de galocha. Vivia de rabo abanando para todo mundo, mas, quando eu entrava na casa, vinha logo com aquele latido fininho e antipático de cachorro de francesa. Num rápido balanço: o cão comeu oito meias suas, roeu a manga de um paletó, rasgara diversos livros, não podia ver um pé de sapato que arrastava...”  

Em dois autores paranaenses, Dalton Trevisan e Domingos Pellegrini, os cães figuram envoltos em ternura e crueldade. Trevisan, que tem contos dramáticos e sombrios, surpreende com a cadela Fifi – que é personagem de duas histórias: ora ela recebe ternura, ora é vítima de crueldade. Em Pellegrini, o cão é atropelado na estrada, depois é sacrificado com dois tiros de revólver: “O homem arrasta o filhote pela pata até um pé de erva-cidreira. Afasta e, de costas, tapa a visão do menino – aí dá dois tiros”. Título do conto: Herói.

Se em Sabino era a mãe do menino que rejeitava a idéia de o filho ter um cão, em Corisco, (que não era o amigo de Lampião, mas uma cria do mineiro Luiz Vilela), era o pai que “não gostava de cachorro porque cachorro é bicho velhaco, só serve para dar amolação e pra comer a comida da gente, e enquanto ele fosse dono da fazenda, ali nunca haveria de entrar cachorro, e se entrasse um, ele pegava a espingarda e sapecava fogo sem um tiquinho de dó”.    

O tempo passou, o cachorro já havia morrido, a mãe do menino na vida de cozinhar, o pai na plantação e ‘era como se Corisco nunca tivesse existido’. Numa noite em que se descobriu que mais uma galinha tinha sido roubada na fazenda, a mãe falou que se o cão tivesse vivo... Então, o pai disse zangado que não era para se falar mais em cão naquela casa, ‘pois cachorro é bicho velhaco...` e foi lá para a janela olhar o céu.  O desfecho do conto: “Mamãe me cutucou a perna e eu olhei pra ele e vi ele enxugando uma lágrima”.

Com tantos cães em casa e na rua, uivando para o céu e para a lua, a verdade é uma, nua e crua: o cachorro é o melhor amigo de muitos contistas, cronistas e romancistas. Tirai do mundo o cão, e o mundo será um ermo. É mesmo: eles são heróis poéticos, agentes da vida e da morte sofrida. Ladram para o azar e farejam a sorte, são ‘bons moços’, uivam para o céu, ‘gente’ de carne e osso. De osso e papel.


Texto publicado no Correio Braziliense, em 21.03.2003, e no Jornal Rascunho, em junho de 2003.



domingo, 10 de março de 2013

Até mais ver, Sumpalo!




Amiga Rosicreide, você é minha e o boi não lambe. Aliás, a seca aqui está tão de morte que boi entrou para a lista de animais em extinção. Até o bumba-meu-boi andou morrendo de sede, só não me pergunte como, porque isso é coisa de política safada. Somente o senador continua com seus bois gordos e vistosos, por obra e graça do Divino Espírito Congresso Nacional.

Cá nas praieiras do Nordeste sinto saudades de nossos rastros desfeitos pelas brumas marinhas nas caminhadas matinais. Sei que você anda muito atribulada com seus afazeres profissionais, e que estava de viagem marcada ao Vaticano, em visita de cortesia ao papa Bento XVI. Saiu no jornal daqui. E deu na televisão. Agora entendo o porquê do Papa ter renunciado bruscamente e ter se escondido não-sei-onde. Ele sabia que não iria resistir à tentação. Mas, com tantos escândalos abalando as sacristias, um a mais ou um a menos não faria diferença. Pelo menos lavava a honra da Igreja com esse negócio de pedofilia e viadagem. Perdeu a oportunidade de entrar para a história como um papa macho, disse um vizinho meu, ateu de marca maior, quando lhe relatei o provável motivo da renúncia de Sua Santidade.

Estive assuntando uma visita a você, e cheguei até a selar a jeguinha, mas a mulher implicou: “Vai de avião, mané!” e eu disse: “Num vou!” Quem nasceu para voar foi passarinho, aí ela me convenceu que a comida de avião era muito gostosa, tinha uma bolacha cream-cracker maravilhosa, mas isso aí era se eu fosse pela Tam. “Pela Gol”, disse-me, “só se for de primeira classe. Passagem promocional só tem direito a copo de água de torneira”, concluiu. E quando eu estava de malas prontas e fazia planos de voo, um repórter disse na televisão que em São Paulo a polícia estava matando mais gente do que a volante dos tempos de Lampião, e que os bandidos estavam matando mais gente do que os cangaceiros do bando de Lampião, e outro repórter gritou admirado: “Duzentos por dia!” e apareceu o tal do secretário de segurança despreocupado e falante: “E isso é motivo de espanto?! Estatisticamente está dentro da normalidade.” E aí fiquei por cá matutando debaixo da sombra do coqueiro: se aqui morre um ou outro e as manchetes dizem que é o estado mais violento do mundo, por que duzentos está dentro da normalidade?

Como baiano burro nasce morto, sentei-me à beira da praia e um tubarão simpático e sorridente, vendo o meu dilema do ir e não-ir, me chamou para dois dedos de prosa dentro do mar. Olhei para ele e gritei: “Vou não!” e corri para casa e fui pesquisar na internet. Estatisticamente falando, não há registro de nenhum baiano engolido por tubarão e eu não seria o primeiro.  Depois eu me lembrei de que na praia aqui em frente não tem tubarão, então procurei um macumbeiro e ele desvendou o mistério sem cobrar um centavo pela consulta: “Esse tubarão é presságio para você não viajar”. E me deu uns passes mediúnicos à base de óleo de tubarão e pediu para que eu deixasse as passagens aéreas com ele, pois necessitavam de uns trabalhos de descarrego.

Assim, enquanto perdurar essa violência estatisticamente dentro da normalidade, continuo aqui com a minha jeguinha amarrada no mourão da tranquilidade praiana, soltando baforadas do meu cachimbo virtual esperando que você faça o inverso da arribação nordestina. Aqui as pessoas pacatas só morrem de morte natural ou por overdose de cocaína. E, como disse acima, você é minha e o boi não lambe. Nem mesmo o boi do senador.

sábado, 9 de março de 2013

Cineas Santos - A sucursal do Inferno




         Li não sei onde (a velhice é irreversível) uma notícia que me deixou estarrecido: três rapazes americanos brincavam com seus games de última geração na casa de um deles. Lá pelas tantas, depois de centenas de “mortes”, resolveram pedir uma pizza tamanho família e um refrigerante. Até aí, nada de extraordinário. Quando a campainha tocou, o dono da casa abriu a porta, recebeu a pizza e, em vez de pagar ao entregador, sacou uma pistola automática, de propriedade do pai, e fuzilou o infeliz no local. Fechou a porta e, sossegadamente, foi comer com os amigos. Na delegacia, sem demonstrar remorso, declarou friamente: “Só queríamos saber se gente de verdade morre como nos jogos e nos filmes”. A história, de tão absurda, não comportaria em nenhum texto de ficção, nem mesmo no chamado realismo mágico ou fantástico.

         Muito tempo depois, eu estava numa lan house em São Raimundo Nonato, num horário pouco movimentado. De repente, quatro rapazes adentraram a sala correndo. Como vivemos acovardados pelo medo imperante, preparei-me para o pior. Os rapazes entraram nas baias disponíveis e começaram um jogo no qual, se bem entendi, venceria quem eliminasse mais “inimigos”. A cada indesejável abatido, o atirador berrava como se tivesse marcado um gol numa decisão de campeonato mundial. Incomodado, resolvi sair do local. Antes, porém, perguntei ao cidadão que cuidava do espaço: isso é comum? O rapaz, sem levantar a voz, respondeu: “Todos os dias, quase sempre no mesmo horário”.

         Lembrei-me dessas duas histórias ao ler a entrevista de Bruce Willis na revista ISTOÉ (13/02/13). Bruce,todo mundo sabe, é aquele ator americano, grandão, truculento, que se especializou em filmes de ação, ou melhor, de destruição. A série “Duro de Matar” chega à 5ª edição com a mesma ferocidade das anteriores e mais alguma coisa. Em matéria de explosões e destruição de carros, o ator afirma: ”Acho que batemos algum recorde nesse setor”. Na entrevista insossa – a finalidade é só promover o lançamento do filme – fica-se sabendo do Bruce é um pai cuidadoso com as cinco filhas que tem, uma delas com pouco mais de um ano. Mas o que realmente interessa é o seguinte: o ator afirma, com todas as letras, não acreditar que filmes violentos possam influenciar alguém a tornar-se violento ou a cometer crimes. Quanto ao controle da venda de armas proposto por Obama, limita-se a dizer: “Os EUA deveriam controlar seus loucos”. Não explica como.

         Após ler a entrevista, conversei com um brasileiro, cidadão afável, que mora nos EUA, onde tem uma agência de viagem. Lá pelas tantas fiz a pergunta patética: meu irmão, se, de repente, o governo americano resolvesse recambiar todos os soldados americanos espalhados pelo mundo, o que aconteceria? O cidadão coçou a cabeça, esboçou um leve sorriso e afirmou: “Aquilo se transformaria na terra de Malboro”. Pedi-lhe permissão para discordar. O retorno de milhares de indivíduos que, desde a juventude, foram treinados para matar, transformaria o país do Tio Sam  na mais movimentada das sucursais do inferno. Aí, naturalmente, já não haveria lugar para a série “Duro de Matar”. Ação e violência seriam distribuídas generosamente a todos, sem a necessidade de comprar ingresso.
        
        

sexta-feira, 8 de março de 2013

domingo, 3 de março de 2013

Olha a banana... Olha o bananeiro!




Quando eu era adolescente e sobrevivia por conta e risco do meu suor juvenil para poder ter uns trocados para levar a namorada ao cinema, resolvi ser feirante na feira livre de Alagoinhas. Comprei um megafone fiado, para pagar em não-sei-quantas prestações semanais, e todos os dias apregoava meus produtos:

- Ovo e uva boa de Jundiaí! Aqui, mulher bonita não paga!

A propaganda é alma do negócio, dizia meu tio Edgard, dono de um armazém de secos e molhados e meu principal (e único) fornecedor de mercadorias. Um dia qualquer, como em qualquer dia, pisei em rastro de corno no caminho da feira. Mal comecei a falar no megafone, recebi um safanão no pé do ouvido que fiquei zonzo. Uma senhora esbravejou feito galo de briga:

- Seu moleque safado, eu lhe dei essa ousadia de ficar tirando graça comigo?!
- Eu?!
- Sim... Você!
- Mas o que foi que eu fiz?!
- Me chamando de viúva boa!
- Eu?! Só estou anunciando meus produtos: ovo e uva.
- Você não conhece cacófato não, seu moleque! Diga o contrário: uva e ovo!
- Desculpe moça, mas não conheci seu marido não... como é mesmo o nome dele? Ah! Cacófato! A senhora deve estar me confundindo com alguém.
- Deixa pra lá! Já vi que você é burro mesmo! – disse, e escafedeu-se no meio da multidão de feirantes. E tudo continuou como dantes no quartel de Abrantes:

- Ovo e uva boa de Jundiaí! Mulher bonita não paga!

- Ei! Se é assim, eu vou levar a uva – falou uma jovem, caminhando na minha direção.
- Assim como, moça?
- “Mulher bonita não paga”...

Realmente ela era a “prinspa” que todo marmanjo queria, a nora que a minha mãe precisava, mas eu não podia ficar no prejuízo. Eu e a minha língua! Pensei rápido:

- Ah! Mas quem disse que a senhorita é bonita?
- Meus pais, meus amigos, meus primos, todo mundo que me conhece...
- E você se convenceu disso?
- Foi.
- E se eles estiverem mentindo para lhe agradar?
- Estão não.
- Como é que você sabe?
- Sabendo, ora!
- Então tá certo. Mas, pelo regulamento da barraca, você tem que provar que realmente é bonita. Você já ganhou algum concurso de miss?
- Não.
- Já saiu pelada na Playboy? Ele & Ela? Penthouse?
- Não.
- Então leve esse cacho de uva como prêmio de consolação, porque a simples palavra de pais e amigos não é o suficiente. Tem que ter documento oficial provando a beleza.

Ela fez beicinho de desconsolada, chupou a uva, gostou, comprou uma caixa, e no outro sábado estava lá para jogar conversa fora. E de sábado em sábado essa história só não terminou em casamento porque chegou um gaúcho de três facas vendendo uva mais gostosa do que a minha.


A Sétima Arte das Minhas Recordações




Em um cinema no interior de Pernambuco era assim: havia um cidadão que só pagava ingresso se o artista não morresse. Na Sexta-Feira da Paixão o prejuízo era inevitável.

Nesse mesmo cinema, o filme da Paixão de Cristo era anterior ao próprio Cristo. De tanto cortar e emendar, emendar e cortar a película, não era mais possível saber a sequência. Na última vez que assisti, o filme começou com Cristo pregado na cruz e terminou com o Anjo do Senhor aparecendo a Maria.

Pensei que o povo ia botar o cinema abaixo, mas todos saíram aplaudindo e chorando de emoção, talvez ungidos pelo espírito da Páscoa.