sábado, 27 de fevereiro de 2010

Sobre Pessoas - 9

A bela Susana do vice-rei

Crônica do livro "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres


De Luís Vasconcelos de Sousa


Devo-a a outra bela, Vera Barroso, a apresentadora dos Cadernos de cinema, da TVE, com quem partilho o fascínio pelas estórias da história do Rio. Esta aqui, contada por ela nos bastidores do seu programa, encantou o maestro João Guilherme Ripper, a ponto de ele prometer transformá-la numa ópera. Trata-se de uma lenda romântica, que pode ser conferida à página 97 do livro Rio de Janeiro em seus quatrocentos anos, publicado pela Record em 1965, no capítulo Século XVIII, escrito por Cláudio Bardy.

Começa com a chegada aqui – vindo de Lisboa -, do vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza, no ano de 1779, para dar início ao governo mais celebrado pelos historiadores, antes de D. João VI elevar a capital da colônia à do reino unido do Brasil, Portugal e Algarves, tornando-a o centro do poder imperial lusitano. Logo de cara, ele se deslumbrou com o quadro maravilhoso da natureza, a lhe oferecer um painel de sonho.

Mas se horrorizou com “a mancha brutal na paisagem radiosa”, no dizer de outro Luís, o Edmundo. As casas eram feias. As ruas, sujas. As águas, fétidas. O conjunto exasperava. Para piorar, Luís de Vasconcelos constatou que os colonos portugueses não tinham vindo para fazer um país, mas para se enriquecerem rapidamente, nem que para isso tivessem de arrasar a terra.

A situação deplorável do Rio não o levou a tapar o nariz e dar-lhe as costas. Pôs-se a andar, já com planos de embelezamento do espaço urbano, abertura de avenidas e saneamento de suas condições insalubres. Jovem, galante, dinâmico e humanitário, condoeu-se com a sorte dos escravos, que eram castigados pelos seus senhores, com exagerado rigor. Ele proibiu a aplicação da justiça a domicílio, passando-a à alçada do Estado.

Suas andanças o levaram à pestilenta lagoa do Boqueirão da Ajuda, uma verdadeira chaga encravada na cidade, tendo nas cercanias apenas casebres miseráveis. Para espanto geral, o vice-rei era freqüentemente visto caminhando a pé pelas margens infectas da lagoa, acompanhado de Valentim da Fonseca e Silva, o Mestre Valentim.

No imaginário popular, a assiduidade de Luís de Vasconcelos e Souza àquelas bandas tinha razões que só o seu coração podia explicar. Ele estava perdido de amor por uma moça bonita chamada Susana, que vivia na mais pobre choupana à beira do Boqueirão, com um coqueiro solitário à porta.

Escondendo-se por trás de uma moita, o vice-rei a contemplava à distância, adorando-a platonicamente. Esse amor secreto o teria levado à decisão de aterrar a lagoa.

O aterro foi confiado ao Mestre Valentim, que arborizou toda a área. Também fez um jardim, no qual colocou pavilhões fechados, com murais e muitas obras de arte, entre elas a Fonte dos Amores. Para esta, ele fundiu dois jacarés de bronze entrelaçados. Por ordens do apaixonado vice-rei, Valentim pôs nessa fonte um coqueiro de ferro. Era uma reprodução daquele que havia à porta da bela Susana, a musa inspiradora da construção do Passeio Público, que em tempos menos perigosos deve ter sido um lugar tranqüilo para os namorados.

Resta-nos imaginar se a história da beldade plebéia teve ou não um final de um conto de fadas.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O Camarote


Em terra de olho quem tem um cego é guia de cego. E o meu primo Marcelo, cujos olhos se acostumaram com a cegueira política da capital federal, pisou no arraial do Junco pensando que estava em terra de cego e entrou sumariamente pelo cano: era terra de olho.

Fez trato com o prefeito seis meses antes:

- Na festa da padroeira vou colocar um camarote pra modernizar a cidade. Um camarote apartidário, para celebrarmos a amizade de outrora.

Daí então passou a maturar a ideia. Chegou à conclusão que um espaço para cem pessoas seria o ideal. Pegou régua e compasso, pesquisou bufê, uniformizou garçom, contratou carpinteiro, pedreiro, eletricista, DJ e, depois de tudo milimetricamente calculado, colocou preço nos ingressos.

- É a festa das elites! – gritou a oposição ressabiada.

- É o apartheid! – protestou a situação ao ver o preço dos ingressos.

- É o meu fim político! – gritou mais alto o prefeito ao saber que a maioria dos ingressos havia sido comprada pela oposição.

- Meu show! Meu show! O show que contratei sendo visto pela oposição! E de camarote! – choramingou alguém no meio da multidão, pelo visto, personagem de grande importância porque o tal show era de uma dupla famosa cujo cachê subia às alturas. Nessa hora o arraial do Junco capitulou ao coronelismo e passou a ser uma terra de cego, pois havia gente com olho se dizendo dona do pedaço. Ou do show. E as contratações foram todas bancadas pelo erário. Era o dinheiro do povo, do contribuinte, servindo de cabedal político partidário.

- Abaixo o camarote! Morte à oposição! – gritaram os bajuladores cegos, solidários com o rei que só tinha um olho.

Longe dali, alheio ao facciosismo político, Marcelo preparava as malas para comparecer ao evento. Sua terra, seu torrão natal, seus sonhos de longas noites, suas orgias noturnas e os bacanais nos barrancos da vida, onde as jegas ficavam de quatro. Outrora, ele, Marcelo, era a voz da oposição, o cavaleiro da esperança, o espinho no pé dos políticos carreiristas. Bancou até um jornalzinho, mas foi fechado pela censura religiosa, sob a acusação de promover heresias.

No Junco é assim: manda quem pode e obedece quem tem juízo. Ainda se pratica a política arcaica, a perseguição inquisitória, e o lado que elege o prefeito torna-se dono da cidade. O Ministério Público é inoperante, a Justiça é literalmente cega e a coisa pública se confunde com o privado. É uma terra de donos. Donos do poder.

Tardiamente Marcelo compreendeu que não se pode confiar em político, principalmente quando a terra é de olho. Antes tivesse sido cego, para não enxergar seu camarote destruído no meio da Praça e seus detratores cinicamente urrando no meio dos escombros:

- Reconstrói! Reconstrói, Marcelo! Agora nós deixamos!



N.B. - Meu primo Marcelo não pode colocar seu camarote na festa da Padroeira do arraial do Junco pelo simples fato de ele não partidarizar os ingressos e algumas pessoas que votaram contra o atual prefeito democraticamente participariam da festa que, a princípio, deveria ser pluripartidária, vez que estava sendo bancada com o dinheiro público. Mas não faltou camarote. Havia um, bancado pela Prefeitura, onde rolou comes e bebes à vontade (festa paga com dinheiro público é assim mesmo) e alguns vexames, como mandar esconder os salgados para os convidados irem embora. E o frisson tresloucado de alguém querendo aparecer nas câmaras da TVE.



O dia em que Machado salvou uma borboleta

Por Cineas Santos

De Borboleta negra




Mesmo na penumbra, percebi que o banheiro estava limpo: o cheiro de eucalipto o confirmava. De repente, levanto a vista e descubro, na parede frontal, uma mancha escura, feia, disforme. Dir-se-ia um pequeno trapo sujo grudado no azulejo. Acesa a lâmpada, a mancha ganhou vida: era uma borboleta preta, uma autêntica escalapha odorata, se não me trai o São Google. Além de pouco decorativas, as borboletas pretas sofrem de uma enfermidade rara e mortal: desorientação congênita. Explico: são capazes de adentrar qualquer espaço por frinchas minúsculas, mas incapazes de sair, mesmo que portas e janelas estejam escancaradas. Uma vez dentro do espaço, tonteiam pelo ar como anjos bêbados, debatem-se às cegas e se esfacelam, liberando as minúsculas escamas que lhes recobrem as asas: sujam tudo. Não bastasse isso, são vulgarmente conhecidas como “bruxas”. Reza a crendice popular que anunciam maus presságios. Decididamente, não são bem-vindas, razão por que, mal se mostram, transformam-se em repasto de formigas.

Instintivamente, peguei uma toalha molhada e decidi eliminá-la com um golpe certeiro antes que ela sujasse o banheiro recém-lavado. A bem da verdade, cheguei a levantar o braço. Mas me contive: de repente, ocorreu-me a lembrança de um dos capítulos mais belos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, obra-prima de Machado de Assis. O título é justamente “A borboleta preta”. Não resisto à tentação de transcrever um fragmento: “...Dei de ombros, saí do quarto; mas retornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.

Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.

- Também por que diabos não era ela azul? disse comigo.

Brás Cubas, personagem que dá título ao romance, era um pequeno-burguês cínico, inútil e dado a filosofices. Depois de matar a borboleta preta, tenta justificar o gesto engendrando uma teoria que efetivamente não se sustenta. Quanto ao texto em si, apenas demonstra o já sabido: Machado, como um verdadeiro alquimista, transformava episódios banais em excelente literatura.

Enquanto “desbebia” sossegadamente, contemplei a borboleta e fiz uma reflexão pueril, digna do Brás Cubas. Os latinos tinham razão: “a arte serve à vida”, mesmo que seja a vidinha errante e efêmera de um inseto repulsivo. Assim, graças à excelência da prosa do Bruxo do Cosme Velho, uma borboleta preta ganhou o direito de continuar em sua vadiice pelos céus de Teresina.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Quaresma - Sara Rafael

Aproveitando meu penúltimo dia na esbórnia (o último só no suspiro final) para publicar a gentil colaboração da minha amiga d'além-mar.


Sara Rafael


Enterra-se o Carnaval. Hoje é quarta-feira de cinzas. Começa a Quaresma.


Quarta-feira de cinzas é qualquer dia para mim. São as cinzas da minha vida. Todos os dias, quando acordo, se apaga a minha alegria de viver. Não há “Carne vale”. Queimo o valor da carne, porque há carência de dinheiro para comer.


É vida sem fulgor. É cinza sem calor; é fogo apagado sem arder. È sempre Quaresma.


Os 40 dias bíblicos até a Páscoa representam 40 anos, a esperança média de vida na época.


Com a média de vida actual, reescrevendo hoje, seriam 80 dias. Vida que se arrasta em jejum, isolamento, negação de desejos, recusa de ambições, em penitencia no deserto.


A minha vida é um deserto de 60 dias. Solidão sem esperança de ressurreição. Todos os dias faço jejum. Só tenho uma refeição depois do pôr-do-sol. Não posso pagar duas refeições, jantando não vou dormir de barriga vazia.


Vou vivendo resistindo às tentações, da facilidade de morrer... meditando no vazio... na realidade sócio-económico-política deste país, marcada pela injustiça, pela exclusão, por índices sempre mais altos de miséria, por medidas sempre mais elevadas de prepotência.


Não tenho mais temas para escrever. Há carência de essência por aqui. Sem causas nem conquistas. Gente que vai sendo anestesiada com cérebro que vai sendo lavado. Povo que vai perdendo a visão no marasmo. A vida neste país vai sendo Quaresma sem Páscoa.


Vou escrevendo no gerúndio, prolongando o que é breve: Nem D. Sebastião volta, nem Jesus ressuscita.



quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

UM CARNAVAL COM ZORBA & CIA

Por Cineas Santos





Decididamente, não gosto de carnaval. Por amor a verdade, melhor seria dizer: tenho trauma de carnaval. Explico: na remota década de 60 do milênio passado, numa segunda-feira aziaga, perdi uma fulaninha por quem andava encegueirado para um garoto sarará, que dançava frevo como uma carrapeta, tinha uma bicicleta Monark novinha e um reluzente relógio Lanco. A zinha era louca por carnaval e me convenceu a fantasiar-me de otário (a única fantasia que me cai bem) para acompanhá-la no corso. Enquanto a bandinha limitou-se a tocar marchinhas manjadas, eu me segurei; quando atacou de frevo, perdi o passo, a sirigaita e, para sempre, o tesão por carnaval. Por conta daquele vexame, quase me tornei padre. Mas Deus, sabedoria em estado puro, escolhe os seus por outros critérios que não a “vocação” provocada por dor-de-cotovelo...

Este ano, para fugir do carnaval, programei-me para ir a Guaramiranga, cidadezinha simpática encravada na Serra do Baturité, no Ceará. O problema é que, nesse período do ano, a cidade promove um concorrido festival de jazz, que atrai aficionados turistas e farofeiros de todas as procedências. Fiz as contas e concluí que, entre malucos por sambas e tarados por jazz, a diferença é mínima. Fiquei no meu canto: “boa romaria faz...”

Feriado prolongado é sinônimo de perda de tempo: você planeja arrumar os papéis, limpar as gavetas, responder às cartas dos amigos (sou do tempo em que se escreviam cartas), iniciar aquele romance que revolucionará a literatura ocidental, e acaba mesmo é dormindo mais do que seria recomendável. Segundo Victor Hugo, que sofria de insônia, “O sono imerecido embrutece o espírito”.

Cansado de não fazer nada, passei numa locadora de vídeos para garimpar algum filme antigo, digno de ser revisto. Levei sorte: encontrei nada menos que Zorba – o grego, um filme de tirar o fôlego. Lançado em 64, só agora chega às locadoras em DVD. Anthony Quinn, como Zorba, simplesmente arrebenta. Não bastasse a competência do velho ator e a direção firme de Michael Cacoynnis, o filme conta com a beleza quase pecaminosa de Irene Papas, no papel de uma viúva cobiçada por todos os homens da ilha de Creta. O mais é loucura e magia. Zorba, uma tempestade de homem, ministra lições de vida a um aprendiz de escritor sem inspiração. Lá pelas tantas, afirma: “Só há um pecado que Deus não perdoa: uma mulher bonita: chamar um homem para a cama e ele não atendê-la”. Filmado em preto e branco, o filme não envelheceu: faz jus ao título de clássico do cinema ocidental.

Como não tenho preconceito contra o novo, vi também Conversando com mamãe, (2004) de Ulisses Dumont, com China Zorrilla e Eduardo Blanco. Se me pedissem para definir o filme, eu diria apenas: humano, demasiadamente humano. O filme encanta pela simplicidade e comove pela ternura. Tendo como pano de fundo a derrocada econômica da Argentina, Conversando com mamãe nos instiga a uma reflexão mais profunda sobre o “lugar” do velho no mundo contemporâneo. Imperdível.

Os dois filmes me deixaram encharcado de poesia. Por pouco, não me esqueci de que, aos 12 anos de idade, numa segunda-feira de carnaval, perdi uma sirigaita acesa ao som de “Vassourinhas”, dos pernambucanos Matias da Rocha e Joana Batista Ramos.

Que venham as cinzas...

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Os carnavais do carnaval de Salvador

"Ah, imagina só/que loucura essa mistura/alegria, alegria é o estado que chamamos Bahia/de todos os santos, encantos e axé/sagrado e profano, o baiano é carnaval... ”

Por Edna Lopes

De Carlos Pitta e suas backs


De No Campo Grande, no Trio de Carlos Pitta


De Há carnaval pra todo mundo


De Na pipoca de Moraes Moreira


De Entrevista ao A Tarde


De O retorno triunfal de Moraes Moreira



De Na pipoca de Moraes Moreira


Que me perdoem os “não foliões”, os que acham que carnaval é também o ópio do povo, os “donos da verdade de plantão” e os que se acham no direito que dizer que apenas o seu jeito de "curtir" feriados é o certo, mas, quem como eu vem ao carnaval de Salvador, sente os acordes da guitarra de Armandinho, ouve André Macedo ou Moraes Moreira cantar este hino e não se emociona, não siga a “antiga” ou a “nova” fubica porque já morreu.

Que me perdoem os que não gostam do bom samba que arrasta multidões, do povo cantando a plenos pulmões desde um partido alto a um samba enredo, um samba de roda ou um samba reggae. Impossível ficar impassível diante de alguém que puxa as palmas e canta “... Tu não faz como o passarinho/Que fez o ninho e avoou/Voou, voou, voou, voou/Mas eu fiquei sozinho/Sem teu carinho/Sem teu amor...*

Que me perdoem os que não aprenderam a cantar “... Tenha a fé no azul que tá no frevo/Que azul é a cor da alegria/Um cavalo mambembe sem relevo/No galope de Olinda pra Bahia...” e não arriscam uns passos de frevo. Quem desce as ladeiras do Pelô ao som do impagável “Vassourinhas” ou cantando “Bandeira Branca” e não se sente também em Olinda e no Recife antigo.

Que me perdoem os que nunca viram o tapete branco dos Filhos de Gandhi descendo a Castro Alves, os que nunca viram o Ilê aiê passar, pois não precisaram cantar “Ilê aiê, como você é bonito de se ver...” não viram o Araketu, o Olodum e tantos, tantos outros maravilhosos afoxés e cortejos que enchem meus olhos de cores, o coração e alma de ritmos afros, garantindo o reencontro com a minha ancestralidade.

Que me perdoem os que nunca provaram do prato quente da diversidade do bloco “Mudança do Garcia”... A alma das instituições e comunidades soteropolitanas em estado de pura alegria e bom humor, fazendo troça de situações do cotidiano do povo brasileiro, que verga , mas não quebra.

Que me perdoem os que fazem opção para ver e ouvir o carnaval de um único bloco, da varanda de um camarote ou ainda os que se contentam com o que a mídia seleciona e divulga. Definitivamente, não é o meu tipo de carnaval.

Que me perdoem os que acham que o carnaval de Salvador se faz apenas de axezeiros e pagodeiros, de letras tatibitates que depreciam a mulher, de lobos maus e mal fadadas chapeuzinhos, de beijo na boca em bocas qualquer, de musas fabricadas por canais de TV ou gravadoras, de camarotes para “Vips” que recebem cachês.

Ó, quer saber? Não me perdoe, “Não me pegue não me toque, por favor, não me provoque eu só quero ver o Ilê passar"... e outras - muito outras - cositas más. Os bons carnavais do carnaval de Salvador já deu seus primeiros (e tantos!) acordes! E eu, graças a Deus, ainda estou de férias.

Nos veremos por aí?

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A Noiva - Cláudia Magalhães





Saltou da cama, temendo chegar atrasada. Era o dia do seu casamento! Ah, esse dia jamais será esquecido! A felicidade, assim como a tristeza, tem cheiro de fruta doce, pensou inspirando o suave odor do ar. Correu até o velho baú e retirou, com cuidado, seu velho vestido de noiva. Vestiu-se com dificuldade. O seu corpo agitava-se num vai e vem frenético. Estava, sempre, num balanço, tentando entrar em harmonia com o tempo. E nesse balanço, atingia vôos cada vez mais distantes. A porta do quarto foi aberta por um rapaz de rosto duro e frio, como todos naquele lugar. Não se importaria com ele, estava feliz demais para isso. Poderia, finalmente, reencontrar seu grande amor!

Em busca do seu coração, seguiu em direção ao pátio. Por que quanto mais queremos chegar a um determinado lugar, mais ele se torna longe?, pensou ao atravessar o longo e frio corredor. As pessoas, que por lá circulavam, não notaram sua chegada. Nenhuma alma. Nem grande, nem pequena. De nada adiantava expirar, com seu deslumbrante vestido branco, tanta felicidade. As pessoas não gostam do sucesso alheio. A felicidade, sempre, incomoda, pensou sentindo toda sua alegria pesar o ar.

Correu em direção ao que chamava de “pequeno jardim”. Nesse lugar, todos os dias, na mesma hora, o esperava sentada num banco, branco, de ferro, que ficava sob uma enorme mangueira. A vida é uma enorme repetição, pensou observando uma manga rosa, tão doce quanto seu coração, pendurada na frondosa árvore. Era a fruta mais bela que já vira. Precisava pegá-la, ela seria seu buquê e quando terminasse a cerimônia, a ofertaria ao homem amado. Ela representaria seu amor! Teria presente mais doce? Não, definitivamente, não! Ah, como o amava! Esse amor tomou conta do seu corpo e tornou-se seu universo. Não entendia o real motivo de ter sido abandonada por ele naquele lugar frio e autoritário, dependendo da bondade, indiferente, daquelas pessoas que entendiam, somente, de bulas de remédio. É certo que estivera completamente no escuro por algum tempo e que andara com as mãos no lugar dos pés, mas, agora, estava “recuperada”. Lutaria pelo homem amado. Subiria na árvore, mesmo que se machucasse. Seus arranhões seriam como uma carta de amor. Era necessário mutilar-se com algumas farpas para provar a grandeza do seu sentimento. Toda carta de amor deveria ser escrita na carne, com sangue, dessa forma, todas as promessas de amor virariam cicatrizes, acompanhariam todos nossos passos e jamais seriam esquecidas com o tempo, pensou ao subir na árvore. Alcançou a manga e colocou-a, com cuidado, no banco. Limpou o vestido. Arrumou os cabelos, jogando-os para o alto e, dando-lhes um nó, improvisou um rabo de cavalo. Estaria impecável quando ele chegasse. Depois de alguns segundos de silêncio, retomaria o fôlego e lhe daria um longo e caloroso beijo. Diria que o amava com loucura e sairiam, de mãos dadas, daquele inferno. Escreveriam uma linda história de amor no tempo e mostrariam as pessoas que o amor necessita de perdão. Pensou em como seria bom tê-lo de volta. Preparar com carinho suas comidinhas preferidas, fazer amor e adormecer em seus braços com a certeza da existência de coisas que nunca se acabam e que nos voltam mais fortes quando a esperamos com paciência e determinação. Limpou, novamente, o vestido. Desmanchou o rabo de cavalo e o refez com agilidade. Nunca estava bom o suficiente. O amor, também, é assim. Nunca é bom o suficiente. Por essa razão fora abandonada. Essa sua mania imbecil de querer tudo no seu devido lugar, de arrumar, incansavelmente, a louça, a casa, era uma prova do seu amor. Ao ter a certeza disso, ele a abandonou. Ele passou a odiá-la pelo simples fato dela o amar. Pegou a manga e observou-a com atenção. Nunca vira uma manga tão bela! Cheirou-a e, novamente, colocou-a sobre o banco. Tinha absoluta certeza de que, em algum momento, ela a faria sofrer. Todas as coisas boas nos fazem sofrer. Elas moram na esquina do amor com o ódio, concluiu com tristeza. Limpou o vestido, refez o rabo de cavalo, pegou a manga, cheirou-a e pensou com uma estranha surpresa: Nunca vi uma manga tão bela! Por duas horas, repetiu esse ritual, incansavelmente. Quando ele chegar, direi que o amo com loucura até a exaustão. Repetirei inúmeras vezes. A vida é uma grande repetição e usarei isso a meu favor, repetindo, somente, as coisas boas, concluiu com satisfação refazendo o penteado.

Faltavam poucos minutos para o pôr-do-sol, quando escutou o som de passos firmes. Eram eles. Malditos! Sanguessugas do inferno!, pensou sentindo um medo quase insuportável. Nesse instante, o céu fechou as pernas arrastando nuvens pesadas e cinzentas, e escondeu o seu azul mais profundo. Tudo ficou plano, reto, uniforme. Não havia estrelas, nem firmamento. Sumiram as cores e do arco-íris, somente o nada. Estava tudo acabado. Fechou os olhos e deixou-se molhar pela água que derramava em seu peito. Sem o seu amor, tudo seria somente chuva. Uma chuva que traria seu passado em relâmpagos, queimaria suas lembranças, reduziria tudo a cinzas, fazendo seu futuro fugir pela boca feito fumaça. Cantou em silêncio, vendo-o morrer arrastado pelo tempo. Olhou a manga e constatou que, em breve, ela seria apenas uma fruta podre ou, então, seria devorada por algum estranho. Soltou um terrível grito de dor. Não! Não deixaria ninguém meter as mãos no que tinha de mais doce. Aquela fruta era seu amor. Se alguém tinha que provar sua doçura, esse alguém seria ela! Devorou a manga e sentiu sua felicidade escorrer pelos dedos. Os dois homens observaram com uma estúpida frieza, por alguns segundos, aquela mulher de rosto inquieto, dando as costas à razão em nome do amor. Não entendiam que não existe nenhuma arma contra ele, somente uma defesa: a loucura. Essa fuga dos perigos da vida. É nesse repouso dentro de nós, que ela nos desmonta e nos torna vítima e algoz.

Deixou-se agarrar por eles. Não se moveu, nem falou nada. Tudo poderia ser usado contra ela. Atravessaram o longo e frio corredor. Deitaram-na na cama, deram-lhe alguns comprimidos e saíram. Nenhum sorriso, nenhum carinho. Não chorou, já estava acostumada com a frieza dos homens sem coração. Enfrentaria a insignificância dos momentos em que teria que viver como se nunca tivesse experimentado um grande amor. Não tinha escolha. Tomaria todos os remédios, faria todas as refeições, como um animal domesticado. No início, quando chegou naquele maldito lugar, tentou se rebelar, mas, tal qual um amor contrariado, todas as suas tentativas de se fazer ouvir foram usadas contra ela. Esperaria a próxima oportunidade e fugiria dali. As pessoas enlouqueceram. Elas não sabem mais amar, constatou com a loucura dos que amam demais.
Ele não apareceu. Teria mais uma chance? Não sabia. Restava-lhe sonhar. Talvez, a forma mais humana, mais justa, de viver. Nos sonhos, encontraria o poder da loucura, do seu lirismo, indispensável para alcançar o amor. Somente os loucos amam. Em algum deles, o reencontraria num lugar chamado poesia. E, com uma flor na boca, ele lhe diria, somente, palavras de amor. Ela escutou o barulho de risadas debochadas, dos enfermeiros, vindas do corredor. O mundo ignorava sua tristeza. Adormeceu chorando baixinho, sentindo o gosto, agora, amargo, do que já lhe fora doce, extremamente doce.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Nocaute Técnico - Antonio Tibau

A publicação de hoje são dez mini contos do novo colaborador do blog Antonio Tibau, do Rio de Janeiro. Como estou em Salvador, sob o domínio de Momo, não há ilustração nem fotografia do autor.
Feliz carnaval aos leitores do blog

twitter.com/nocaute_tecnico

o

1. Quando a queda se mostrou inevitável, a angústia dominou Tavito. Quis economizar as milhas e agora nunca saberá como é voar de executiva.

2. Entrou no banheiro com doze anos, decidido a só sair de lá adulto. Entregou os pontos depois do quarto Hollywood vermelho.

3. Estava tão boa em fingir orgasmos que começou a ficar molhadinha só de pensar na sua próxima atuação.

4. Precisava inventar um problema para a sessão de amanhã. Tinha medo que lhe dessem alta.

5. Acordou na Bahia. Decidiu parar de beber.

6. O silicone não salvou seu casamento. Mas, se serve de consolo, atrapalhou bastante o da vizinha.

7. Surtou baixinho, para não incomodar a mãe.

8. Passou a faca na galinha, mas acabou desistindo da oferenda. Jogou o bicho na panela que assim teria mais chance de arrumar marido.

9. Poderia ter a coelhinha do mês, de qualquer mês, se quisesse. Mas ainda não conhecera o amor de verdade. Diabos! Tragam a de agosto.

10. O clube de suíngue não resolveu nada. Foram expulsos para não contaminar os outros casamentos presentes.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

AS REINAÇÕES DE PEDRO MACAQUINHO

Por Cineas Santos



De Pedro Macaquinho


Constatei, com uma pontinha de alívio, que a figura mais “notável” de Campo Formoso, que nem existe mais, não sou eu. Trata-se de um certo Pedro José de Sousa que, por suas reinações, ganhou a adequada alcunha de Pedro Macaquinho. Menino ainda, Pedro se deu conta de que não tinha a menor vocação para puxar cobra para os pés, preso ao rabo de uma enxada. Num descuido da família, azulou no mundo e foi cumprir sua sina. Analfabeto, sem maior qualificação, descobriu que o próprio corpo poderia ser um excelente instrumento. Simples: punha a mão esquerda na cova da axila direita e, movimentando o braço, marcava o ritmo do xote “O Cheiro de Carolina”, sucesso de Luiz Gonzaga. Foi nessa época que o agraciaram com o rótulo Macaquinho.

Excelente ritmista, tornou-se zabumbeiro do Mané Vicente, que ganhava a vida judiando de uma pé-de-bode ranheta. Sempre que o sanfoneiro parava para entornar uma talagada de cana, Macaquinho abarcava a sanfoninha e mandava ver. Acabou aprendendo o mínimo; o mais correu por conta de sua intuição. Tornou-se presença obrigatória em feiras, quermesses, leilões, desobrigas, circos e funções. Sentou praça no Canto do Buriti e se fez showman: canta, dança, improvisa e conta piadas. O público o adora. Mas sua carreira artística tem sido marcada por um problema crônico: só querem pagar ao Macaquinho com cachaça. Dinheiro, que é bom, nada. Como qualquer macaco que se preze, entre uma reinação e outra, o Macaquinho fazia um filho. Família crescendo, dinheiro curto, as coisas se complicaram. Pequeno ainda, os macaquinhos do Macaquinho passaram a ajudá-lo: tornaram-se todos sanfoneiros e ritmistas. Nascia o conjunto “Pedro e seus Macaquinhos”. Um dos garotos, o Walmir, é um sanfoneiro de grandes recursos técnicos.

A parceria com os meninos rendeu alguns frutos, mas a grana continua curta, e o tempo começa a maltratar o nosso bravo macaco. De repente, aquele novelo de encrencas, que atende pelo nome de próstata, começou a incomodá-lo. Pedro teve de diminuir o ritmo de trabalho, fazer tratamento, gastar o que não tinha. A magra aposentadoria que recebe não lhe garante a sobrevivência com um mínimo de dignidade. Foi aí que pintou a ideia de lançar um CD artesanal, mas realizado com cuidado e capricho. O CD traz o instigante título de The best of Pedro Macaquinho, com um punhado de canções, entre elas as clássicas “Delita” e “De madrugada no calor do frio”, uma versão light, já que a original , down, é imprópria para menores de 78 anos de idade. Sucesso absoluto: o CD vende mais que farinha nas feiras do Ceará. Sucesso e encrenca: segundo fui informado pelo sanfoneiro, pelo menos duas lojas de discos de Canto do Buriti clonaram o CD e passaram a vendê-lo sem autorização do Macaquinho, ou seja, furtam-lhe a única coisa que tem para sobreviver. Sem ter a quem recorrer, Pedro veio me pedir ajuda.

Denunciei o fato no programa Feito em Casa e o faço agora nas páginas de O Dia e no blog Onde Canta a Acauã. Se a pirataria continuar, irei ao Canto do Buriti, denunciar os criminosos ao promotor da cidade. Não tenho poderes para ir além. De qualquer forma, tenho o dever de tentar ajudar aquele humilde cidadão que, com sua arte feita de pura intuição, destronou-me do incômodo posto de única “celebridade” de Campo Formoso.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Sobre Pessoas - 8

Quando o Rio teve um governador chamado Vaca

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres

De René Duguay-Trouin


Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1711. A cidade amanheceu encoberta. Ajudada pelo nevoeiro e fortes ventos, uma esquadra de 18 navios, 700 canhões e cerca de 6 mil homens, comandada pelo general René Duguay-Trouin, corsário do rei Luís XIV, iria forçar a barra e escapar do poder de fogo das fortalezas de Santa Cruz e de São João. Em poucas horas, fundeava cara a cara com o seu alvo, mandando-lhe bala, para desespero da população. Não suportando a superioridade bélica dos franceses, e a destreza de suas manobras, o Rio se rendeu. O governador Francisco de Castro Morais fugiu. A sua fuga foi seguida pelas milícias e a população.

Duguay-Trouin tomou e assaltou uma cidade vazia, então a mais rica do império colonial português, graças à sua condição de entreposto do ouro das Minas Gerias, que aqui era embarcado para Lisboa. Ele a fez de refém durante os 50 dias em que aguardou o pagamento do resgate, para devolvê-la a seus habitantes, ameaçando reduzi-la a cinzas, caso não fosse atendido. Houve de tudo nesse dramático episódio: tergiversações, pusilanimidade, heroísmo e covardia. Não faltou quem tirasse proveito da situação, em negociações particulares com os invasores. Do seu esconderijo, o governador mimava-os com presentes. E deles recebia, em agradecimento, preciosas garrafas de vinho. Um padre os regalava com carruagens de mulheres.

Quando foram embora, com os seus navios abarrotados de ouro e prata, deixaram a cidade bombardeada, destruída, dilapidada. E de moral no chinelo. Logo instaurou-se uma revolta popular sem precedentes. Apelidado de Vaca, Francisco de Castro Morais por pouco não foi trucidado. Acusado de traição, e de entregar covardemente os bens públicos e privados aos invasores, sem lhes oferecer resistência, não escapou da condenação ao degredo na Índia, nem do confisco de seus bens. E ele era mesmo muito rico, pois era pago a peso de ouro pelo seu cargo, fora as malversações imagináveis.

A invasão francesa teve como conseqüência uma outra: a dos juizes togados de Lisboa, enviados por D. João V. Em meio à agitação dos militares, do Senado da Câmara, da nobreza e dos súditos em geral do reino, instalou-se o Tribunal da Devassa, com uma alçada de 7 ministros. Os trabalhos se arrastaram infinitamente. Mas não acabaram em pizza ou seus equivalentes à época. As sentenças daqueles 7 homens não pouparam nenhum dos acusados. De nada adiantaram os argumentos do governador. Em sua própria defesa, alegou ter sido abandonado por todos. E que havia entregado o ouro aos bandidos para evitar a destruição de tudo que estava sob a mira dos canhões deles.

Todas as punições foram severas. Do desterro à pena de morte. E assim conseguiu-se aplacar a indignação de um povo em estado de descrença total em relação às autoridades.

Enquanto o mundo girou e a Lusitana rodou, Devassa virou marca de cerveja e as vacas voltaram a pastar numa boa.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

DE GATOS E SAPATOS

De Gatos e sapatos

Todos os dias da sua infância na Vila São Francisco, nos cafundós das Alagoas, Avelar viu a alma do gato que ele matou assombrar as suas inquietudes noturnas, solidificando a transfiguração luminosa do felino que depois se desvanecia em miados de lamentos e de dor.

Sonsamente eximiu-se da culpa do crime ao relatar à sua mãe ter sido um infeliz acidente, provocado pelo próprio gato, que pulou para pegar uma lagartixa no exato instante em que ele disparava o seu estilingue em mira certeira na sardanita. A pedra atravessou a cabeça do bichano fazendo um grande estrago, como se fosse bala perdida de revólver. Por azar, atingiu também as sete vidas do infeliz. 

Sua mãe não ligou a mínima para a sorte funesta do felídeo porque, naqueles tempos, gato e sapato eram feitos para se pisar. Nem levou a sério as sombrações felinas que vinham assustar seu pirralho na calada da noite. Acreditava piamente que gato não tinha alma. Morto, não fazia medo a ninguém. Tampouco prestou atenção ao que o filho falava, pois, naqueles tempos, menino era como tamanco, ficava debaixo do banco e raramente os adultos davam importância à conversa de criança. 

– Sossegue. Isso é apenas a sua consciência ecológica cobrando suas atitudes. Se não fosse o gato, seria a lagartixa que você veria – disse e se retirou para seus afazeres de mãe com outros pesos mais importantes na consciência. 

Eu também tive um gato nos meus áureos tempos de menino de interior. Chamava-se Bichano e gostava de beber leite recém-saído do úbere da vaca, às seis horas da manhã. Nas horas vagas, Bichano gostava de caçar lagartixa ou correr atrás de preás nas cercas de macambira. Era muito brincalhão e, os adultos reunidos no avarandado para admirar o pôr-do-sol, xícara de café fumegante nas mãos, interrompiam as conversas meditativas para ver Bichano e suas peripécias com uma bola de meia no meio do terreiro. 

Um dia Bichano aproveitou um vacilo do pessoal da cozinha e resolveu mudar a dieta por sua conta e risco. Era um domingo de pescaria no açude e os homens retornaram com várias fieiras de peixes frescos amarrados pelas guelras. As mulheres se organizaram na cozinha preparando o almoço e não deram importância ao olhar cobiçoso de Bichano, pregado na bacia onde os peixes repousavam no limão. Sorrateiro, pulou ágil e abocanhou uma traíra, saindo em disparada na direção do quintal. Reapareceu uma hora depois, corpo mole e bambo das pernas, pigarreando feito tuberculoso antes de entregar sua alma a Deus. Bichano morreu em meus braços, com uma espinha atravessada na garganta, depois de penosos miados agoniados de dor e de falta de ar. 

Diante do seu túmulo, fiz promessa solene de nunca mais ter outro bicho de estimação. Nem de comer peixe pescado em açude. 

Depois de enterrar três bichinhos virtuais, aqueles inventos japoneses que mais parecem miniatura de game, o meu filho Vinícius esperneou por um animal de verdade. Qualquer um, desde que fosse de verdade, carne, osso e pelo para causar alergia. Uma colega de sua mãe, sabedora do seu desejo, lhe presenteou um gato siamês, que ele o batizou de Mendonça, justificando ser o nome de uma onça camarada de um desenho animado que passava na televisão. 

Mendonça é um gato manso, carinhoso, preguiçoso e se deixa afagar por todas as crianças da vizinhança, a maioria cheia de bichinhos virtuais e de vídeos-games com imagens tridimensionais. Uma delas perguntou inocentemente como se trocava as pilhas dele.

Quando Mendonça era filhotinho, pequenininho, fez amizade com uma lagartixa ingênua que vinha todos os dias brincar com ele na varanda do apartamento, achando que seria possível mudar o comportamento natural dos bichos. No início ela teve medo, titubeou, vacilou, mas, com o passar do tempo, ganhou confiança, acreditou na amizade, se tornaram amigos confidentes e ela contou toda a sua vida para ele, que parecia ouvir atentamente. De vez em quando lhe dava umas estocadas com as patas dianteiras, sem feri-la. Era como gente dando tapinhas nas costas de gente em consolo de amigo. 

Um dia Mendonça despertou, se olhou no espelho e se viu um lindo gato, de pelugem lanosa e garras potentes. Quando a sua amiga lagartixa desceu a parede para confabular, ele se eriçou, curvou a coluna em sinal de ataque, se aproximou finório, manhoso, traidor. Ela, sem desconfiar de nada, correu exultante para abraçar o amigo. Tardiamente compreendeu que os gatos são como os seres humanos: usam e abusam dos amigos a seu bel-prazer, fazendo-os de gato e sapato, cativando suas amizades, aprisionando suas almas até o despertar dos seus instintos selvagens que os levarão a engolir os seus melhores amigos. 

Basta, para isso, ser crédulo e confiar em demasia.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

MORTE E RESSURREIÇÃO DO MALUQUINHO

Por Cineas Santos

De José Elias Arêa Leão


Inicia-se esta arenga com a velha anedota do cidadão (chamemo-lo Cipriano ) que, honesto, trabalhador, benquisto e respeitado de todos, era um exemplo de bom cidadão na cidadezinha onde morava. Atormentava-o, porém, um temor, um medo, um pavor, para ser mais preciso. Horrorizava-se com a ideia de não ter um sepultamento digno, ou seja, com um número razoável de acompanhantes. Dizia aos quatro ventos: “Defunto sem velório é cão sem dono”. E sofria, sofria como um condenado. Foi aí que um amigo industrioso apresentou-lhe uma sugestão: “Compadre Cipriano, vamos tirar isso a limpo: você morre de mentirinha e vamos ver o que acontece”. Ideia aceita e posta em prática: o próprio compadre encarregou-se de divulgar a má notícia. Comoção geral: a cidade inteira e mais alguns forasteiros compareceram ao “velório” de Cipriano que, teso no caixão, a tudo assistia com o maior comprazimento. O compadre, ao lado do ataúde, protegia o “morto” dos olhares indiscretos e despistava os mais curiosos. O ritual se cumpria: café, cachaça, prosa moderada, louvação às qualidades morais do “defunto”. Lá pelas tantas, o compadre segredou: “Hora de levantar, compadre: já vão fechar o caixão”. Cipriano sem abrir os olhos, respondeu baixinho: “Tá maluco, compadre! Você acha que vou estragar um enterro de tal grandeza?”. E mais não disse, pois sobre ele desceu a noite com a tampa do caixão.

José Elias Arêa Leão, que tem todos os atributos do finado Cipriano, não precisou passar por experiência tão radical para provar o quanto é querido em sua aldeia. Deu-se que, na semana passada, morreu um xará do Zé Elias. Um radialista apressado, à cata de um furo, jogou no ar a má notícia que caiu como uma bomba na cabeça de todos nós. Num átimo, telefonemas, e-mails, bilhetes puseram a Chapada em polvorosa. Até a dona Maria da Inglaterra abalou-se de sua casa, na periferia da cidade, para velar e prantear o nosso Menino Maluquinho. Atônitos e consternados, todos perguntávamos: “Por que o Zé Elias?”. A pergunta se justifica: se existe alguém em Teresina que mereça ser condenado à imortalidade eterna (perdoem a redundância) é justamente ele. Setentão, continua lépido, alegre, solidário, irreverente e traquinas como convém a um menino que, para a alegria dos adultos, se esqueceu de crescer.

No fundo, o que esperávamos mesmo era um milagre. E o milagre aconteceu: lá pelas tantas, com sua gaitada inconfundível e com seu passo de pato manco, ressurgiu o Zé Elias, rindo da morte anunciada. Não foram poucos os que, a exemplo de Tomé, fizeram questão de tocar-lhe o corpo para certificar-se de que nosso menino velho continua vivo.

Já se disse, com alguma razão, que nenhum homem é maior que a sua época, mas é inegável que alguns, com seu trabalho, com seu talento, com sua presença luminosa, são capazes de tornar menos ruim a época em que viveram. José Elias Arêa Leão é um deles. Se toda unanimidade é burra, como queria Nelson Rodrigues, está explicado o porquê da ausência de capim-de-burro nos arredores de Teresina: os que amam o Zé Elias comeram tudo.

Longa vida ao Maluquinho do Piauí.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O pão e o IPTU - Luiz Andrioli



Esta crônica do Luiz Andrioli traz uma verdade que poderia ser colocada em prática. Bastava a população se articular pra isso. Não sei aí na sua cidade, mas, em Maceió, o carnê do IPTU geralmente chega na ressaca do carnaval. É uma dívida que a gente só para de pagar quando bate a caçoleta, mas, mesmo assim, os herdeiros continuam a receber o tal carnê.


De Carnê do IPTU



Os fogos de reveillon mal pararam de estourar e já temos na porta de casa as contas do ano novo. O IPTU é uma delas. O imposto deveria garantir a manutenção dos serviços municipais, como o pavimento das ruas, creches, postos de saúde, praças bem cuidadas, etc. Porém estamos no Brasil e sabemos que nem sempre o retorno é proporcional ao investimento quando se trata de dinheiro colocado na mão dos governantes.

Lembrei-me do IPTU esses dias, ao comprar pão na panificadora aqui no meu bairro. O padeiro disse que o forno estava com problema e o pão havia perdido a qualidade. Por causa disso estava havendo desconto no preço do pãozinho. Eu paguei sem reclamar, afinal, problemas acontecem.

Taí uma ideia boa e honesta que dou para os nossos prefeitos. Nem sempre eles acertam na qualidade dos serviços. Nada mais justo que tenhamos, em alguns casos, um descontinho no IPTU. Convido os contribuintes que acompanham esta crônica a uma volta pelo bairro onde moram. Se achar um buraco na rua, ele deveria garantir um desconto no IPTU. A mesma regra seria aplicada para uma praça mal cuidada, fila no posto de saúde...

Vamos cobrar dos prefeitos o mesmo tratamento honesto que o padeiro deu aos seus clientes. Fica a minha sugestão: serviço municipal mal feito, desconto no IPTU.

Se a moda pegar, muitas prefeituras ficarão devendo dinheiro ao contribuinte.

domingo, 31 de janeiro de 2010

São Sebastião, o rei e o Rio

Do livro de Crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres

De São Sebastião



Não é sem motivo que o nome dele está associado ao do Rio de Janeiro. Antes de contá-lo aqui, recordemos a noite em que o padre Anchieta sonhou com São Sebastião, enquanto dormia atrás das barricadas de Mem de Sá, o comandante da conquista definitiva do Rio para os portugueses, então súditos de um rei homônimo do santo perpetuado pelas estampas religiosas, em reproduções imaginárias de seu corpo crivado de flechas.

Tal imagem tornou-se emblemática da intolerância, a simbolizar o martírio dos cristãos no Império Romano, e não só na era de Pilatos. Basta lembrar que Diocleciano (Caius Aurelius Velerius Diocles Diocletianus), proclamado imperador em 284 depois de Cristo, viria a declarar o cristianismo incompatível com o poder do Estado, desencadeando a “grande perseguição” que fez mártires na Itália, na África e no Oriente, até o reinado de Constantino I - de 306 a 337 -, o convertedor de Roma à cristandade.

A história do padroeiro do Rio de Janeiro começa pelo fim. Oficial romano do século III, ao ser denunciado como cristão foi condenado às flechadas, das quais sobreviveu. Mas não resistiu a outras torturas. Morreu flagelado no fogo. No Brasil, tornou-se um santo popular, identificado a Oxóssi nos cultos afro-brasileiros, quer a Igreja Católica considere (melhor dizendo, tolere) a nossa diversidade cultural ou não.

Foi Estácio de Sá quem acrescentou o nome de São Sebastião ao do Rio, ao fundar a cidade, no dia 1º de março de 1565. E o fez em honra a outro Sebastião, nascido em Lisboa em 1554, e rei desde os três anos de idade, já chamado de O Desejado, por ter vindo ao mundo depois da morte do seu pai, D. João. Ele só assumiria o poder em 1568, ou seja, três anos depois de ser homenageado à distância, no sopé do morro Cara de Cão, vizinho do Pão de Açúcar, por um capitão do exército da sua mãe, a regente D. Catarina, incumbido de expulsar os franceses, e liquidar a Confederação dos Tamoios, os maiores entraves à ocupação lusitana nestas paragens.

Dom Sebastião acabou tendo um trágico destino. Sua obstinação pelas conquistas de territórios africanos, e de entrar pessoalmente em combate, o levou a desaparecer em Alcácer-Quibir, no ano de 1578. Portugal viveu séculos à espera da sua volta. A expectativa desse impossível retorno gerou um estado de espírito passadista, o sebastianismo, de longa duração e alcance, pois chegou a este lado do Atlântico, influenciando o movimento insurrecional anti-republicano que provocou a Guerra de Canudos, entre 1894 e 1997.

Os historiadores também fizeram de Dom Sebastião um tipo inesquecível. É um dos reis portugueses mais estudados. E o poeta Fernando Pessoa não lhe negou verso, no papel de conquistador falhado, a desfazer a eterna ilusão do seu regresso:

Louco, sim, louco porque quis grandeza.
Qual a sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Voltemos a São Sebastião. Na noite de 18 de janeiro de 1567, José de Anchieta sonhou com ele, a bordo de um dos navios comandados por Mem de Sá, que, ao amanhecer do dia seguinte, iria atacar – junto com seu sobrinho Estácio -, os redutos do cacique Aimberê, na aldeia de Uruçumirim, hoje o bairro do Flamengo. No sonho de Anchieta, São Sebastião aparecia no meio da tropa, matando um índio atrás do outro. Como em dois dias de batalha dos cristãos não sobrou um único canibal, o apóstolo do Brasil exultou com a premonição.

Barbaridade, meu santo.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Quem goitana foi Ellie Greenwich? – crônicas pop online

Por Edna Lopes

De Quem Goitana Foi Ellen Greenwich



Tropecei em José Teles zapeando por aí, já faz um tempinho. Li algumas opiniões dele sobre música e gostei muito. Descobri depois que tinha uma coluna de crítica musical no Jornal do Commercio de Pernambuco e, volta e meia, ia lá, xeretar, já que minha vida sempre foi muito ligada a música, por gostar apenas, por ser fã.

Minha opinião é de que existem dois tipos de música: a boa e a ruim, mas há também uma infinidade de gêneros para serem apreciados/consumidos e, como fã, me interesso também pelas impressões e opiniões de outras pessoas, principalmente as que me acrescentam conhecimento, caso dos textos dele.
Visitava o site para xeretar mesmo. Lia e me divertia com seu humor inteligente, com a leveza e por vezes a fina ironia com que descrevia personagens, fatos, acontecimentos ligados ao showbisness. Não era constante, mas de tempos em tempos ia ao JC online, devorava as crônicas postadas, acho que aos domingos, numa coluna chamada CURTO E GROSSO que virou coletânea também pela Bagaço, salvo o engano. SALVO O ENGANO (se não me engano), aliás, é uma das expressões favoritas de Teles... Diz que vive salvoenganando-se...

E não faz muito tempo alguém me enviou um email repassando um texto de sua autoria como sendo de outro autor. Não era a primeira vez nem a última, infelizmente, que eu recebia textos assim e mais uma vez fiquei danada com o fato, imaginando porque há pessoas tão descuidadas/desrespeitosas, que recebem textos, não confirmam a autoria e vão reproduzindo inverdades, textos mutilados, autorias retiradas e substituídas com a maior desfaçatez.

“Tem rapariga aí?” é a pergunta de abertura da crônica “A música dos valores perdidos”, texto que fiz questão de reproduzir com a autoria restaurada na minha página, é uma das tantas crônicas deste livro leve, divertido e instrutivo deste jornalista cultural que, aliás, tem uma obra respeitável publicada pela Bagaço.

São 25 livros que tratam principalmente de boa música e se você ficar curioso em “Quem goitana foi Ellie Greenwich”, José Teles diz e diz outras “cositas más” sobre música, curiosidades sobre personalidades, shows, lançamentos, todas muito interessantes. É mesmo um mergulho no universo musical, leitura divertidíssima para as minhas férias que gostei e recomendo.

Serviço

Livro :“Quem goitana foi Ellie Greenwich – crônicas pop online” – José Teles, Editora Bagaço, 2009

“Quem goitana foi Ellie Greenwich – crônicas pop online” é um apanhado dos artigos que o jornalista publica a dois anos no JC Online, na coluna TOQUES DIGITAIS. São crônicas musicais que ele escreve "sem compromisso com notícia, por diversão", como relata o autor. Entre os textos, histórias dos bastidores de shows, comentários sobre discos, percepções curiosas sobre a música de décadas atrás.

http://jc.uol.com.br/canal/lazer-e-turismo