sábado, 10 de abril de 2010

A PALMATÓRIA


Ela era uma pequena peça circular de madeira, provida de um cabo. Algumas tinham orifícios para exaustão do ar e aumentar o poder de impacto e, conseqüentemente, a dor. Usada como instrumento de castigo para bater na palma das mãos dos castigados, foi o maior instrumento disciplinador dos primeiros sessenta anos do século XX, cujo poder de persuasão extrapolava as raias do convencimento político-ideológico. Tal instrumento se dizia altamente democrático, mas, como ocorre nas democracias, só sobrava para os mais fracos: fracos de espírito, de conhecimento, de discernimento, que, pra variar as estatísticas, ocorria com mais freqüência entre os economicamente mais fracos.

Nas escolas era tida como auxiliar de disciplina; nos lares como estimulador do bom comportamento; e, nas delegacias, como a maior invenção científica para fazer os meliantes confessarem seus crimes.

A professora Tereza a usava com desdém; a professora Serafina, formada na disciplina rígida do Convento das Freiras, na Soledade, em Salvador, abraçou a causa dos direitos humanos e relaxou no seu uso; a professora Suzete nunca usou tal instrumento de tortura e o professor Lau – Laudelino Mendonça - , que apareceu no arraial do Junco nos anos 1920, trazido por Mané Moço para ministrar aula particular de Português e Matemática, a usava com todos os requintes de crueldade. Extremamente rígido na disciplina e exigente no aprendizado, castigava o faltoso, invariavelmente, com meia dúzia de “bolos”, como era chamada a surra de palmatória. Isso fazia com que os alunos ficassem temerosos, medrosos e cabulassem aula.

E foi por conta disso que o velho Professor se deslocou de sua casa para ir até a fazenda de Adelino Torres, em busca de notícias de um aluno que nunca mais havia comparecido às aulas, apesar de ele, Adelino, o pai, pagar as mensalidades rigorosamente em dia, de um filho que não freqüentava a aula.

- Como assim, “não frequenta a aula”?! – espantou-se Adelino Torres, entre um gole de café e o admirar do pôr-do-sol atrás do Cruzeiro dos Montes – Todo dia ele e Raimundo vão para a aula... Valdooo! Raimundoooo! – gritou.

Os dois apareceram cabisbaixos, sorrateiros, desconfiados.

- Raimundo, por que você vai pra aula do Professor Lau e o seu irmão Valdo não?

Raimundo relutou em responder, tentou embromar, fez-se de desentendido, mas, sob a ameaçava de levar uma surra, confessou:

- Eu chamo ele pra ir, mas ele prefere ficar na entrada da cidade, na sombra de uma árvore do Tanque Velho, fumando charuto com os moleques da “Rua”. E ameaçou me bater se eu contasse pro senhor.

Adelino Torres, que se orgulhava de nunca ter dado uma surra em um filho, nesse dia fez valer a palmatória por todos os anos que ficou parada, pendurada na parede, como enfeite ou alimento dos cupins. Valdo levou seis “bolos”. Raimundo ganhou o dobro, para aprender a não esconder os erros do irmão. No outro dia, no caminho da escola, levou uma surra de Valdo e dos moleques da “rua”, para aprender a não dedurar os outros. Chegando à escola do professor Lau, levou mais meia dúzia de “bolos” para não mentir mais para o professor.

Com o Golpe Militar de 1964 o uso da palmatória nas delegacias foi proibido. Ou melhor: substituído pela tortura requintada do pau-de-arara e do choque elétrico. Do mesmo modo, foi terminantemente proibido nas escolas, sendo substituída pela (in)finita paciência dos professores e pelo uso moderno da psicologia. Temia-se que o baixo salário dos professores tornasse o seu uso uma válvula de escape.

Extraido do livro "Arraial do Junco: Crônica de sua existência", desse escriba que vos fala.




quinta-feira, 8 de abril de 2010

Democracia em farrapos, almas arruinadas - Cláudio Canuto



De Compro voto


Com a celeridade característica dos novos tempos, as eleições se aproximam mais uma vez. Com elas, os dublês mal-ajambrados de cientistas políticos, então submersos em sua faina cotidiana, emergem, proferindo com a experiência de um Nostradamus, seus vaticínios profundos como um pires. Com seus dotes de prestidigitador e cartomante, vociferam os prováveis futuros eleitos de candidaturas ainda não anunciadas, arvoram-se detentores legítimos de segredos doravante revelados pela força de suas profecias e pelas revelações de pesquisas eleitorais não realizadas. São os áulicos do poder, os lambe-solas, os goelas de aluguel.

Enquanto pregam isenção ética com o furor de um Napoleão em guerra, certos jornalistas venais buscam um troco oferecendo suas páginas dentro das conveniências do mercado, chamando de vossas excelências, bandidos comuns que se assenhorearam da fragilidade política de nossas instituições para enriquecimento ilícito.

Quanto aos postulantes eleitorais, é duro vê-los outra vez - imunes, pela força vacilante da lei, do último golpe, da última fraude, do último assalto - legitimados por esta massa ignara e disforme que os idealistas chamam povo. Na verdade, alheia ao processo político que lhes guiará o próprio destino. Estes eleitores, corruptos, vendem-se por dez tostões e entregam prazerosamente a seu algoz o chicote de sua própria sordidez e desonra, transformando-se em uma multidão humilhada, desdenhada, subserviente e sem a menor noção da real importância da titularidade do seu voto.

Alguns teóricos ainda encontram certa nostalgia romântica quando falam do povo, sobretudo como forma de representação política autêntica: “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”, ou como a grande promessa de um devenir histórico grandioso:”O povo unido jamais será vencido!”. Ambas as concepções ruem como um castelo de cartas graças ao poder dos cifrões. Esta multidão vai ofertar sua titularidade de representação eleitoral à escória social, aos insensíveis políticos carreiristas, por alguns tostões momentâneos e novamente mergulhar na miséria do seu cotidiano apenas suportável graças ao peso de décadas de privação e miséria, suas únicas heranças.

É doloroso antecipar que os grandes gatunos locais serão mais uma vez alçados a condição de autoridades incontestes, exercendo uma atividade que se esvaziou completamente, desfilando com soberba sua autoridade arrogante e plena de ignorância orgulhosa, colocados por força das circunstâncias a um palmo acima da lei e dos habitantes desta província condenada a sonolência e a insensibilidade.

A assembléia legislativa de Alagoas, um poder fundamental para o exercício pleno da cidadania, virou um valhacouto de salafrários, completamente desvirtuada de suas verdadeiras funções constitucionais. O judiciário os acoberta – o que os estimula -, e o executivo busca encontrar o seu apoio para o mínimo de governabilidade, em uma troca ilícita. Larápios, comandantes de órgãos estatais ineficientes , burocratas que se comprazem em infernizar os cidadãos.

Nós vivemos em um regime sob a égide do capital, que é avassalador, pois tudo pode comprar: glória, honra, poder, a representação divina, o perdão eclesiástico e, claro, o voto – assim como a fiança, este reconhecimento explícito de que a justiça tem um preço . Falsa pudica e morta de vergonha, esta lady dona de lupanar, vendou os olhos horrorizada com a sua própria transformação, evitando mirar-se no espelho onde, refletida, duplicada, impõe-se, tardia e falha, à prova da sua própria ignomínia.


Nota do Blog: Cláudio Canuto é jornalista e professor de Sociologia da Faculdade Integrada Tiradentes, e é o mais novo colaborador do blog.






quarta-feira, 7 de abril de 2010

A Teia da Diversidade - Cineas Santos





O que aconteceria se, de repente, integrantes de todas as tribos culturais do país decidissem se encontrar, numa cidade ensolarada, para falar, ouvir, ensinar, aprender e, principalmente, conviver solidariamente? A resposta é simples: tudo e mais alguma coisa, principalmente alegria e beleza. Foi essa a impressão que guardei do encontro nacional de pontos de cultura – TEIA: tambores digitais - realizado entre os dias 25 e 31 de março do ano em curso, em Fortaleza. Consta que pelo menos 4 mil representantes de pontos de cultura de todos os recantos do Brasil marcaram presença. O número pode parecer superestimado, mas não duvido de que esteja bem próximo da realidade: em menos de 24 horas, encontrei 3 catingueiros que, como eu, olhavam abismados aquele dilúvio de gente. Uma moça de Caracol, outra de São Raimundo Nonato e um rapaz de Anísio de Abreu, gente de minha antiga aldeia. Confesso, com muita alegria, que nunca me senti tão enturmado. Pela vez primeira na vida, encontrei uma caracolense bem mais articulada do que eu. Com uma câmara digital na mão, a moça registrava tudo, enquanto eu me limitava a espiar. Conclusão: uma teia capaz de alcançar o Caracol é, efetivamente, abrangente.

De repente, o monumental espaço cultural Dragão do Mar ficou pequeno para comportar tantas e tão distintas manifestações culturais. Num mesmo caldeirão musical, misturavam-se a Orquestra de Câmara Eliezer de Carvalho, banda de pífanos dos Irmãos Aniceto, Jorge Mautner, Dona Zefinha, Fagner, Tambores do Tocantins, Orquestra Popular Meninos da Ceilândia, Chico César, Bloco Afro Ilú Obá de Min, Reisado de Santana, Orquestra de Berimbaus do Morro do Querosene, Carimbó dos Quentes da Madrugada e o escambau. Acrescente-se a isso a troca de experiências, debates apimentados, projetos ousados, mostras de arte e artesanato e muita alegria. Um caldeirão cultural fervilhante de luz, cor, sons, magia... Para o encerramento do encontro, organizou-se o Cortejo da Ebulição dos Libertos, com a participação de mais de 2000 pessoas. A melhor parte: os políticos não tiveram espaço para suas arengas costumeiras. A festa tinha dono: o povo brasileiro.

Ainda é cedo para que se faça uma avaliação adequada do legado do governo Lula para a cultura brasileira. Mas é inegável que, sob a batuta de Gilberto Gil e Juca Ferreira, a cultura dos “grotões, chapadas e morros” pôde mostrar a cara sem medo de ser feliz. Os pontos de cultura propiciaram aos “despossuídos” de todas as aldeias a oportunidade de gritarem ao mundo: ESTAMOS VIVOS! Azar de quem não quiser ouvir.





terça-feira, 6 de abril de 2010

Uma luz na escuridão das almas americanas



Por Antonio Torres


De Luz em agosto - Faulkner



Cesse tudo que as Musas novas cantam, que um valor antigo se alevanta. Calma, rapeize! Este começo provocativo, obviamente paródico, expressa mais o estado de humilhação do próprio autor destas linhas, ao reler agora essa obra-prima indiscutível que é Luz em agosto (relançada recentemente no Brasil numa bela edição da Cosacnaify), do que a intenção de humilhar quem quer que seja. Porque nesse romance, tão caudaloso quanto o Mississipi, o Pai das Águas, William Faulkner parece nos dizer que estamos, no mínimo, a três doses abaixo do seu talento, “grande demais”, conforme o espanto até de um Sherwood Anderson, aquele que o ajudara a publicar o seu primeiro romance, Paga de soldado, tão logo Faulkner dele se acercara em Nova Orleans, aí pelo ano de 1925, em busca de ensinamentos, por considerá-lo “um milharal com uma história a contar e uma língua com a qual fazê-lo”.

Ao ler as primeiras páginas daquele candidato a seu discípulo, Anderson anteviu a nascente de um rio largo, profundo, deslumbrante, perturbador, a ser contemplado num misto de exaltação e ultraje, pois sua grandeza chega a dar raiva. Valha-nos Deus! Ainda bem que nós, pobres mortais, já não precisamos abatê-lo às garrafadas. Ele mesmo se encarregou disso, dizendo: “Entre o uísque e nada, escolho o uísque”. O que era uma blague do memorável final de seu Palmeiras selvagens: “Entre a dor e o nada, escolho a dor”.

Tal escolha o levaria a não ver a luz de agosto de 1962. Entrou em trevas totais em 6 de julho daquele ano, à distância de dois meses e dezenove dias para chegar aos 65, que completaria em 25 de setembro. Quem sabe a parodiar-se: “É o uísque, e não a dor, que faz você recordar-se de centenas de ruas selvagens e ermas”.

Não, não foi aí que ele virou um monstro-sagrado. Nem no dia 10 de dezembro de 1950, quando a Academia Sueca lhe entregou o Prêmio Nobel, correspondente ao ano anterior. Muito antes da guerra de 1939, e antes mesmo de conquistar o pleno reconhecimento nos Estados Unidos, Faulkner adquirira uma sólida reputação na Europa, sobretudo na França, onde Jean-Paul Sartre se tornara o seu intérprete e propagandista, considerando-o, ao lado de John Dos Passos, o escritor mais importante e mais original já surgido no século 20. Albert Camus e André Malraux viriam a fazer coro com Sartre. E quando Luz em agosto foi publicado na Suécia, em 1944, todos os jornais locais babaram nas gravatas. Saudaram-no como a revelação de uma arte nova, visceral, ao mesmo tempo primitiva e requintada, e que abria largas perspectivas sobre a condição humana, e na qual se sentia o fim de uma civilização condenada. A do arruinado Sul dos Estados Unidos, que se amargurava pelo fracasso na Guerra da Secessão, incapaz de expiar o seu passado escravista. A decadência levava-o à frustração, e daí à escuridão do fanatismo patriótico e religioso, da intolerância racial, da violência insana, o que o impedia de ver uma luz no fundo de sua alma.

É nesse cenário que se movem os personagens de Luz em agosto, “todos em busca de seu lugar num mundo que reservou para eles apenas um destino trágico”, como escreveu o nosso Marçal Aquino, na apresentação desta nova tradução brasileira, de Celso Mauro Paciornik. E diga-se: sem desmerecer a anterior, de Berenice Xavier (publicada em 1948 pela Editora Globo e, em 1983, pela Nova Fronteira), esta de agora é um tour-de-force admirável. Nela, Paciornik consegue captar o cipoal retórico de Faulkner, em sua prosa polifônica com períodos longos, maneiras de falar no passado e no presente, incluindo o pidgin-english dos escravos e seus descendentes, ritmo tempestuoso, obscuridades verbais, fusão de palavras etc. Mas voltemos a Marçal Aquino: “Há escritores que escrevem grandes livros. Há outros, mais raros, que instauram mundos. William Faulkner pertence a essa linhagem”.

Nem sempre o viram assim. Quando ele ganhou o Prêmio Nobel, o New York Herald Tribune protestou, por preferir um laureado “mais sorridente num mundo que se entristece”. E o Times, de Londres, acusou-o de escrever num “estilo de oráculo”, além de “maltratar as palavras do vocabulário com a maior sem-cerimônia”. Bullshit, deve ter pensado o sombrio Faulkner, dando uma risadinha, enquanto voava para as luzes de Paris, e de várias cidades japonesas, e de São Paulo, Brasil, onde, ao acordar de ressaca, puxou a cortina da janela do hotel e exclamou: Oh, my God, Chicago again?!

Meu Deus! Haverá leitor no mundo que deixe de exclamar isso, diante de uma página de Faulkner? Ele parece ter fundido a Bíblia às obras de Shakespeare, Dostoievski e James Joyce, para transformá-las numa originalíssima fábula americana, ao mesmo tempo tenebrosa e iluminada. Não é à-toa que se tornou um escritor para escritores. Não foram poucos os que se renderam ao poder da sua magia, o que é visível em Carson McCullers (a de Balada do café triste), William Styron (A escolha de Sofia), Gabriel García Márquez, Mário Vargas Llhosa, Juan Rulfo (confira no extraordinário Pedro Páramo), Milton Hatoum, o autor de Cinzas do Norte. Ah, sim: o cineasta Glauber Rocha também o incluía entre as suas influências.

Eis aí. Entre Faulkner e nada, eu também escolheria o Faulkner.




segunda-feira, 5 de abril de 2010

Sobre Pessoas - 13



A BELA TONIA E O VELHO BRAGA

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres

De Tonia Carrero e Rubem Braga



Primeiro, recordo uma noite na Fiorentina, ali no Leme, aqui no Rio, quando a senhora diretora da Casa Laura Alvim, Eliana Caruso, me pôs a uma mesa, ao lado da não menos amável Tônia Carrero, que sempre associei a duas figuras tão ilustres quanto ela: Paulo Autran e Rubem Braga. Associação, aliás, que deriva de sua própria história – de vida e afetos. Mas não foi sobre o sabiá da crônica que conversamos então. Consumimos o tempo numa única rememoração, em torno da vez em que Tônia Carrero e Paulo Autran estiveram na cidade (portuguesa, com certeza) do Porto, para levar à cena a peça Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello, num cinemão completamente lotado. O público portuense, contido por natureza, não lhes poupou aplausos.

No dia seguinte, criei coragem e fui procurá-la no hotel em que se hospedara, com uma única fala decorada: “Sou brasileiro e seu fã”. E perdi a respiração ao me ver a poucos passos de distância de uma beleza que só devia nascer a cada cem anos. “Você mora aqui?”, ela me perguntou, com um sorriso piedoso. “Tadinho! Como está agüentando todo esse frio?” Sim, o inverno do Porto é muito longo, sombrio, sujeito a chuvas de granizo, um castigo para quem nasceu nos trópicos. O papo foi rápido porque ela já estava de malas prontas. Paulo Autran ficou. E voltou a subir no mesmo palco, para um recital de poesias, o que sempre fez, magistralmente. Naquela outra noite, porém, sem dividi-lo com a Tônia, ele ficou parecendo um verso de pé quebrado.

Desde aquele encontro com lady Carrero na Fiorentina, venho pensando em contar umas histórias do seu outro amigo. Afinal, também recentemente, ela foi a primeira celebridade convocada para a inauguração de um memorial a Rubem Braga, em Cachoeiro do Itapemirim, a cidade do Espírito Santo onde o célebre cronista nasceu.

A primeira delas se tornou lendária no meio jornalístico carioca. É do seu tempo na revista Manchete, onde escrevia toda semana, assim como Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Henrique Pongetti. Um dia, Rubem Braga decidiu ir à sede da empresa, para reivindicar aumento de salário. “O quê? Cinqüenta contos por uma crônica?” – perguntou-lhe o patrão, que se chamava Adolfo Bloch, à beira da apoplexia. Calmamente, Rubem respondeu: “Sim. Por uma crônica e cinqüenta anos de vida”.

Outra: o poeta português Alexandre O’Neill — já devidamente apresentado neste livro — estava num café de Paris, com uma amiga brasileira. Ao olhar em volta, viu um homem sozinho, que tinha a cara de Rubem Braga. “É o próprio”, ela garantiu-lhe. “Mas não vá puxar conversa. Deixe-o na paz da sua solidão”. O’Neill ficou um tempo a observá-lo. Achou-o com um rosto triste. E pensou: “Vai ver é por nunca ter escrito um romance”. Uma conclusão meio doida, de quem, provavelmente, já tinha bebido além da conta.

Há mais uma que entrou para o anedotário como um clássico do gênero. Caribé, o artista argentino que virou baiano, estava de passagem marcada para o Rio. “Rubem Braga vai hospedar você”, disse-lhe Jorge Amado, passando-lhe o endereço da famosa cobertura da Barão da Torre. E assim ele veio, com garantia de casa e comida. Na hora de voltar à Bahia, dirigiu-se ao seu anfitrião, para despedir-se dele e lhe agradecer pela hospitalidade. E acrescentou: “Rubem, durante esses dias aqui, observei todos os seus movimentos. Por isso vou lhe dizer uma coisa: perto de você, Dorival Caymmi é um operário-padrão”.

Na verdade, ele dava duro para viver, como escritor e editor, ao seu tempo de sócio de Fernando Sabino, na Sabiá. Fui levado a conhecê-lo, sem aviso prévio, pelas mãos da pintora Regina Vater. Ela era amiga do velho Braga, a ponto de tocar-lhe na porta, sem telefonar antes.

“Peguem uísque e gelo e se sirvam”, ele disse. Depois, a passos lentos, caminhou para uma rede. E nela, continuou a ler um livro, apanhado no chão. Era o Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, que iria publicar, com o sucesso que se sabe. Saí de perto, para não incomodá-lo mais. Aquele que tinha fama de preguiçoso estava trabalhando, enquanto parecia descansar. Vida de artista.




sexta-feira, 2 de abril de 2010

A Nova Versão da Paixão de Cristo

“Coelhinho da Páscoa, que cores tu tens?” D.P.


Na Semana Santa é comum as cidades de interior encenarem a Paixão de Cristo pelas ruas, com grande participação popular, quer como atores, quer como figurantes, mas a maioria é de espectadores aflitos com a catástase bíblica. Em uma cidadezinha do interior de Alagoas, que muito lembra o arraial do Junco, essa representação teatral vem de longos anos e desde a sua primeira encenação que os atores são os mesmos, apesar do tempo a cada ano talhar novos sulcos no rosto do elenco. 

No ano passado, faltando um mês para a apresentação do espetáculo, o diretor reuniu a trupe e falou sem meias palavras:

– É o seguinte pessoal: há muito tempo que estamos com as mesmas pessoas representando a Paixão de Cristo e alguns personagens já não convencem mais, pois ficaram defasados do projeto original. Este ano haverá mudanças no elenco e quero a compreensão de todos, pois não é mais possível continuarmos apresentando um Cristo careca, gordo, barrigudo e próximo dos sessenta anos. E Maria Madalena, então? Está vinte anos à frente da verdadeira. Pilatos? Né bom nem falar! Vocês já viram algum Pilatos desdentado e adunco?!

Ninguém ousou contestar. Contra fatos não há argumentos. A realidade se impunha cruamente quando se olhavam no espelho. Já era passada a hora de pedirem o boné.

Abriu-se a temporada de teste cênico. Vários candidatos se apresentaram. Um ator jovem, malhado e cheio de ginga foi o escolhido para fazer o papel de Jesus Cristo. Tatuagem no braço, brinco na orelha, não lembrava um mínimo o personagem central, mas levava uma carta de apresentação do Prefeito, principal financiador do espetáculo. Pelo menos tinha uma aparência Global, arrancaria suspiro das mulheres, tal qual Tiago Lacerda em Nova Jerusalém. 

O antigo ator principal não ficou sem função. Em reconhecimento aos longos anos de serviço prestado à companhia teatral, arranjaram-lhe o papel do soldado que chicoteia Cristo no caminho do Calvário. Diante do destacamento policial da cidade, ele parecia um atleta e ninguém se lembraria do fato de que soldados romanos não se tornavam sexagenários.

Depois do clássico julgamento em que Pilatos lava as mãos, Jota Cristo foi condenado sem direito a recorrer aos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Sem maiores delongas, puseram a coroa de espinho de plástico flexível na sua cabeça, e o empurraram aos tapas para a saída, onde a cruz de isopor estava à sua espera. Caminhou trôpego para cumprir as profecias, seguido por uma multidão de figurantes e espectadores. Estava escrito nas estrelas e assim teria que ser. Algumas pessoas mais sensíveis choravam às cântaras com o realismo do espetáculo e se auto-flagelavam açoitando as costas com galhos de cansanção. Não bastava a dor: tinham que sentir o ardor e assim expiar a culpa do suplício de Nosso Senhor Jesus Cristo no dia de Sua Paixão e Morte. 

A encenação seguia normalmente até a hora que o soldado chicoteador, com raiva do ator que havia tomado o seu lugar, deu uma chicotada violenta, imprimindo rancor e ódio ao látego. O intérprete de Jota Cristo acusou o golpe, sem denunciar a dor. Pediu baixinho, rangendo os dentes:

– Devagar, cara! Isso aqui é uma encenação! Bata leve, de mentirinha!

O soldado fez ouvido de mercador. Lembrou-se das chicotadas que levou durante aqueles anos todos para depois ser preterido por um almofadinha com pinta de surfista. Sua raiva triplicou ante tal lembrança. Engoliu saliva com gostinho de vingança e baixou o sarrafo. Uma, duas, três chicotadas seguidas, rasgando a roupa e tirando sangue das costas do condenado. Jota Cristo jogou a cruz de lado, se livrou da coroa de espinho, deu um urro, arrebatou o chicote da mão do soldado e o surrou com raiva e fúria. 

O povo, tomado pela forte emoção do espetáculo, pensando tratar-se de um novo enredo para a Paixão nos moldes da coragem sertaneja, aplaudiu entusiasticamente a reação de Cristo, elogiando sua atitude corajosa, de macho. Naquela terra de homens valentes, ninguém aprovava Seu jeito cordeirinho de aceitar morrer resignadamente, ainda mais sendo filho de quem era. Bastava dizer um “abracadabra” para a terra engolir todos os seus inimigos.

– Dá-lhe, Cristo! É assim que reage um cabra-macho! Acaba com esse fariseu safado! Pau nele!

Por conta desse realismo fantástico, foi reescrita uma nova versão do Evangelho, com um novo final histórico: em vez de ser crucificado, Jota Cristo foi recolhido ao xilindró por soldados à paisana, que não faziam parte do elenco.

O povo, em vigília solidária, varou a noite na porta da cadeia, exigindo a liberdade do ator. Sem a crucificação, não haveria Sábado de Aleluia e consequentemente o Judas não poderia ser malhado. As crianças perderiam o chocolate do Domingo de Páscoa e não poderiam cantar as cores do coelhinho.






quinta-feira, 1 de abril de 2010

O Acampamento da Petrobrás

No arraial do Junco arcaico a Sexta-feira da Paixão era só penitência. Do raiar do dia ao cair do sol, todos os prazeres da vida se tornavam proibidos, sob pena do infrator queimar eternamente no fogo do Inferno. Os homens faziam reunião em conversa de inverno, as mulheres preparavam o banquete ao pé do fogão a lenha – apesar do jejum, comia-se à tripa forra – e os pirralhos dispersavam-se pelo mundo porque também era proibido se castigar filho arreliento.

Tínhamos como vizinho um garoto chamado Jesus. Apesar do sagrado do nome, mais parecia o Cão chupando manga. Falava-se que ele era um anarquista mirim, um projeto de comunista, o Senhor das Estripulias. Meter-se em seu caminho era encomendar confusão. Só perdia para meu primo Cabaú, outro encrenqueiro de marca maior, cujas safadezas encontravam condescendência da minha tia, por ser o seu filho caçula. Pedro, seu irmão mais velho, era o contrário dele: sossegado, pacífico, e só se envolvia em confusão quando se metia com Jesus ou para tirar o irmão de alguma. Badego, meu irmão mais novo, fora batizado José Guedes em homenagem a uma paixão antiga de uma tia nossa. Mais tarde, ela se casou com outro e obrigou Maricas Coxeba, a escrivã, a trocar o nome do meu irmão para Badego. Era um chantagista de marca maior: se não o deixássemos nos acompanhar, ele abria o bico em casa. Assim, formavam-se os seguidores de Jesus que, por ser o mais velho, o mais forte e o mais brigão, detinha um grande poder de convencimento.

Aproveitando-se da inviolabilidade da conduta cristã no dia da Paixão, Jesus propôs que fôssemos ao acampamento da Petrobras em busca de rolimãs para fazermos patinete. Apesar do medo em deixar a segurança da cidade, a proposta era tentadora. Assim, antes do Sol ligar sua caldeira principal, nos embrenhamos rumo ao desconhecido que, segundo Jesus, ficava depois do campo de futebol, coisa de meia légua. E “meia légua”, na nossa cabeça, era coisa pouca.

Não era. Andamos por estradas nunca dantes viajadas por nós e quando o sol começou a ferver o nosso juízo, avistamos o cobiçado acampamento. Nossos corações dispararam de contentamento e júbilo. A alguns passos, dentro de uma grande construção de madeira e zinco, a redenção: um monte de rolimãs nos esperando. Naquele momento de êxtase se formou em nossa cabeça “a gang da calçada e suas patinetes voadoras”.

Ao darmos com o costado no acampamento, uma decepção: o portão estava fechado a cadeado. Batemos palmas. Gritamos. Apareceu um vigia com um rádio de pilha na mão. Ficamos maravilhados com o invento. Na cidade havia rádios de pilha, mas eram verdadeiros monstrengos fabricados em Serrinha. Nada que se comparasse àquele objeto falador como um corno.

O vigia parecia ser gente boa. Disse-nos que era dia de folga por causa do feriado e os petroleiros só retornariam ao trabalho na segunda-feira. Falou para voltarmos na outra semana que teríamos quantos rolimãs quiséssemos. Infelizmente, ele era apenas um simples vigia e não poderia retirar nenhum material de lá de dentro. Perderia o emprego se fizesse isso.

Pedimos água, bebemos, demos meia-volta, volver. Jesus decidiu cortar caminho: voltaríamos por dentro do mato, em diagonal, até cruzarmos com a estrada, adiante. Andamos rápido pela caatinga, usando a caixa d’água do acampamento como referência. Uma hora depois perdemos a caixa d’água de vista e não havia nenhum sinal da estrada. Que rumo tomar?

– Estamos perdidos! – falou Pedro.
– A caipora nos pegou – vaticinou Jesus, materializando nosso medo. A caipora era um bicho tinhoso, gostava de pregar peça em quem adentrava seus domínios sem lhe levar presentes, principalmente dia de sexta-feira ou feriado. E era sexta-feira e feriado. Sua ação seria intensificada. Havia relatos de caçadores atacados pela caipora que perderam o rumo para sempre e viviam andando a esmo pela mata, sem encontrar o caminho de casa.

– Alguém trouxe fumo?
– Quem ia dar fumo pra criança, Jesus? – perguntei.
– E fósforo? Alguém trouxe fósforo?
– Nós viemos buscar rolimã e não fazer fogo – falou Pedro.
– É que Chico Caçador me disse que na falta do fumo a caipora aceita fósforo como presente. É pra acender seu cachimbo. Ou então cachaça.

Não havia fumo, não havia fósforo, não havia cachaça, muito menos comida. A sede começava a apertar.

– Vamos voltar pro acampamento – disse Jesus.
– E de que lado fica o acampamento?! – perguntamos.

O Sol estava a pino, sinal de que devia ser meio-dia. A caatinga é flora sem serventia, não é árvore nem mato. Caminhamos a esmo até encontrar uma árvore que nos deu sombra. Havia uns pés de murici e cambuí, carregados, e aplacamos um pouco a fome. Como eram frutinhas leitosas, acalmamos também a sede. Nossa esperança era de que já tivessem sentido a nossa falta lá na cidade e viessem atrás de nós. Nas atuais circunstâncias, uma surra seria bem-vinda.

Jesus e eu subimos na árvore até o topo para observarmos os arredores. Nenhum sinal da estrada; nenhuma indicação de que houvesse vivente naquele fim de mundo. Cabaú e Badego ameaçaram chorar, mas foram contidos por Pedro, que segurava um cacete. Jesus divisou um vulto à distância. Era gente ou a caipora? Observamos. Pelo chapéu na cabeça e o andar, era gente. Gritamos. Ouvimos nosso eco. Cabaú chorou forte e nós rezamos. Os anjos vieram em nosso socorro. Ouvimos a voz da Providência nos chamando:

– Pedro?! Cabaú?!
– Paiêêê!!!!!!!! – responderam.

Estávamos a dois passos da estrada e não vimos. Retornamos cabisbaixos, soturnos, mas felizes, apesar do sermão do nosso tio doer mais do que surra de cipó-caboclo. Por ser uma Sexta-feira Santa, não apanhamos, porém nunca mais pudemos brincar com Jesus.

quarta-feira, 31 de março de 2010

A Galopante Escalada do Medo

“Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços” – CDA

Por Cineas Santos


De Medo


Segundo os entendidos, o medo é o mais visível e palpável de todos os sentimentos. Faz-se sentir/notar nos olhos, na boca, no coração, nas pernas e, principalmente, nos intestinos. O homem, por ter consciência do perigo e da finitude, fez do medo permanente companheiro de jornada. Ainda assim, viver sob o domínio dele tem efeitos devastadores em nosso organismo. Deixemos, contudo, de filosofice, que o objeto desta arenga é o chão do chão.

Há 30 anos, juntei os caraminguás amealhados a duras penas e comprei um terreno numa área pouco habitada, nas imediações da Universidade Federal do Piauí. A rua não era calçada, faltava água com muita frequência, a iluminação era precária, mas os vizinhos (mucuras, bem-te-vis e camaleões) eram discretos e amistosos. Resolvi construir uma casa que, de alguma forma, me remetesse ao sertão do Piauí. Fiz um casarão de fazenda, com cumeeira alta, varandas amplas e até mourões para amarrar meus cavalos imaginários. Decidi que não me cercaria de muros. Finquei estacas, pus uma tela de arame e plantei uma bela trepadeira. As chuvas se encarregaram do resto: uma viçosa cerca viva me propiciava a sensação de morar no meio de uma roça. À noite, deitado em minha rede de caroá, sentia-me nas brenhas do sertão onde nasci. Como não gosto de ar condicionado, costumava dormir com as janelas abertas. O medo não me tirava o sono.

Tudo ia muito bem até o dia em que surpreendi, entre tufos de helicônias, um indivíduo que, tendo furtado o animal de estimação de um vizinho, escondera-se justamente no meu quintal. Por pouco, não me acusaram de acoitar bandidos em minha casa. A contragosto, resolvi construir um muro civilizado, se é que essa coisa existe. Um muro baixo, de tijolos aparentes, rústico e belo.

Em pouco tempo a rua ganhou novas edificações, calçamento, água e até rede de esgoto. Foi o suficiente para atrair os indesejáveis “visitantes” que, sem o nosso consentimento, apropriavam-se do que nos pertencia. Os vizinhos, apavorados, resolveram construir cercas elétricas. Assim, de um dia para outro, vi-me meio cercado, refém do medo dos outros. Não demorou muito para que eu descobrisse que, sem cerca elétrica no muro da frente, minha casa tornou-se o alvo preferencial dos larápios. Tentei resistir, mas acabei vencido pelos fatos. No ano passado, no meio da noite, dois pivetes – 14 e 16, respectivamente – entraram em minha casa, arrombaram meu carro e, por pouco, não me converteram em notícia ruim. Naquela noite os dois “visitaram” 8 casas, algumas delas cercadas de toda a parafernália vendida pela indústria do medo. O mais novo deles já foi detido 17 vezes. É inteligente, cínico e violento. Se necessário, barbariza, certo da impunidade que lhe garante o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Cansado, vencido, acovardado, fui obrigado a “proteger-me” com cercas elétricas. Finalmente, tornei-me prisioneiro do meu próprio medo. A partir de agora, depositarei, mensalmente, aos pés do deus pavor, o meu dízimo.

O Poeta tinha razão: um dia “morreremos de medo/e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.”

terça-feira, 30 de março de 2010

Semana Santa - Momento de Reflexão

Por Luiz Eudes


De Paixão de Cristo



Desde que me entendo por gente que ouço a minha avó Iná falar:

– Jesus morreu para livrar-nos do pecado. É verdade. Ocorre que alguns homens são maus e permearam novamente o mundo de pecados. E todos os anos é celebrada a Paixão de Cristo numa tentativa de nova remissão.

No arraial do Junco a comemoração da Paixão de Cristo é preenchida com celebrações de missas, confissões comunitárias, procissões pelas ruas da cidade e o acender de velas e badalar de sinos. Também há a encenação ao ar livre da Paixão de Cristo, com grande presença de público, que, ano pós ano, desde a primeira encenação nos anos 1980, vai às lágrimas com o calvário vivido por Cristo.


Este ano a minha filha Sarah, 13 anos, chegou a casa com a novidade de que irá participar da confissão comunitária promovido pelo novo sacerdote da Paróquia, embora eu duvide de que, com essa idade, tenha alguma pendência com o Divino. Os participantes da confissão comunitária ficam obrigados a participar de todos os eventos religiosos da comunidade.

A Semana Santa é o momento oportuno para comungarmos com nosso próprio eu, nessa busca incansável da remissão dos pecados e do combate sem trégua aos nossos conflitos interiores.

Portanto, seguindo os passos daquele que veio para salvar o mundo, desejo aos leitores do blog Onde Canta a Acauã, principalmente aos da minha terra, uma semana de intensa reflexão, culminando com uma feliz Páscoa.


N.A. – Quero render homenagem aos meus tios Fernando – in memoriam – e Antonieta, pioneiros na encenação da Paixão de Cristo.

domingo, 28 de março de 2010

Sobre Pessoas - 12


Blues para Cortázar

(E para o saxofonista Rodolfo Novaes)

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres



Ele não foi um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Pertencia a outra geração. Adorava mesmo era Duke Ellington, Louis Armstrong, os velhos cantores de blues. E podia ficar horas a fio falando de Thelonious Monk. Isso desde que ouviu no rádio, pela primeira vez, uma estranha música ainda desconhecida nas suas bandas.

Não custou a perceber que o que o encantava nessa música era o fenômeno maravilhoso que constitui a sua essência: a improvisação. Mas, no começo desta história, o garoto tornou-se apenas um chato, aos ouvidos da família. Porque ele só sintonizava o rádio num programa que tocava a tal música. O que dava sempre em briga. Seus pais detestavam aquela coisa de negros. Queriam ouvir mesmo era um tango, música de brancos. Afinal, estavam na Argentina.

O garoto cresceu, foi embora e se tornou um dos escritores mais importantes do mundo. E nunca perdeu a sua paixão pelo jazz. Sorte dos seus leitores. Uma de suas melhores histórias é uma viagem em torno do coração e mente, corpo e alma de um saxofonista drogado – e genial. Que soprava o seu instrumento como se quisesse querendo arrebentar o mundo, a música – toda a música havida antes dele – e a si mesmo.

O conto se chama O perseguidor. Nele, Júlio Cortázar mergulha em águas pouco navegadas até o fundo da esquizofrenia de um artista de gênio, a apostar corrida com a loucura e a morte. Era mais um daqueles negros fantásticos que enchiam de calor as noites de Paris. Só que este tinha toda a pinta de um Charlie Parker, a quem a história é dedicada. Logo, não era apenas mais um.

Tudo isto vem a propósito de um livro publicado no Brasil pela Editora José Olympio, em tradução de Eric Nepomuceno. Trata-se de O fascínio das palavras, que reúne entrevistas de Júlio Cortázar ao uruguaio Omar Prego. Para este leitor, o livro se torna ainda mais fascinante quando ele fala de jazz, da sua relação com a literatura, aquela coisa da escrita automática, de improvisação da escrita, do jazz como o equivalente ao surrealismo nas letras, do swing que pode dar ritmo a uma frase capaz de entrar no leitor por via subliminar, atingindo sua inteligência sem que ele perceba. E mais: um conto tem que chegar ao fim como chega ao fim uma grande improvisação de jazz ou uma sinfonia de Mozart. E assim o contista vencerá o leitor por nocaute.

Por essas e outras é que achei que havia qualquer coisa de O perseguidor no filme Round midnight (Por volta da meia noite), do franco-suíço Bertrand Tavernier. Tanto quanto senti a falta desse conto no filme Bird, de Clint Eastwood, que conta a história de Charlie Parker.

Júlio Cortázar não chegou a vê-los. Ele morreu em 1984. E perdeu dois bons momentos de jazz no cinema. Mas muitos de seus leitores ainda continuam por aqui. Nem que seja para ouvir um blues em sua homenagem.




quinta-feira, 25 de março de 2010

O Foguete e as Lágrimas



De Queima de Judas



Era um cavaleiro solitário. Ideologicamente solitário. Em tempos que vereador prestava juramento de fidelidade, não aos poderes, mas aos mandatários constituídos, ter cisma ideológica era crime contra a moral e aos bons costumes e o pseudocriminoso se tornava um pária, estigmatizado socialmente para todo o sempre.

Dizia-se que ele era um comunista de carteirinha, desgarrado da Coluna Prestes, infiltrado pelos cossacos para perverter a pacata gente da terra, embora ninguém ali, salvo umas duas exceções, soubesse o que era ser comunista, muito menos cossaco, e pior ainda, Coluna Prestes. Não acreditava em santo e comia carne na Semana Santa, justificavam-se, assim, seus detratores. Podia ser muçulmano ou judeu, ter outro preceito religioso, mas ali, naquele lugar, sob a influência do padre, judeu, muçulmano e comunista era tudo uma coisa só: o AntiCristo.

Chamava-se José Jacinto de Melo, primeiro oficial de cartório do distrito de Sátyro Dias, vereador no raiar do novo município, mas não entrou para história pelos seus feitos cartoriais, pela sua falta de Fé ou pela sua atuação política (que não se sabe se foi boa ou ruim). A história, que se conta, reservou um lugar nos seus anais para o Mestre Zezito Fogueteiro, o pirotécnico, reverenciado até hoje, principalmente nas noites de junho, e o povo mais antigo chora sua falta no Sábado de Aleluia.

O judas, em Sábado de Aleluia, de Zezito Fogueteiro, iniciava o espetáculo no cair da tarde, em desfile apoteótico pelas ruas da cidade, montado no jegue Cemirréis, acompanhado de dezenas e dezenas de crianças e adolescentes, que diziam impropérios contra o famigerado traidor de Cristo. Vestido a caráter, de paletó, gravata e chapéu, depois de concluída a volta olímpica, era pendurado no cadafalso (que ficava embaixo do tamarindeiro existente perto do Mercado) à espera de sua sentença, que vinha após a leitura do seu testamento, um primor de irreverência e sátira aos homens notórios da cidade. Ninguém escapava da “herança” do judas, nem mesmo o padre e o prefeito. Milhares de pessoas se aglomeravam em volta de um caminhão, improvisado como palanque, para se divertir com a leitura do testamento, que era escrito em quadras: “Para o meu amigo Prefeito/ como não tenho o que deixar/ Deixo a minha vassoura/ Para a cidade ele limpar”. Eram versos picantes e divertidos, que levavam de uma a duas horas para seu desenredo final.

Feita a leitura do testamento, o povo corria para a calçada da igreja para se deliciar com o espetáculo que viria a seguir. Por questão de segurança, e também de perícia técnica, o judas era aceso à distância, da calçada da igreja, onde havia uma estaca enfiada na terra e dela saiam dois fios de arame até o umbigo do judas. Em cada um dos fios existia um foguete luminoso, que ficava em extremidades opostas; o primeiro rojão a ser aceso era o da igreja, que corria pelo arame até o cadafalso, acendia o outro foguete, que retornava para a igreja, e o pavio que desencadeava a queima dos fogos no corpo do judas. O primeiro foguete era chamado de “gato”; o segundo, de “gato de resposta”. O ir e vir por si só já era um espetáculo multicolorido. Após a chegada do foguete “gato de resposta” à estaca da igreja, se iniciava a queima do judas, com as bombas explodindo em série, soltando fogo e fumaça da barriga, gerando um espetáculo de puro êxtase visual, transformando o Sábado de Aleluia em verdadeira manifestação de congraçamento cristão. Vinha gente de outras cidades assistir ao espetáculo. O povo da roça comparecia em massa, contentando o padre, que no dia seguinte teria os óbolos consideravelmente aumentados.

Apagadas as chamas da glória (ou o fogo justiceiro dos vingadores de Cristo), tudo voltava a ser como antes, no quartel de Abrantes. Zezito Fogueteiro, ou José Jacinto de Melo, tão amado e admirado, retornava à odisséia de ser o proscrito solitário Cavaleiro da Esperança, sem coluna e sem seguidores, porém seus foguetes rasgavam o breu da noite seguinte, em estouro de bombas de “resposta” ou em chuva de lágrimas policromáticas, em anunciação da Ressurreição de Cristo.

- Judas morreu!
- O cavalo é teu!


Crônica extraída do livro "Arraial do Junco: Crônica de sua existência", deste escriba que vos fala.




quarta-feira, 24 de março de 2010

Pelas Ruas Que Andei...





Por Edna Lopes







Conhecer uma cidade requer certo envolvimento, disposição. Confesso, não sem remorso, que Curitiba nunca esteve na minha lista de prioridades. Não dá para explicar, mas quem sabe foi pelo distanciamento com minha realidade imediata ou talvez temesse a falta de calor humano como era descrita. “Curitibanos não falam com estranhos”, diz-se à boca pequena...

Como um encontro de amor que se adia para que aconteça em grande estilo, eis que a oportunidade surge e parece que estive ali a minha vida inteira. Recebeu-me calorosa, não só pelos 29 graus da chegada, mas pela recepção dos amigos, os queridos Luiz Andrioli e sua Lóis e a maravilhosa família da querida Rita Jankowski, sua irmã Ana Silvia, sua mãe Lili e o lindinho do Manjericão que tornaram meus dias e noites na bela cidade, inesquecíveis.

Dia desses desabafei numa crônica a minha indignação e tristeza com o centro da minha cidade, Maceió, a capital das Alagoas. Lembrei o espaço urbano como um espaço que também educa e que, infelizmente, estamos longe de qualquer coisa assim parecida.

Destaco aqui que Curitiba educa. Transpira lições de cultura e Arte, meio ambiente preservado, convívio respeitoso com o tradicional e o moderno. Educa e emociona pela beleza de suas calçadas e praças, pelo colorido de suas flores, dos seus parques e monumentos. Alegria enorme em relembrar o Jardim Botânico, a Universidade Livre do Meio Ambiente e a Ópera de Arame, símbolos de uma cidade que certamente tem problemas, mas encanta.

Educa e impressiona pela simplicidade de seu cotidiano de cidade grande que não perdeu o charme, a leveza, o encanto. Alguns nomes de bairros de Curitiba - Bigorrilho, Juvevê, Bacacheri , só para citar alguns - são gostosos de pronunciar com ou sem sotaque. Um destaque para Santa Felicidade e seus restaurantes e para os ótimos cafés por toda a cidade.

Andar pelas ruas de Curitiba é reconhecer, nos detalhes, a influência das várias culturas que as construíram. São alemães, poloneses, ucranianos, italianos, japoneses, entre outros, que marcam presença na arquitetura, na culinária, no jeito de ser curitibano.

Sem contar que, a cada passo, ficava imaginando se encontraria um certo vampiro... não encontrei, mas fiquei sabendo de certa livraria em que, silencioso, frequenta e recebe cartas de leitores.

É. Conhecer uma cidade requer disposição, envolvimento. Garanto que tive os dois e mais: excelentes companhias, gente boa e amorosa que abriu o sorriso e o coração para me acolher, para me mostrar pedacinhos e contar histórias dessa cidade que só quem vive e ama sabe. E eu agradeço cada emoção, cada alegria tatuada na alma pelas ruas que andei.

E, pra variar, selecionei umas fotos. Lugares especiais, pessoas mais que especiais. O que meu olhar viu e se encantou, o seu pode ver também. Obrigada a minha linda amiga Rita pela parceria nas fotos, por generosamente partilhar a casa, os sonhos, a vida. Meu convívio com a família de Luiz e a sua me fez relembrar, emocionada, uma frase atribuída a Vinícius de Moraes : “A gente não faz amigos; reconhece-os.”



terça-feira, 23 de março de 2010

O fim de todos os milagres

Por Cineas Santos




Tenho um amigo estúrdio, especialista em engendrar teses de difícil comprovação. Uma delas: “A morte é má, invejosa e burra: leva primeiro os melhores”. Como não tenho comércio com a morte, falta-me autoridade para contestá-lo. De qualquer forma, passei a prestar mais atenção nas tiradas do cidadão depois que a indesejada das gentes, no mesmo dia, de uma foiçada, subtraiu-me dona Purcina e Paredão, duas das pessoas que mais amei na vida.Eu teria acompanhado os dois , “sem saudades, pena ou ira”, como queria Faustino no poema “Romance”. Mas a vida tem o seu próprio curso como um rio sinuoso que desemboca no desconhecido.

Na semana passada, a iniludível contribuiu para dar alguma credibilidade à teoria do meu amigo maluco: num curto espaço de tempo, privou-nos das presenças luminosas de Glauco Vilas Boas e Totó Barbosa, dois homens bons. Do primeiro já se disse quase tudo: jornalista, músico, compositor e cartunista, criou uma galeria de personagens que, de tão neuróticos e desajustados, parecem reais. Geraldão, Dona Marta, Zé do Apocalipse, Edmar Bregman, Faquinha, Cacique Jaraguá, para citar apenas os mais conhecidos, fazem parte do nosso dia a dia. Sem eles, o Brasil ficou mais pobre e mais triste. Glauco foi sacado da vida, aos 53 anos de idade, vítima de um alucinado que, dentro de uns cinco anos, no máximo, estará, outra vez, nas ruas, pronto para barbarizar.

Melhor sorte teve Antônio Barbosa de Miranda, o nosso Totó Barbosa, que viveu intensamente 90 anos e saiu de cena suavemente, cercado de filhos e amigos. Fotógrafo, político e cantor, Totó foi acima de tudo um boêmio alegre, um seresteiro que enchia de beleza as noites de Teresina no tempo em que a cidade não precisava de “toque de recolher” para dormir sossegada. Gostava de Dick Farney, de Orlando Silva, de Sílvio Caldas, de Nelson Gonçalves, ou seja, gostava de quem efetivamente cantava. Sem ele, Teresina perde muito do seu encanto provinciano.

Tive a felicidade de conhecer os dois: o Glauco, a quem só vi uma vez, me pareceu um puro de espírito, um homem que acreditava na redenção da espécie humana. Não por acaso, fundou a igreja Céu de Maria, ligada ao Santo Daime. Quanto ao Totó, aprendi a admirá-lo desde os tempos heróicos da velha Difusora. Vivia sempre cercado de amigos, contando histórias, bebendo, gozando a vida. Seu maior legado: uma família honrada, bonita, na qual se destaca Luíza Miranda, uma das mais belas vozes da MPB. Coube a ela, com serenidade e competência, dar um toque de beleza ao sepultamento do velho no São José, cantando “A noite do meu bem” e “Manhãs de Carnaval”, as canções preferidas do Totó. Emocionados, os amigos aplaudiram. Despedida digna de um seresteiro.

Na hora, lembrei-me de que, certa feita, resolvemos homenageá-lo na Oficina da Palavra. Totó, feliz, me chamou ao palco e dedicou-me uma canção que falava de cabelos grisalhos e o fez acariciando-me a carapinha branca, num gesto paternal e afetuoso. Glauco e Totó personificavam a palavra beleza. Permitam-me, portanto, usar o velho clichê: a vida perdeu duas belas figuras humanas. Talvez seja oportuno repetir Bandeira: “Tudo é milagre. / Tudo, menos a morte. / Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres”.




segunda-feira, 22 de março de 2010

III Encontro Nacional dos Conselhos de Educação, rumo à CONAE 2010

Por Edna Lopes

De III Encontro Nacional dos Conselhos de Educação



"A esperança me chama
e eu salto a bordo como se fosse a primeira viagem.
Se não conheço os mapas, escolho o imprevisto:
qualquer sinal é um bom presságio.
Seja como for, eu vou, pois quase sempre acredito:
ando de olhos fechados feito criança brincando de cega.
Mais de uma vez saio ferida, ou quase afogada,
mas não desisto.
A dor eventual é o preço da vida:
passagem, seguro e pedágio."
Ônus- Lya Luft

A linda Curitiba sediou a primeira reunião de 2010 da coordenação nacional da UNCME e o III Encontro Nacional de Conselhos de Educação. Daqui a alguns dias acontecerá a I Conferencia Nacional da Educação (CONAE) e muitas questões que dizem respeito a este segmento precisavam de encaminhamentos. O regime de colaboração, uma de nossas bandeiras, dá seus primeiros passos em iniciativas que refletem a preocupação do Conselho Nacional, dos Conselhos Estaduais e das representações dos Conselhos Municipais com os destinos da educação do país.

Todos e todas presentes ao encontro, delegados e delegadas para a CONAE voltam com uma tarefa a cumprir: se preparar para os exaustivos dias da CONAE conscientes das propostas que defenderemos certos de que uma Educação com qualidade social não se constrói sem conflitos. Durante o encontro foram escolhidos entre os delegados dos conselhos estaduais e municipais para que, durante a conferencia, nas plenárias de eixo, pudessem atuar como articuladores. Coube-me representar a UNCME no eixo VI (Eixo VI - Justiça Social, Educação e Trabalho: Inclusão, Diversidade e Igualdade), visto que, por afinidade e atuação, transitei neste eixo em todas as etapas preparatórias da conferência. Que prevaleça o bom senso e que os interesses e direitos da população sejam preservados e atendidos.

Como coordenadora estadual da UNCME-AL, coube-me também a honrosa responsabilidade de representar a UNCME Nacional para o exercício 2010 na CNAEJA - Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos- do MEC / SECAD. Espero que a minha atuação no Fórum Alagoano de Educação de Jovens e Adultos seja a credencial para um bom trabalho na comissão.

Disponibilizo o pacto firmado entre as 03 representações de conselhos no II encontro Nacional em Brasília, novembro de 2009 e ratificado neste III encontro. Pacto este ratificado também como compromisso dos conselheiros delegados conselheiros à CONAE.

OS DEZ MAIORES DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NACIONAL

*Universalizar o atendimento público, gratuito, obrigatório e de qualidade na educação infantil, no ensino fundamental de nove anos e no ensino médio;

*Implantar o sistema nacional articulado de educação, integrando, por meio da gestão democrática, os planos de educação dos diversos entes federados e das instituições de ensino, em regime de colaboração entre a união dos estados, o distrito federal e os municípios, regulamentando o artigo 211 da constituição;

*Extinguir o analfabetismo, inclusive o analfabetismo funcional, do cenário nacional;

*Estabelecer padrões de qualidade para cada nível, etapa e modalidade da educação, com definição dos componentes necessários á qualidade do ensino, delineando o custo-aluno-qualidade como parâmetro para o seu financiamento;

*Democratizar e expandir a oferta de Educação Superior, sobretudo da educação pública, sem descuidar dos parâmetros de qualidade acadêmica;

*Assegurar a Educação Profissional de modo a atender as demandas sociais e produtivas locais, regionais e nacionais, em consonância com o desenvolvimento sustentável e solidário;

*Garantir oportunidades, respeito e atenção educacional as demandas específicas de: estudantes com deficiência, jovens e adultos defasados na relação idade-escolaridade, indígenas, afro-descendentes, quilombolas e povos do campo;

*Implantar a escola de tempo integral na educação básica com projetos políticos pedagógicos que melhorem a prática educativa, com reflexos na qualidade da aprendizagem e da convivência social;
*Ampliar o investimento em educação pública em relação ao PIB, de forma a atingir 10% do PIB até 2014;

*Valorizar os profissionais da educação, garantindo formação inicial, preferentemente presencial, e formação continuada, além de salário e carreira compatíveis com as condições necessários a garantia do efetivo exercício do direito humano á educação.

domingo, 21 de março de 2010

A CONCILIADORA




A assembléia era dinamite prestes a explodir: ânimos acirrados, punhos cerrados, bandeiras vermelhas desfraldadas e muita palavra de ordem. Todo mundo falava; ninguém escutava. Parecia a executiva do PT em deliberação.

Não era. Tratava-se de uma simples reunião de pais e mestres, cuja monotonia fora quebrada pela mãe de um aluno que acusava uma professora de ter destratado seu filho. Destratado não: o-fen-di-do! Simplesmente chamou o seu pimpolho de burro. Burro era ela, a mãe dela, e toda sua família. Se tivesse filhos, eram burros também; se não tivesse, seriam quando nascessem.

A turma do deixa disso tentava apaziguar, enquanto outra turma queria ver o circo pegar fogo. A Secretaria Municipal de Educação enviou um dos seus melhores técnicos pedagógicos, especialista em apaziguar ânimos aguerridos, mas ofensor e ofendido não queriam acordo, era guerra declarada, salvasse-se quem pudesse. Daquela reunião teria que sair um cadáver, se possível, dois. Guerra é guerra e só ganha quem manda mais torpedo:

– O que você me diz de uma professora que chega na cantina da escola destampando as panelas, hein? – indagou a mãe do aluno ofendido.

– É uma mal-educada! Muito mal-educada! – respondeu a técnica, jogando mais lenha na fogueira, mais gasolina no incêndio, pólvora no calor da explosão – Aliás, Rui Barbosa quando foi morar na Inglaterra, mandou fazer uma placa e colocou na sua porta, com os seguintes dizeres em letras garrafais: “ENSINA-SE INGLÊS AOS INGLESES”. Isso em Inglês, claro, pois lá na Inglaterra ninguém fala Português.

– Rui Barbosa escreveu isso? – perguntou a mãe aguerrida, duvidando que o seu vizinho, Rui Barbosa, tivesse escrito tal placa. Aquilo era um vagabundo.

– Claro! E se não escreveu, devia ter escrito!

A furibunda mãe se acalmou. Não sabia que o inútil do seu vizinho, que vivia lhe paquerando, falava Inglês e, principalmente, havia morado na Inglaterra. Mas se a professora afirmava, então era verdade. Quem poderia saber mais das coisas do que a professora? Rui Barbosa, aquele cachaceiro imprestável, que se cuidasse.

Assim, sem falar coisa com coisa, a conciliadora celebrou a paz entre as beligerantes.