sábado, 16 de outubro de 2010

Flores em vida - Luís Pimentel









Sei que estou no último degrau da vida, meu amor”
Nelson Cavaquinho


     A noite ainda discutia se ia ou não embora, mas os negociantes de frutas, legumes, peixes, frangos e bugigangas da feira da Glória já armavam as barracas, entre risadas e assovios, cantos de galo, restinho de neblina virando poeira em direção ao aterro. O homem de cabeça branca e violão no ombro escorregou pelas cordilheiras de paralelepípedos da Rua Hermenegildo de Barros e se deixou levar ladeira abaixo pela Cândido Mendes, até desembocar na Augusto Severo. Encostou o violão no poste e pegou uma talhada de melancia na barraca de Genaro, amigo desde a infância na Praça da Bandeira.
     – Melancia à essa hora, meu velho?
     – Combate a ressaca, Genaro.
     – Sai dessa vida.
     – Já tentei. Essa vida é que não quer sair de mim.
     Os cabelos branquinhos, poeira da idade, estão meio desarrumados. Passa a mão e observa que também estão bastante engordurados, purpurinas da madrugada. Lembra de uma criatura a quem amou, que o chamava de cabelos de prata. Fartos e ondulados, reluziam diante do espelho, na luz esfumaçada do cabaré de bandidos do Largo do Estácio. Mas nem tudo que reluz é ouro e a criatura o trocou um dia por um moço requintado, de bigodinho desenhado e cabelos pretos, feito as asas da graúna, tratados na brilhantina Glostora. 
     – Me senti um palhaço, Genaro.
     Se já não bebesse bastante, teria começado a beber naquele momento. Doses de angústia depois, fez um samba que dizia assim:

"Sei que é doloroso um palhaço
Se afastar do palco por alguém

Volta, que a platéia te reclama

Sei que choras, palhaço
Por alguém que não te ama...”

     – Fiz? Fiz. E esse eu sei que não vendi a filho da puta nenhum.
     A vendedora de flores também é amiga. Ela escolhe uma rosa, das mais rosas e mais bonitas, corta o talo e enfia no bolso do compositor. Troca de sorrisos e carinhos, vida que segue, apruma novamente o passo e pega o caminho que não é de casa.
     Ia esquecendo o violão dormindo no poste, mas a florista o chama. Guarda a rosa na barriga do instrumento e toma o rumo da Lapa. Pouco depois está de prosa com o jovem jornalista metido a escritor que bebericava a última no pé sujo da Riachuelo, no fim de uma noitada de fechamento do jornal e das boates da Men de Sá. 
     – Eu era muito jovem ainda, assim que nem você. Não tinha respeito pela vida. Nem tinha medo da morte. Foi antes de virar o disco, de virar a mesa, de virar polícia. Fui o pior soldado da história da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Comecei a vida na farda no Batalhão de Cavalaria da PM, onde fiquei sete anos. Metade em cima do cavalo, metade na prisão. Abandonava a diligência e o animal, picava a mula para o Morro de Mangueira. Jogar conversa fora e cerveja para dentro com Cartola, Carlos Cachaça, Geraldo Pereira, Zé Com Fome, Padeirinho. Para eles, eu fiz um samba assim:

“Quando eu piso em folhas secas
Caídas de uma mangueira

Penso na minha escola

E nos poetas da minha Estação Primeira
Nem sei quantas vezes subi o morro cantando...”

     Fui o hóspede mais assíduo do xadrez do quartel da Rua Evaristo da Veiga. Mas era bom pegar cana, você sabia? Se não fosse o xadrez do batalhão, eu não teria feito muito samba de sucesso. Às vezes ficava um mês confinado. Então aproveitava a tranqüilidade para compor.

– Começou a vida?

 – Maneira de dizer. Na verdade, antes de encarar o batalhão eu já havia enfrentado outros batentes para ajudar no orçamento da família. Trabalhei em fábrica de tecidos, em  Deodoro, na função de ajudante de tirador de resíduos, e como auxiliar de eletricista no centro da cidade. Meu pai era tocador de tuba da Banda da PM. Que coisa, hein?! Tocador de tuba.

     – Ainda existe tocador de tuba?

     – Não existe mais tuba. Nem tocador.

     A prostituta de decote farto esparrama os peitos em seu ombro e beija sua testa, os lábios cheios de batom aplicado de qualquer jeito:

     – Paga um conhaque, índio?

     Nem espera pela resposta, sabe qual é. Pede o conhaque no balcão, entorna de uma vez e volta para a calçada.

– Conhece a moça?

– A moça me conhece.

Nem pegou o violão, apenas sussurrou, marcando com as pontas dos dedos na mesa:


“Não faça vontade a essa mulher
Não deixe ela fazer o que quer
Deve-se ter amizade
Mas não se deve dar liberdade...”


     – Que história é essa de índio?

     – Minha mãe era paraguaia, índia guarani. Olha os meus traços. Ainda consegue enxergar?  Índia guerreira, que areou muita panela nas cozinhas dos outros, como empregada doméstica em casas de família. Acho que está na hora de ir dormir.

     – Vai, poeta.

     – Sou cantador. Poeta é o Guilherme.

     – Então canta uma das suas com ele. Pode ser Quando eu me Chamar Saudade, aquela que diz “me dê a flores em vida”?

     – Só se você prometer que não pede mais nenhuma.

     – Prometo. Mas dessa vez, com o violão.

     Além dos bares, sapatarias, papelarias e lanchonetes começavam a abrir as portas. A mesa já recebera outros notívagos e alguns madrugadores (diúvagos?) para ouvir o índio:

 

“Sei que amanhã quando eu morrer

Os meus amigos vão dizer

Que eu tinha um bom coração

Alguns até irão chorar  ...”


     Para, enjoado e cansado. Toma ar, toma mais um gole e canta mais uns versos:

“Por isso é que eu penso assim:

Se alguém quiser fazer por mim

Que faça agora
Me dê as flores em vida...”

     – Me dê as flores em vida. Essa é uma obra-prima.

      – Bobagem. Obra-prima é aquela morena ali.
     Pouco depois desce a 21 de Abril, de braços dados com a morena obra-prima, na direção da Central do Brasil.
     Mas o caminho é longo, e pode ser feito via Praça Tiradentes. Curtos são os degraus da vida. Outros bares, novos amigos, tantas lembranças. Os trocados mastigados no bolso da calça, junto com o maço de cigarros, estão guardados para o ônibus que vai finalizar o trajeto até em casa, quando as pernas pedirem clemência.
     É quase meio-dia e alguém sugere uma rabada, com polenta e agrião, numa pensão da Rua Barão de São Félix. Dessas que permitem violão e cantoria nas mesas. A obra-prima das madrugadas na Rua Riachuelo carrega o instrumento, com a promessa de um amor vespertino no hotelzinho da Rua do Livramento. Ela está sorridente. Ele continua hospedando a tristeza que parece não ter cura. Recorre aos versos do parceiro Guilherme, para casar com sua melodia cheia de flechas sorrateiras:

Tire o seu sorriso do caminho

Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca a flor
Eu sou errei quando juntei minha alma à sua...”

     Amigo tem mania de pedir música, por mais que o artista esteja indisposto. Começa o falatório: “Canta aquela que diz vou abrir a porta para você só porque é dia das mães”. “Não, não, aquela que fala fui bom pra ela, dei meu nome a ela sem saber que estava sendo traído”. A obra-prima tem um bom humor:
     – Vocês só gostam de música de corno?
     O índio velho tem a visão nublada e a memória bastante combalida. Mas no meio da noite ainda lembrava que o resto da tarde foi nos braços dela. Só não lembrava quando nem como chegou em casa, o que não tinha muita importância. A mulher de fé e paciência, companheira das horas difíceis, fez beicinho por conta do longo sumiço. Mas mesmo assim, ao sair para trabalhar, deixou café coado sobre o fogão e um prato de carne assada com batatas dentro do forno. Ao retornar, no fim do dia, o encontrou ainda na cama, estirado, ao lado do violão. A flor atirada sobre o travesseiro, também sem vida. 
     Botou no velho toca disco um 78 rotações, meio arranhado, com um samba-canção dos mais antigos:

“Quando eu morrer, deixarei minha fama

Deixarei no mundo quem me ama
As lágrimas que rolam em meu rosto
Não sabem dizer qual é o meu desgosto...”

     Que diabo de desgosto era esse? A companheira nunca soube. Pena que ele não estivesse mais ali, talvez pudesse contar para ela.


Dedicado à memória de Nelson Antônio da Silva, o Nelson Cavaquinho (1910-1986). As canções citadas são todas de sua autoria.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O voto estético - Cineas Santos

De Vote ni mim


Irmãos e irmãzinhas, confesso - um tantinho envergonhado - que não tenho tido a necessária saúde cívica para acompanhar o horário eleitoral gratuito na TV. Eu até tento, mas são tantas as bocas dizendo as mesmas obviedades que parecem apenas vozes à procura de uma ideia. É certo que há muitos jovens, mas já parecem contaminados com os vírus da mesmice e dos clichês mastigados. Alguns apresentam como “plataforma política” nada mais que o fato de serem jovens como se juventude fosse uma conquista e não uma contingência. Pode-se argumentar, em defesa deles, que o tempo na TV é exíguo e os candidatos muitos. É verdade: dependendo da legenda, alguns mal conseguem declinar o próprio nome. Quando tentam dizer alguma coisa, comportam-se como louco comendo milho assado: mastigam nas palavras e expelem perdigotos. Um martírio.

Mas há coisas muito estranhas acontecendo. Dia desses, estava lendo um jornal quando tive a impressão de ter visto um fantasma na TV. Pensei comigo: devo ter surtado. Não é possível! Mas a figura do fantasma teimava em permanecer em minha mente. No dia seguinte, resolvi conferir. Assisti ao programa inteiro e descobri, aliviado, que não estava enlouquecendo. Lá pelas tantas, o morto apareceu e, com a voz típica dos fantasmas, fez um elogio patético a um candidato vivo, vivíssimo! Meu Deus, a quantas chegamos! À cata de votos, os políticos são capazes de tudo. Bons tempos aqueles em que um candidato afirmava que, para alcançar a vitória, seu adversário seria capaz de “pisar no pescoço da mãe”. O adversário retrucava: “Da tua”!

O tempo passa, o tempo voa, como naquela propaganda de um banco que faliu, e os vícios e as práticas antigas se repetem. Este ano, pelo país afora, há uma profusão de “ex-celebridades” tentando uma boquinha no Congresso Nacional. Há opções para todos os gostos: de boxeadores nocauteados pelo tempo a humoristas desengraçados, sem falar, naturalmente, nas mocinhas que, à falta de marido, querem ser sustentadas pelo povo brasileiro. Só de “ mulher-fruta” temos um pomar inteiro. Uma delas, a Mulher Chuchu, tem o melhor slogan da temporada: “ dá o ano inteiro”. Genial.

Entre nós, o fato novo é a presença marcante de mulheres disputando vagas na Assembleia Legislativa do Piauí. A melhor parte: mulheres bonitas, muito bonitas. Como o voto ideológico está fora de moda e o voto útil tornou-se uma excrescência, vou fazer minha opção pelo voto estético. Votarei na mais bonita, mesmo correndo o risco de encontrá-la na rua e não a reconhecer. Afinal de contas, não há beleza que não possa ser melhorada com o recurso do photoshop. Pago pra ver.



sábado, 9 de outubro de 2010

Por final, dancemos tango

De Tango

POR FINAL, DANCEMOS TANGO


Dona Maria lava a roupa todo dia. Além da rima, é uma agonia. Não foi ela a musa de Luiz Melodia, pois dispensa a quebrada da soleira. Arranja-se no fundo do quintal, entre a sombra preguiçosa da goiabeira, onde está a lavanderia de cimento, e a cozinha, onde uma vitrola em cima da mesa cantarola em hispano. Faz dueto, desafinado e incompreensível. A Língua de Cervantes não era o seu forte.

– Tango!
– Não. Júlio Iglesias – responde contrariada com a brusca interrupção.
– Tango!
– Não. Júlio Iglesias, já disse! (êta argentino burro! Além de gago, burro!) – concluiu em seus pensamentos.
– Tan golpeando la puerta! – gritou o argentino, fazendo um esforço incomum para se comunicar sem tropeçar nas palavras.
– Ah! bão! Por que não disse logo?! - lembrou-se da gagueira do argentino – Deixa pra lá!

Enquanto se dirigia à porta, dona Maria fazia suas conjecturações. Existe coisa mais incompreensível do que conversa de argentino gago? Existe. Uma assembléia internacional de gagos. Em Buenos Ayres. Será que existe assembléia de gagos? Deve existir. Hoje há fóruns, palestras, simpósios, encontros de tudo o que é classe, categoria, clube, ong, partido político e o escambau. Quem não se lembra do recente encontro dos surdos-mudos no Planalto Central? Nem no panelaço reprimido pelo general Nini Mussolini, às vésperas da votação do Diretas-Já, se viu tanto barulho. Deu nos jornais que o Presidente da República, orador oficial desse evento dos filhos do silêncio, não ouvindo nenhuma vaia da platéia, se empolgou, fez um discurso inflamado e, no final, foi calorosamente aplaudido. De pé.

Finalmente, a porta. Do lado de fora, sua vizinha, Noélia, a fofoqueira do bairro. Sabia da vida de todo mudo. Língua mais ferina ainda estava para existir. Quando morresse o corpo iria numa caixa de fósforo e a língua numa carreta. Que queria?

– Maria, me empresta meia xícara de café!
– Você quer meia xícara cheia ou meia xícara vazia?
– Sabe que eu não tinha pensado nisso. Por via das dúvidas, me dê meia xícara cheia.

Há certas coisas que não podem ser meio nem meia. Uma xícara poderia conter a metade de açúcar, de sal ou de café, a depender da precisão do vizinho, que nunca diz “me dê”, mas “me empreste”, mesmo sabendo que jamais vai devolver. Mas como se admitir ser “meio” corno? Isso não existe. Vão dizer que foi coisa que botaram na cabeça, mal-entendido, fofoca da vizinhança e coisas que tais. Mas a verdade é única e simples: ninguém pode ser meio corno, do mesmo jeito que não pode ser meio bicha, meio tarado, meio morto de fome ou meio morto empanturrado. Ou estamos com fome, ou estamos saciados. 

Às vezes dizemos inverdades e cometemos injustiças quando afirmamos que “os políticos são meio desonestos”. Não. Não são. São desonestos por completo, porque essas coisas a gente é ou não é, não pode ser apenas a metade. É como se admitir que existe meio-virgem. 
Dona Maria é invocada com esse negócio de “meio”, “meia”, o numeral fracionário, a metade. É uma incongruência, um meio para a embromação, principalmente quando se diz que “fulano tá meio ruim”. Fulano tá lá, pé na cova, e ficam arranjando eufemismos.

Essa bronca de dona Maria não é de agora. Vem dos tempos de cabaré, quando dançava à meia-luz dos spots coloridos, embaçada de fumaça de cigarro, no compasso de ritmos eróticos. Era dançarina e faturava relativamente bem, sem ter que ralar a periquita para sobreviver. Trepava com alguns clientes, mas a ela cabia o direito de escolher com quem se acasalar. E cobrava alto.

Não entendia esse negócio de meia-luz. Se a luz está acesa, é claro; se está apagada, é escuro; se fica no meio-termo, é penumbra. Onde está a meia-luz? Por que não “meia-escuridão”?

Arranjou confusão por causa de Meio Quilo, o anão que fazia o serviço de quarto no puteiro. Não concordava com a cáften quando chamava o anão de “Meia Foda”. Não por preconizar o preconceito, mas por conter uma sentença falsa: não existe meia foda. Trepa-se por completo ou fica-se na saudade. A não ser quando se é pego de surpresa por um corno brabo e a retirada estratégica é obrigatória. Aí é interrupção de coito, o que não classifica como meio-coito. No mais, é paz e amor e pau nas coxas.

A partir dessas ponderações realísticas, o anão perdeu o famoso epíteto de Meia Foda e passou a ser chamado carinhosamente de Tamborete de Puta.

Foi com as reminiscências cabarenianas que dona Maria retornou para a sala, onde Noélia havia se aboletado. Em vez de meia xícara cheia de café, levava a xícara vazando pelo ladrão. Noélia agradeceu e, antes de sair por completo, virou-se e perguntou:

– Maria, como vai aquela sua meia-irmã?
– Meia-irmã?! Você já viu meio-pai? Você conhece meia-mãe? Aquele garoto amarelo que lhe chama de mãe por um acaso é um seu meio-filho da puta? Então vá pra meia-puta que te pariu!

Bateu a porta com força, sem esperar a réplica da vizinha. Deitou-se no sofá para esfriar a cabeça. Esse negócio de meio ou meia enchia a sua paciência.

Na cozinha, o toca CD injetou no laser outro CD. Mecanicamente Julio Iglesias cedeu lugar ao tango, das lembranças lascivas de dona Maria. Lentamente o ambiente foi preenchido pelo som voluptuoso e forte do bandoneón, acompanhado de Carlos Lombardi, com sua voz calorosa e firme, interpretando Donato e Lenz em apoteótica noite de cabaré argentino: A Media Luz.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O matador de aluguel - Luís Pimentel

De matador de aluguel



Caruá, para quem não conhece, fica em região incerta e não sabida no sertão nordestino. Avessa a badalações, divulgação ou febres turísticas, a população local me pede que jamais dê qualquer pista que identifique a cidade no mapa; até porque, Caruá não está no mapa.

Eis que notório homem de terras caruarenses resolveu eliminar um desafeto, com quem vivia às turras por conta de pendengas rurais. Contratou um matador de aluguel, que atendia pelo sugestivo nome de Trabuco, e encomendou o serviço. Com uma ressalva das mais curiosas:

– Não dê conversa pro Fulano, pois ele é muito camaradeiro. Monte a arapuca, faça o serviço e venha embora, pois se cair na besteira de prosear, você desiste de cumprir a tarefa. Leve metade do dinheiro, depois do trabalho feito venha buscar o restante.

O matador partiu e o fazendeiro foi acender uma vela pela alma do futuro defunto. Depois de aguardar o tempo regulamentar combinado neste tipo de empreitada – uma semana – pelo retorno de Trabuco, que viria trazer a prova do crime e receber a outra parte do pagamento, o fazendeiro resolveu dar uma incerta no local combinado para a tocaia, à procura de algum vestígio do serviço: o corpo, sinais de luta, um cartucho de espingarda, o que fosse.

Lembram do aviso? Não dê conversa pro Fulano, pois ele é muito camaradeiro? Não deu outra. Debaixo de um pé de umbu, curtindo a sombra em volta de uma garrafa de pinga, cigarrinho de palha entre os dedos, estavam o ex-quase-futuro morto e aquele que deveria mandá-lo desta para uma melhor. A prosa parecia das mais animadas, o camaradeiro entregue à sua atividade principal, o exercício da camaradagem, e o (im)provável matador às gargalhadas, embevecido com as histórias deliciosas que ouvia.

Ao ver o contratante, pasmo e incrédulo sobre o cavalo, o contratado pegou o maço recebido com adiantamento e o devolveu, com esta pérola:

– Tome o seu dinheiro de volta, coronel. Um homem alegre desse não se mata!



sábado, 2 de outubro de 2010

O reconhecível cheiro da alegria - Cineas Santos

De English Lavender


Em mais de uma oportunidade, já afirmei que pesco as minhas alegrias em lagoa rasa com anzol de linha curta. Assim tem sido ao longo da existência. Hoje, gostaria de dividir com os meus três leitores uma pequena/grande alegria: recobrei o meu cheiro, ou melhor, o meu cheiro está de volta. Não se assustem, irmãos, eu explico. Menino, vivendo em São Raimundo Nonato, fui incumbido por um cidadão chamado Barbosa de ir buscar, na república onde ele dormia, um exemplar da revista O Cruzeiro. Na verdade, era um quartinho ordinário, com uma rede, uma mesinha e um cabide com peças de roupa. Ao lado da revista, vi uma caixinha branca com listras amarelas e cinza. No rótulo, a expressão English Lavender, intraduzível para quem mal gaguejava algumas palavras. Movido pela curiosidade - julguei tratar-se de remédio - retirei o frasco da caixa e destampei-o. A fragrância impregnou-me a alma para sempre. Naquela altura da existência, eu já havia preparado uma lista com produtos que teria de comprar quando crescesse: uma sanfona Scandalli, uma bicicleta Monark, um relógio Lanco, um rádio Philco e uma calça rancheira. Acrescentei um frasco daquele perfume suave e irresistível. Munido de tais apetrechos, estaria preparado para conquistar Cleonice, por quem errava meu coração...

Já se disse que o homem é um animal que prepara listas para pôr alguma ordem no caos e limitar seus desejos. Daquela primeira lista, só perfume efetivamente tornou-se realidade. Quando completei 15 anos de idade, comprei o primeiro frasco de English Lavender que, desde então, passou a ser o meu cheiro. São 48 anos da mais absolutamente fidelidade. Nunca nem sequer pensei em substituí-lo por outro.

Ocorre que, por algum tempo, o produto foi retirado de circulação. Confesso que bateu o maior desespero. Como enfrentar o mundo sem o meu cheiro? À época, cheguei a consultar um causídico sobre a possibilidade de processar a Atkinsons por danos à minha alma. Como viciar um cristão com um produto e retirá-lo de circulação sem aviso prévio? Imaginem a Coca-Cola fora do mercado? Seria uma grita capaz de despertar a ira do Senhor. O certo é que, sem ter a quem recorrer, escrevi uma crônica – O Inconfundível Cheiro da Velhice – na qual, pateticamente, implorava: meus amigos e minhas amigas, se, em suas andanças por aí, encontrarem o meu cheiro, comprem (é baratinho) para mim e me deem de presente no dia do professor, dos pais, dos desesperados... É com esse cheiro e vestido de azul que pretendo encarar a eternidade. Luíza Miranda foi a única a atender às minhas súplicas: deu-me um exemplar encontrado no próprio guarda-roupa. Passei a usá-lo parcimoniosamente, como quem usa água benta...

Eis que, de repente, a English Lavender, com roupagem nova, mas conservando a mesma fragrância, voltou às prateleiras dos supermercados, armarinhos e farmácias. Para evitar sobressaltos, estoquei o bastante para uns vinte anos. Amigas de meu coração, eis-me aqui, vestido e azul e exalando o reconhecível cheiro da alegria. Vinde e compartilhai.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Dos factoides aos fatos

De Comprador de almas

O anedotário político conta que, passada a eleição numa cidadezinha do interior, o coronel político local dirigiu-se à zona rural para devolver os títulos eleitorais aos seus respectivos donos. Um dos eleitores, ao ter o título de volta, perguntou:

- Coronel, o senhor pode nos dizer em quem nós votamos?
- Ora, pois! Como vou dizer?! Vocês não sabem que o voto é secreto?!

À primeira vista, isso parece coisa do passado, mas, à luz do século 21, tudo isso acontece, escancaradamente, por todo o Brasil, de forma mais ladina e mais safada. E não só com a gente simples do interior, mas com os doutos citadinos e pseudos formadores de opinião que enchem nossa caixa de correio eletrônico com montagens mal feitas e notícias inventadas como se tudo verdadeiro fosse.

Ainda não sei qual o mais daninho: a compra e venda do voto em si, ou essas mensagens apócrifas que circulam na Net, encaminhadas por suposta gente do bem, que deveria, no mínimo, pesquisar a veracidade da fonte antes de passar adiante como fato consumado. A mais aberrante que vi, até agora, é uma que me encaminharam, recentemente, afirmando que Dilma havia feito um pacto com Satanás para ganhar a eleição e, um ano depois, morreria de câncer, entregando a presidência para seu vice, Michel Temer, “este sim, o verdadeiro filho do Capeta”, dizia a mensagem.

Seria cômico se não houvesse a maledicência por trás da falsa notícia. No oba-oba, os mais fracos de espírito acreditam que realmente isso aconteceu e que Dilma colocou sua alma à venda a troco de um simples ano de governo. É o desespero dos neonazistas na tentativa de se reverter a iminente derrota de Serra, um candidato sem brilho, sem proposta, e repleto de promessas eleitoreiras. Esse negócio de prometer dar aumento irreal para o salário mínimo e aposentados beira à irresponsabilidade e loucura. Como o brasileiro tem memória curta, vale a pena relembrar: no governo FHC foi a maior briga no Congresso Nacional para se elevar o salário mínimo a 70 dólares. E os trabalhadores sofreram oito anos sem aumento de salário. O atual governador de Alagoas, do partido de José Serra, vai deixar o governo sem dar um centavo de aumento ao funcionalismo público. São quatro anos de arrocho salarial e agora o representante maior do PSDB vem com promessas mirabolantes, achando que o povo é idiota.

No mês de junho as enchentes devastaram uma parte de Alagoas, matando dezenas de pessoas e desabrigando milhares. Santana do Mundaú, a cidade mais atingida, e ainda praticamente destruída, ressurgiu dos escombros para entrar no noticiário policial. O prefeito de lá, e os respectivos secretários, foram afastados do cargo por gastar quase um milhão de reais em campanha eleitoral para um candidato da coligação peessedebista. Como se não bastasse, a polícia apreendeu toneladas de doações guardadas na casa do alcaide, que só distribuía aos necessitados mediante o compromisso do voto nos candidatos do mesmo. Alguns secretários, verdadeiros ladrões, encontram-se foragidos, pois também fora decretada a prisão dos mesmos.

No mês de agosto esse mesmo prefeito apareceu na imprensa local reclamando da rigidez na aplicação das verbas federais na reconstrução das cidades atingidas pela catástrofe, que, em vez do dinheiro parar nas contas das prefeituras, fora criada uma conta sob a responsabilidade do governo estadual, cujo uso deveria passar pelo crivo do Ministério Público e Tribunal de Justiça. Dentre outras coisas, ele, o prefeito, disse: “O Governo Federal está tratando os prefeitos como bandidos.”

Diante dos últimos fatos, eis a constatação:

- E não é que Lula tinha razão!


segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Plantio - Luís Pimentel



Um poema de Luís Pimentel com cheiro de infância no arraial do Junco.

De Semeando a terra

Plantio

É assim que se faz:
com uma enxada pequena
abre-se a cova, também pequena,
acumulando ao seu lado a terra retirada.
De um saco de pano pendurado na barriga
retiramos a semente - de milho ou de feijão -
e a jogamos dentro da cova.
Com o pé empurramos a terra,
que vai cobrir, aninhar, esquentar a semente
até que ela fomente, se inflame, renasça um dia
- como a cada dia em que renascemos.
O trabalho pode ser desempenhado a dois.
E é bem mais interessante quando feito
por um menino e sua avó.
Um menino, uma avó, uma enxada pequena,
uma sacola de pano cheia de sementes
- quase sempre de milho ou de feijão -
pendurado no peito murcho da avó.
As mãos da avó na enxada,
esburacando a terra com tanto carinho
que acho até que a terra nem sentia.
O pé miúdo empurrando a terra
e ordenando ao menino que fizesse sua parte.

Que era jogar com o pé a terra dentro da cova,
cobrindo a semente de milho ou de feijão
ali despejada pela avó,
completando o ritual que - como saber? quem saberia? -
ficaria para sempre na memória.



E em seguida era
torcer pela chuva e acompanhar a gravidez da terra.
E o seu parto, brotando a primeira folha,
promessa do esperado fruto,
e em todos os passos, passo a passo o caminhar da avó,
o seu silêncio do plantio à colheita,
da semente à panela,
o gosto do feijão e do milho,
o cheiro da avó que o tempo levou em covas:
foi assim que se fez.




Pétalas - Cineas Santos

De Convite - Pétalas - Cineas Santos

IRMÃOS E IRMÃZINHAS: FAZIA UM TEMPINHO QUE EU PROCURAVA UM PRETEXTO PARA REUNI-LOS E PODER ABRAÇÁ-LOS. POR FALTA DE COISA MELHOR, ENGENDREI UM LIVRINHO DE POEMAS CIRCUNSTANCIAIS E UMA EXPOSIÇÃO COM FLORES DE MONTURO. DE QUEBRA, TEREMOS A BOA MÚSICA DE JOSUÉ COSTA E UMA TAÇA DE CAJUÍNA.ENTÃO FICA COMBINADO: DIA 30 DE SETEMBRO (QUINTA-FEIRA) NA OFICINA DA PALAVRA (R. BENJAMIN CONSTANT-1400) - ÀS 20 HORAS.

FRATERNALMENTE,

VELHO ANCIÃO
(Cineas Santos)

domingo, 26 de setembro de 2010

Das Inconveniências da Fama - Cineas Santos

Adoniram Barbosa, cujo centenário de nascimento se comemora este ano, era uma figura singular: sendo um dos maiores compositores da MPB, comportava-se como um cidadão comum. Meio triste, um tantinho irônico, percorria os bairros de sua predileção- Brás e Bexiga - com seu indefectível chapéu de feltro, bigodinho cafona, gravatinha borboleta e paletó de cor inescrutável. Gostava de fumar, beber e prosear com gente do povo. Foi, seguramente, o maior cronista musical de São Paulo. O sambista que deu voz aos “despossuídos”, inclusive, aos vagabundos.

Conta-se que, certa vez, a Prefeitura de São Paulo resolveu homenageá-lo por um pretexto qualquer. Armou-se um belo palco, convidaram-se intérpretes famosos, autoridades, imprensa e picaretas em geral. Meio deslocado, Adoniram recebia cumprimentos e empurrões. Lá pelas tantas, o homenageado já estava no fundo do palco. De repente, passa por ele o secretário de cultura do município. Sem levantar a voz rouca, o compositor perguntou: “Ô meu, não dá pra transformar isso tudo em...” e esfregou o indicador no polegar. O secretário sorriu amarelo, deu um tapinha nas costas do sambista e misturou-se aos notáveis. Sem ter o que fazer naquele palco estrelado, o autor de Saudosa Maloca desceu, procurou o botequim mais próximo e foi tomar sua cerveja e pitar um cigarrinho sossegado. Na hora de pagar a conta, comentou, irônico: “Tudo isso não me rendeu uma birita”.

Por que me lembrei disso? Bem, na semana passada, fui procurado por uma cidadã jovial, elegante, loquaz. Depois dos elogios de praxe, o pedido: “Professor, o senhor poderia me indicar um bom professor de português? Com essas novas regras, está todo mundo confuso. Queremos oferecer um curso básico de português aos nossos funcionários”. A cidadã é diretora de uma instituição. Provoquei-a com a pergunta: Pode ser velho? . A moça sorriu: “Claro, professor”. Fechei o diálogo: Estou à mão. Contrate-me e começaremos amanhã mesmo. A jovem senhora não escondeu o espanto: “O senhor?! Impossível: o senhor é famoso e não podemos pagar-lhe”.

Sem querer comparar-me a Adoniram: ele era um gênio; eu, um simples come-giz, repito, com outras palavras, o que ele afirmou: a minha ‘fama’ não me rende um mísero contrato temporário de trabalho. Curiosamente, sou solicitado a cada instante para proferir palestras, escrever prefácios, e “abrilhantar” festa de formatura, de batizado de cachorro, de casamento de boneca, de enterro de anão... De graça, é claro!

Minhas irmãs, meu irmãos: espalhem aos quatros ventos que sou apenas um professor; que não quero cargo, homenagens, louvações. Quero apenas que me contratem para ministrar aulas. É certo que não sei muito, mas como já errei o bastante, posso evitar que meus alunos cometam os mesmos erros que cometi. Posso ensinar-lhes, por exemplo, distinguir fama de brilhareco.


sábado, 25 de setembro de 2010

Pra não dizer que não falei de eleições - Edna Lopes


De STF



Sou do tipo que vê o guia eleitoral embora não decida meu voto por ele. Vejo porque me ajuda a confirmar EM QUEM NÃO VOTARIA JAMAIS.Mas quando vejo meu filho de 13 anos assistindo interessado, curioso, aprendendo a analisar os “discursos”, questionando posicionamentos, vejo que tem a sua utilidade.

Debates na TV e no rádio

Francamente, quando termina fico com raiva de mim mesma porque sabotei minhas horas de sono ouvindo troca de insultos. Lamento que desperdicem um tempo precioso que seria para divulgar minimamente programas de governo, aos menos nas áreas mais cruciais para o desenvolvimento de um país, de um estado: Saúde, educação, segurança, abastecimento, cultura...

Lixo eletrônico

Certamente que nenhum contato meu, amigo/a, colega de trabalho, familiares, pessoas que me conhecem apenas pelo que escrevo ou que de algum modo mantêm contato comigo recebeu ou receberá nenhuma mensagem desrespeitosa que deprecie com piada, com insultos e ofensas QUEM QUER QUE SEJA! Lamento quando abro emails de pessoas que sei que são sérias, responsáveis, repassando textos eivados de intolerância, de preconceito e de maldade. Fico imaginando se a energia e o tempo gastos com esse tipo de coisa não poderiam ser canalizados para algo realmente construtivo. Ah, concordo com você: sou uma chata!Respeito quem tem posicionamento contrário ao meu mas, não sou obrigada a gostar de baixaria, venha de onde vier.

Senso crítico

Posso parecer simplória, ingênua ou até equivocada em questões que não são do meu interesse, mas não sou alienada nem “Maria vai com as outras”. Não sou filiada a nenhum partido, mas respeito muito quem o é por convicção ideológica. Minha militância é pela vida.Tenho posicionamento, opinião e exercerei meu direito de eleitora coerente com o que penso e o que faço.Não voto em branco, não voto nulo, faço minhas escolhas consciente e meu voto não é moeda de troca. Está tudo muito bom? NÃO! Está tudo muito bem? Também NÃO! Mas não sou do tipo que acha que “pior não fica”. Fica sim e não será com a minha aquiescência e conivencia. Concluo minhas simplórias opiniões com um fragmento do poema Aos que hesitam, de Bertolt Brecht.

“Daquilo que dissemos, o que agora é falso?
Tudo ou alguma coisa?
Com quem contamos ainda? Somos o que restou,
Lançados fora
Da corrente viva?Ficaremos para trás
Por ninguém compreendidos e a ninguém compreendendo?
Precisamos ter sorte?
Isto você pergunta. Não espere
Nenhuma resposta senão a sua.”

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Antonio Torres: setenta anos de estrada

O mês de setembro, na Bahia, é tempo de se homenagear os Ibejis, representados na religião católica pelos gêmeos São Cosme e São Damião. Assim, católicos e iorubaianos se unem (e se reúnem) à mesma mesa de caruru, que deve ser acompanhado de vatapá, arroz branco, xinxim de galinha, feijão fradinho, pipoca, rapadura e rolete de cana. E muita cerveja e foguetório.

O mês de setembro, nas Alagoas, começou com um visitante ilustre que veio participar da primeira festa literária da cidade histórica de Marechal Deodoro, primeira capital das Alagoas, quando ainda tinha o nome de Vila de Santa Madalena da Lagoa do Sul: o escritor junquês Antonio Torres. Chegou aqui na tarde de sexta-feira, participou da Flimar no sábado à tarde, e, no domingo, cedo da manhã, pegamos estrada rumo à terra do Senhor do Bonfim.

Na Bahia, quem nasce em setembro comemora o aniversário à base do azeite de dendê, mas Antonio Torres não teve tempo de parar sequer numa birosca e abocanhar o pirão suculento duma moqueca apimentada, tantas foram as homenagens recebidas ao longo do caminho. Também, eu dirigindo e ele abstêmio, ficava difícil sentir o gosto duma loira gelada.

Chegado a tempo do almoço na casa do mano Raimundo, em Alagoinhas, depois de uns dedos de prosa, visitamos alguns parentes e amigos. Poucos. Os amigos dele, a maioria, morreu; os meus, fizeram como eu: debandaram da cidade. Na segunda-feira, véspera do feriado de sete de setembro, o carro não resistiu à buraqueira e os quebra-molas da estrada e “morri” na troca dos amortecedores e mais a ribombeta da parafuseta da direção. O jeito foi apelar para a solidariedade de Raimundo, que nos levou até o arraial do Junco em seu carro, depois de deixar meu velho fusquinha na concessionária da Fiat.

Queria chegar ao Junco em alto estilo, soltando fogos na Ladeira Grande, mas, na pressa, deixei os rojões na mala do carro. O jeito foi chegar discreto, como uma pessoa comum, sem alarde nem anunciação. Fomos direto para a Rádio Felicidade FM, onde estava agendada uma entrevista com o grande apresentador e campeão de audiência Arizio Torres.

Era dia de feira, muito vai-e-vem das pessoas e muitos bêbados nos botecos. Dia de segunda-feira é o único dia que vale a pena se ir ao Junco. Nos demais, é só solidão e suicídio. Alguns, insólitos, como o de sêo Bronzino que saiu de casa batendo a porta, desgostoso da vida, decidido a amarrar uma pedra no pescoço e se atirar no açude, depois de um pega pra capar com a mulher. Ao molhar a mão pra se benzer antes de cair n’água, gritou apavorado: “Vixe, Maria, mãe do Céu! Acabei de tomar café quente e ia me molhar nessa água fria!” E sêo Bronzino morreu de velhice, trinta anos depois.

Após a entrevista na Rádio Felicidade FM, procurei um balcão para molhar a garganta e jogar conversa fora com os da terra. Parei no bar de Luiz de Rouxinho, onde os pinguços da roça marcam presença. Raimundo e Tote foram forrar o estômago na casa de Nininho, onde Rita e João, outros irmãos, os esperavam. Já Nininho fez o sacrifício de me acompanhar na rodada etílica.

À tarde, Antonio Torres falou para alunos e professores no Grupo Escolar Prof. Edgard Santos, colégio onde levei muitos bolos de palmatória da Professora Serafina. Mas aprendi a ler, principalmente, escrever. A teoria da citada professora dizia o seguinte: ao bater na palma da mão, a gente gritava. Gritando, ativava a circulação. Ativando a circulação, irrigava o cérebro e assim a gente aprendia mais facilmente. Antonio Torres também estudou lá, com esta mesma professora, só que ele era cdf (lê-se: “cedêéfe) e, em vez de lapada no couro, recitava Castro Alves e Olavo Bilac.

A palestra foi mediada pela professora e poetisa Cristiana Alves, mestranda da Uneb, em Alagoinhas. Inhambupe mandou um caminhão de representantes, talvez em penitência de arrependimento pelas pedradas que recebíamos quando passávamos por lá, pongados em paus-de-arara. Foram tantas, que o Governo Federal teve que intervir, construindo um desvio da BR-110, retirando a passagem obrigatória por dentro da cidade.

À noite, muito fria por sinal, o Sr. Secretário das Finanças, Dr. Luiz Eudes, atuante nas Artes e nas Letras, promoveu um jantar em seu sítio, onde compareceram o prefeito, alguns vereadores e o presidente da Câmara, que, por um acaso, é o sogro do anfitrião. Também havia muitas loiras. Geladas, oxigenadas e naturais. Divinas e belas, “parecia que eu estava em Ipanema”, disse o escritor ao repórter do jornal A Tarde, dois dias depois, em entrevista na UEFS. Ipanema ou não, só sobrou pra nós a loira gelada servida em copo de cristal.

O escritor recebeu placa da Câmara de Vereadores, placa oferecida pelo prefeito e sua esposa, e placa da Prefeitura, em agradecimento do povo da terra ao seu filho mais ilustre. O Sr. Secretário da Educação fez um discurso emocionante, o prefeito, idem, e a cidade dormiu em berço esplêndido, sonhando com um porvir risonho. Mal o sol raiou, Luiz Eudes nos levou de volta a Alagoinhas, pois Raimundo precisou retornar no mesmo dia para pegar meu carro na oficina.

Quando chegamos na terra da laranja, era sete de setembro, dia de festa cívica na cidade. A população para nas calçadas das ruas centrais para assistir ao desfile infanto-juvenil das escolas. E do Exército e PM. E voluntários da pátria, LBV, Rotary e Clube dos Bêbados e Ligeiramente Bêbados. O último desfile que “não” assisti, foi aos dezenove anos, quando desfilei garbosamente na farda verde-oliva.
Disseram-me, antes de pôr os pés na rua para ver a banda passar, que a festa continuava brilhante tal qual nos velhos tempos; disseram-me, ao voltar desapontado, que foi o pior desfile de todos os tempos.

À tarde, carro aparentemente novo, pegamos estrada para Feira de Santana, onde o escritor passou dois dias sendo homenageado pelo povo de lá, via Universidade Estadual de Feira de Santana, a UEFS. Na garupa, Cristiana Alves, que falaria ao povo de Feira sobre os autores da sua terra e, ao voltar, daria testemunho de como o Junco é popular além da Ladeira Grande.

Mas aí já é uma outra história.



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Atendendo a inúmeros pedidos do povo do arraial do Junco, posto aqui, na íntegra, a entrevista de Antonio Torres À Arizio Torres, que foi ao ar pelas antenas da Rádio Felicidade FM, no dia 06 de setembro de 2010. Você, caro leitor deste blog, que não é do arraial do Junco, mas gosta do referido escritor, conheça mais sobre a vida deste que saiu de uma cidade que não constava no mapa do Brasil para entrar com glamour no mapa do mundo.


















Antonio Torres é homenageado no Junco.

Durante jantar na casa de Luiz Eudes, o escritor Antonio Torres recebeu homenagem da Câmara de Vereadores e da Prefeitura Municipal de Sátiro Dias, o velho arraial do Junco. O prefeito Joaquim Neto e sua esposa Vaitsa também lhe prestaram homenagem.




Antonio Torres na Roda de Prosa “O trabalho pedagógico com o livro e a leitura”, na Flimar, promovida pelas professoras Edna Lopes e Cláudia Pimentel.




Introdução da oficina de Antonio Torres na I Feira Literária de Marechal Deodoro.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Crônica de uma cidade - Maria Olímpia Melo

De Colagens



O Jornal O Globo não é vendido em Lavras. Uma inacreditável história de dívidas e birra. As dívidas ficam por conta do representante do jornal em Lavras, que não pagou o que devia e ainda deu no pé. A birra fica por conta do jornal que considerou a dívida como sendo da cidade e não do indivíduo. E bloqueou a venda do jornal enquanto a dívida não for paga. Como o negócio não é assim tão interessante ninguém também se interessa por pagar essa dívida. E como nem assinatura pode ser feita, praticamente ninguém em Lavras lê o jornal.

Eu havia lido a notícia pela net. Eu já sabia da história. Todas as pessoas que vivem ou viveram nas cercanias de Andrelândia sabem dessa história. Os detalhes podem ser diferentes, mas a essência é a mesma. E eu vivi em Arantina, nas cercanias de Andrelândia e estudei lá por dois anos e meio, no colégio das freiras.

Minha irmã trouxe para minha mãe ler. Minha mãe é desse tempo e conhece melhor a história do que eu. Foi publicada na revista O Globo de 15 de agosto passado.

Antes de entrar no assunto, uma curiosidade: Andrelândia é a única cidade do mundo onde a família se orgulha de ter um filho veado. Porque a família é toda constituída de veados. Homens e mulheres e crianças, todos são veados.

A primeira vez que ouvi falar disso eu havia acabado de chegar no colégio e me preparava para fazer os exames finais do quarto ano primário. Em Arantina não tínhamos o quarto ano, só até o terceiro em classe multisseriada. Era a primeira vez que eu saía para passear pelas ruas da cidade, muito bem cuidada por sinal. Mas, em uma das ruas por onde passamos, rua calçada, próxima a Matriz, vi que em frente de uma casa não havia calçamento, so um retângulo de terra. Perguntei: por que na frente dessa casa não existe calçamento? Não posso garantir qual foi a resposta exata que ouvi, mas foi uma ou outra. É que essa casa pertence a um veado. Ou a um caranguejo. Isso realmente eu não me lembro. Mas garanto que foi uma ou outra. E tive aí minha primeira lição sobre a política em Andrelândia. Porque ainda hoje, nessa simpática cidadezinha, vigora o bipartidarismo: ou você é veado ou é caranguejo. Os partidos oficiais não existem, ou melhor, existem, mas são subjugados pelos outros.

Entre tapas e beijos é a chamada para a reportagem de capa que mostra a fotografia de um casal – o primeiro a ter autorização para um casamento misto. Um caranguejo macho se unia a uma veadinha. O ano, 1932. Viveram juntos por 75 anos e multiplicaram os veados pela cidade. Porque sim, foi o lado dela que assumiu o poder. Mas isso foi um acontecimento raríssimo, uma aberração. A segregação continuou por décadas.E lá aquela história ainda bem comum em nossas cidades, a história do eu faço você desfaz, ou eu fiz e você desmanchou era levada aos extremos. Outro fato interessante: hoje em dia casamentos mistos são comuns. É possível a um veado amar um caranguejo. Mas se amar é possível, votar, nunca.

A reportagem é cheia de detalhes interessantes . Detalhes que eu desconhecia. Por exemplo, hoje os veados são adeptos do PMDB e os caranguejos, acostumados a pertencerem a fauna, são tucanos.

É claro, não vou copiar nem repetir aqui as histórias dentro dessa história que o jornal conta.São frutos de pesquisa, de um trabalho jornalístico muito bom feito pelo repórter Renato Grandelle. Mas ele deu uma informaçãozinha com a qual me deliciei – é sobre o Botafogo ser o time de futebol mais popular da região. Eu não sabia que isso atingia Andrelândia mas em Arantina eu sei que é. Eu venho de uma família de arantinenses botafoguenses e mesmo os que hoje se transferiram para outros times, principalmente o Cruzeiro, continuam a dizer que são botafoguenses de família.


Nota do blog: No arraial do Junco a briga santa é entre caranguejos e tranca-ruas. Os veados foram mortos durante a povoação.




segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Seminário Antonio Torres: Luís Pimentel é homenageado

O escritor Antonio Torres começou a segunda parte de sua oficina, na Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia, homenageando um poeta e escritor feirense que dispensa apresentação por parte deste escriba: Luís Pimentel. A crônica, lida por Roberto Seidel e Roberval Pereyr, encontra-se publicada neste blog. 





domingo, 19 de setembro de 2010

À sombra do imperador - Cineas Santos

De Ipês no Centro de Teresina


A exemplo das crianças que, em dezembro, tentam vãmente encurtar os dias para apressar a chegada do Natal, mal se inicia agosto e já começo a espichar os olhos pela vastidão da Chapada à procura dos esplendentes ipês amarelos. Não seria exagero afirmar que uma das razões que me fizeram sentar praça em Teresina foi justamente os ipês; a outra,as mulheres... Com exceção dos recém-plantados (transplantados) pela Prefeitura de Teresina, sei a localização de cada um deles. Vou um pouco além: lembro-me até de alguns que nem existem mais. Para citar apenas um exemplo, ainda sinto saudades de um ipê frondoso no cruzamento das avenidas Pernambuco com 1º de Maio, no bairro Primavera. Cortaram-no para construir um conjunto habitacional pavoroso que, ironicamente, foi batizado com o nome de “Condomínio Ipê” como se o rótulo pudesse substituir a árvore.

Certa feita, depois de uma palestra para estudantes de uma escola pública, na periferia da cidade, um dos moleques me perguntou: “O que posso fazer para melhorar minha cidade?”. Respondi de batepronto: Plante um ipê, meu filho. Hoje, daria a mesma resposta, com mais ênfase. Se, em vez de fícus, algodoeiro, acácia, neem e outras plantas exóticas, cada teresinense plantasse um ipê, Teresina, nesta época do ano, seria a cidade mais bela do mundo, a custo zero!
Mas há, entre os ipês que iluminam a cidade, um que, por sua localização e generosidade, merece referência (leia-se reverência) especial. Trata-se do Imperador da Chapada, título por mim conferido ao ipê plantado pelo prof. Carlos Pires Rebelo, de saudosa memória, no cruzamento das ruas Coelho Rodrigues com 1º de Maio, no centro de Teresina. Árvore relativamente nova – tem menos de 40 anos de idade, parece que sempre esteve ali, oferecendo beleza aos olhos dos transeuntes. Já a fotografei dezenas de vezes. Como quem presta reverência à própria Natureza. Todos os anos, sento-me à sua sombra para ser acariciado pelas flores que caem.

Numa dessas ocasiões, testemunhei um incidente que me deixou profundamente triste. Cumpria meu ritual, quando uma manada de estudantes passou pelo local. Eram rapazes e moças, alegres e ruidosos. Trotando como búfalos, passaram pelo tapete de ouro que cobria a calçada com selvagem indiferença. Nenhuma das meninas agachou-se para pegar uma flor e enfeitar o cabelo. Desencantado, escrevi uma crônica denominada Os Novos Bárbaros. Em contrapartida, domingo passado, prestava minha reverência ao Imperador, quando presenciei uma cena que me encheu de alegria e esperança. Uma jovem mãe chegou com sua filha, uns três anos de idade, sentou-a no tapete amarelo e passou a fotografá-la. Compenetrada, a menininha fazia poses engraçadas. Para não as perturbar, retirei-me silenciosamente. Não tenho dúvida: tendo a sensibilidade adubada com generosas porções de beleza, aquela criança poderá crescer mais atenta ao que a vida nos oferece graciosamente. Assim seja.



sábado, 18 de setembro de 2010

Seminário Antonio Torres - Música, Maestro!

Eram apenas quatro membros, mas valeu pela orquestra inteira. A Orquestra do Centro Universitário de Cultura e Arte - CUCA - da Universidade Estadual de Feira de Santana, rendeu homenagem ao escritor Antonio Torres nos seus setenta aninhos. Tive que cortar um pouco o final de duas músicas porque a apresentação extrapolou o tempo permitido pelo Youtube.