sábado, 2 de abril de 2011

Cineas Santos - A celebração da amizade


Corria o ano da graça de 77 e, apesar da ditadura, imperava entre nós a crença na “salvação” do planeta, na iminência de uma luminosa revolução cultural e, principalmente, na construção de um mundo mais justo e mais fraterno. Sonhos juvenis, irrealizáveis, mas necessários. Movido por esse desejo de mudanças, juntei um grupo de jovens – Paulo Machado, Fernando Costa, Alcide Filho, Rogério Newton e Margarete Coelho – e decidimos construir uma ponte cultural entre Teresina e o sertão do Piauí. Amontoados num velho fusca verde-sonho, iniciamos nossa peregrinação por São Raimundo Nonato onde, anualmente, realizava-se uma semana universitária. Levamos uma bela exposição do pintor Fernando Costa que, sozinha, falava mais que a nossa arenga de pregadores. Animados com os resultados, fomos a Oeiras, Floriano e já nos preparávamos para ir a Corrente, quando a gasolina do fusca acabou. Como não éramos financiados por ninguém, encerramos nossa errática aventura na vizinha cidade de José de Freitas.

O projeto durou pouco, mas as sementes foram lançadas em terreno fértil. 34 anos depois, aqui estamos lançando o CD A Cara Alegre do Piauí – a celebração da amizade. Hoje, com mais de 30 integrantes, o Cara Alegre pode orgulhar-se de sua trajetória festiva e consequente. Percorremos praticamente o Piauí inteiro, de Teresina a Guaribas, ensinando, aprendendo, convivendo, compartilhando. A filosofia do projeto continua a mesma: o saber não compartilhado é inútil. Para mim, é motivo de orgulho coordenar uma caravana que conta com a participação de figuras do porte de Raimundo Nonato Monteiro de Santana, Fonseca Neto, Paulo Machado, Erisvaldo Borges, Maristela Gruber, Luíza Miranda, Rosinha Amorim, Wilker Marques, Vanda Queiroz, Carlos Martins, Carla Fonseca, Gabriel Archanjo, Adriana Medeiros, Josafá,Catarina Santos,Geni Costa, Graça Vilhena,Agostinho Ferraz, Margareth Leite, Jeferson Barbosa, Rosinha Pereira, Gílson Fernandes, Tânia Martins, Antônio Amaral, Sid Ribeiro, Ilza Bezerra, Vagner Ribeiro, Wanya Sales, Josué Costa, Beto Boreno, Gílson Caland, Adelino Frazão, entre outros.

O nome do projeto foi sugestão do professor e poeta Fernando Ferraz que, com um argumento irrefutável, nos convenceu: “Ao longo dos séculos, o Piauí sempre se mostrou triste, pobre, acanhado. O máximo que conseguimos foi a piedade de alguns e o escárnio de outros. É hora de mostrarmos a face alegre e luminosa do nosso estado: a cultura e a arte que dão brilho à nossa existência”.

Por oportuno, vale lembrar: o projeto continua com as portas abertas. Para integrar a caravana, basta disposição para servir e alegria de compartilhar. Vinde, pois, “que a messe é muita e os trabalhadores poucos”.



quinta-feira, 31 de março de 2011

Edna Lopes - Roubo de Merenda Escolar em Alagoas

Nós vos pedimos com insistência
não digam nunca:
isso é natural!
diante dos acontecimentos de cada dia
numa época em que reina a confusão
em que corre o sangue
em que o arbítrio tem força de lei
em que a humanidade se desumaniza
não digam nunca:
isso é natural!
para que nada possa ser imutável!
Bertolt Brecht


Certamente muitos conhecem a expressão "Mais fácil que roubar pirulito de criança". Graças à impunidade que grassa em Alagoas é possilvel que mude para "Tão fácil quanto roubar merenda escolar de criança "...

Todos nós já vimos esse filme de horror pelo menos mais de uma vez e nem é preciso ter boa memória... A Operação Guabiru, há sete anos atrás, prendeu vários prefeitos alagoanos, secretários municipais, empresários e indiciou outros tantos envolvidos no desvio da verba da merenda escolar, mas ninguém foi julgado até agora.

A falta de caráter e escrúpulo de vários dirigentes e suas famílias, pessoas que abusam da boa fé, que enriquecem com expedientes desse tipo, parece ser algo natural por essas bandas.

"Em um estado, o nosso, em que mais da metade a população apenas sobrevive, chamar os que roubam o dinheiro da merenda escolar de ladrões é apenas elogiá-los. Repito: em um estado com pouco mais de três milhões de habitantes, registrando uma pobreza de 900 mil pessoas, que se somam a 760 mil miseráveis, os tais a quem nos referimos acima devem ser tratados por assassinos, homicidas, ou – talvez a melhor definição: latrocidas – aqueles que matam suas vítimas depois de roubar." (Ricardo Mota) leia mais http://blog.tudonahora.com.br/ricardomota/

Tem razão, meu caro! E a minha cota diária de indignação transborda! Como cidadã que paga seus impostos, portanto banca a farra dessa corja, e também como educadora, é meu dever botar a boca no trombone, anunciar, denunciar, exigir que a justiça se faça, pois em todos os municípios alvo da ação da PF e da CGU, a merenda escolar tem um peso fundamental para garantir os estudantes na sala de aula.

Sim, eu sei que escola não é "restaurante mirim", mas a desnutrição é uma das causas da não aprendizagem dos alunos e não vamos fingir que não sabemos que há familias que sobrevivem (?) com meio salário mínimo. Não vamos achar que uma corrupçãozinha aqui, um desviozinho de recurso alí não é nada demais, que ninguém é honesto mesmo.

Que a justiça se faça para que essa corja possas refrear seus instintos. Dinheiro PÚBLICO não é pasto e muitos de nós, eu, particularmente, não naturalizou a falta de decencia e caráter como marca para os gestores de nossos municípios.

Leiam mais detalhes:

Operação Mascotch prende em Alagoas suspeitos de desviar dinheiro da merenda escolar para gastos pessoais

Por Gilberto Costa, Agência Brasil

A Polícia Federal (PF) prendeu hoje (30), em Alagoas, nove pessoas envolvidas com desvio de dinheiro público da merenda escolar. O recurso, originário do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), foi desviado em 13 municípios para o pagamento de compras pessoais, como bebidas alcoólicas (uísque 12 anos, vinho) e até ração para cachorro.
A operação, intitulada Mascotch, é feita em conjunto com a Controladoria-Geral da União (CGU) e com o Ministério Público Federal (MPF), nas cidades de Maceió, Arapiraca, Limoeiro de Anadia, Lagoa da Canoa, Girau do Ponciano, Poço das Trincheiras, Senador Rui Palmeira, Belo Monte, Estrela de Alagoas, Jacaré dos Homens, Quebrangulo, Feira Grande e Traipu.
Fiscalização da CGU contabiliza que R$ 8 milhões podem ter sido desviados, entre 2007 e 2009, por meio de contratos fraudulentos com o grupo empresarial que venceu 13 licitações no período.
Sete mandatos de prisão temporária ainda não foram cumpridos. Três pessoas prometeram se entregar nesta tarde à Polícia Federal. Além das prisões, a PF cumpre 28 mandados de busca e apreensão nos municípios, inclusive na sede de cinco prefeituras (Girau do Ponciano, Poço das Trincheiras, Senador Rui Palmeira, Belo Monte e Estrela de Alagoas).
A PF e a CGU não informaram o nome das pessoas presas, mas divulgaram que as autoridades com mandado de prisão expedido são: a primeira-dama e um ex-secretário municipal de Finanças de Belo Monte; a secretária de Educação de Craíbas; a ex-prefeita e a secretária de Educação de Estrela de Alagoas; a primeira-dama e secretária de Assistência Social, a secretária de Educação e uma ex-secretária de Finanças de Lagoa da Canoa; a primeira-dama e o secretário de Administração de Limoeiro de Anadia; a vice-prefeita, a primeira-dama e secretária de Assistência Social, o secretário de Indústria e Comércio e um ex-secretário de Administração de Traipu.
A Operação Mascotch é um desdobramento da Operação Caetés, executada em outubro do ano passado e que também investigou esquema de desvio de recursos da alimentação escolar, prendeu oito pessoas e cumpriu 16 mandados de busca e apreensão nos municípios de Maceió, Arapiraca, Craíbas, Limoeiro de Anadia, Lagoa da Canoa e Traipu.
De acordo com dados do Ministério da Educação, o estado de Alagoas tem desempenho educacional abaixo da média nacional e da média da Região Nordeste. Um em cada quatro alunos de 10 a 14 anos estão atrasados no fluxo escolar e quase 80% dos alunos do ensino fundamental estão defasados em relação à série que cursam.
A taxa de abandono dos estudos em Alagoas é de 9,1% no ensino fundamental. O Índice do Desenvolvimento da Educação Básico (Ideb) de Alagoas é 3,7 pontos (contra 4,6 pontos da média brasileira).

Grifos meus!


quarta-feira, 30 de março de 2011

Luís Pimentel - O homem bom e o vestido de flores


– Primeiro mesmo, de fazer as coisas para valer, foi o Toni. Eu até tive alguns namoradinhos antes dele, sim. Coisa de criança, sem compromisso e sem deixar marcas profundas. Foi mais ou menos nessa época que o estraga-prazeres do meu primo se infiltrou em minha vida. Chamava-se Lourival e não serviu para nada. Pequeno e inseguro, porém pretensioso. Só falava em dinheiro, futebol e corridas de cavalo. Curto que só vendo. Uma besta.
“Ela jamais saberá, mas eu gostaria muito de conhecer o primo Lourival. Gosto de pessoas assim, que não servem para nada. Também gosto de pessoas que só falam em dinheiro, sobretudo quando não têm dinheiro nenhum. E gosto, sobretudo, dessas pessoas que as outras consideram verdadeiras bestas.”
– Coitado do Lourival.
– Coitado nada.
– Tá certa. Não chega aos pés do Toni.
– Também não posso dizer que o Toni tenha representado grande coisa. Não me deu nada, mas pelo menos tirou o que tinha se prontificado a tirar.
– Alguém tem que fazer o trabalho sujo.
– Eu já tinha quase dezoito anos. Passava da hora.
– Parabéns, Toni.
“Eu tinha quase dezoito anos quando fui para a cama com uma mulher. Uma prostituta, como não poderia deixar de ser. Criado em roça, meio do mato, a iniciação se deu mesmo foi com cabras, porcas, novilhas, éguas, cadelas e companhia. Só mais tarde, na cidade, conheci fêmeas de duas pernas, dois braços e dois peitos. Não conseguia me entender com namoradas, sempre difíceis e certinhas. Tinha que ser mesmo com mulheres de vida torta e nenhuma complicação existencial. Dizia apenas conta aí a bela história e não se preocupa comigo, baby. Elas obedeciam, sem remorsos.”
– Aí veio o Jonas.
– Grande Jonas.
– O grande amor de minha vida. Dessa história você vai gostar.
“Gosto das histórias delas. De todas as histórias de todas elas. Quanto mais absurdas, mais eu gosto. Às vezes me dão vontade de rir, mas em geral me dão muito prazer.”
– Como era o Jonas?
– Forte, inteligente, extremamente sensual e educado. Gostava de fazer amor na sala, no velho sofá, enquanto mamãe ouvia rádio e passava roupas na cozinha. Dizia que o excitava, tinha cada idéia de maluco. A qualquer movimento suspeito na cozinha acelerava o ritmo. E como eu gostava.
– Também estou gostando.
– Me mordia toda. Jonas tinha coxas grossas e braços firmes. Mexia com contrabando e um dia evaporou, sumiu do mapa, desapareceu no mundo.
“Lurdes. Era esse o nome dela. Tinha peitos caídos e um sorriso horroroso, forrado de dentes de ouro. Exagerava na pintura e parecia mais uma caricatura malfeita. Cobrava menos do que as outras e tinha histórias interessantíssimas, além de não me considerar um alucinado. Foi compreensiva quando eu disse que gostaria de fazer amor ouvindo histórias malucas. Aceitou de pronto, sem cobrar um tostão a mais. Tentamos muitas vezes até eu ter certeza de que gostaria de fazer sozinho, ouvindo mentiras cabeludas.”
– Fale mais.
– Do sumiço do Jonas?
– Da cama, do sofá, mordendo você todinha.
– Você não presta.
“Eu não presto, nem te amo, não sei nem quero saber o teu nome. Não quero saber dos teus problemas, só das tuas mentiras.”
– Repete tudo. O que ele fazia com você no velho sofá, enquanto a mamãe passava roupas?
– Me beijava dos pés à cabeça. Fazia tudo o que queria comigo.
– Grande Jonas. Fazia tudo, tudinho?
– As coisas que me envergonhavam fazíamos de luz apagada. Chega, não gosto nem de lembrar.
– Esquece.
– Aí conheci o Rodolfo.
– Também contrabandista?
– Não. Motorista de ônibus.
– Rodolfo é um bonito nome.
– De artista. A mãe era apaixonada por um tal de Rodolfo Valentino, do cinema. Só que não se parecia nada com o outro. O meu Rodolfo era magro, desdentado e tossia até não se agüentar, principalmente naquela hora.
– Que horror.
– Fica quietinho, senão desconcentra.
“A vida é assim, feita de pequenas crueldades.”
– Gostava dele?
– Não. Usava como remédio barato, só para tentar esquecer o Jonas. Ia para a cama com ele pensando no Jonas, enquanto ouvia coisas. Sempre desatenta.
– Que coisas?
– Coisas, ora. Coisas que se dizem na cama.
“A vida também é feita de pequenas coisas. Coisas sem sentido, coisas importantes, coisas e coisas. Coisas que se dizem na cama, que se cochicham em enterros, outras que só em comemorações de aniversários. Coisas que só se dizem aos grandes amigos e coisas que não se diz nem aos piores inimigos.”
– E você, o que dizia para ele?
– Coisas também. Bobagens. E cravava as unhas nas costas cheias de espinhas do pobre. Acabou?
– Não. Mas não demora.
– Então vou falar do Júlio.
– O que tinha o Júlio?
– Um olho cego e uma mancha enorme do lado direito do peito.
– Também gostava no sofá?
– Não. De pé, encostado na parede. Ele era muito alto e eu tinha que ficar na ponta dos pés. Mas era bom.
– Sei.
– Era muito bom.
“Não duvido. Todos eles são muito bons para elas e também para mim. Também não tenho queixas das mulheres com as quais sonhei. Todas são boas e não têm culpa de nada.”
– Viu onde coloquei minhas chaves?
– Em cima da mesinha de cabeceira. Nem falei do Alfredo, o que era da polícia.
– Da próxima vez começaremos por ele.
– Você promete?
– Claro. Temos que começar por alguém.
– Jura que gostou?
– Eu gosto sempre. Tome.
– Pode deixar aí.
– Está em cima da cômoda. Tem um pouco mais, para o vestido de flores.
– Não acredito. Enfim, o vestido de flores. Que homem bom, meu Deus.
“Olho para ela e penso: ainda existem pessoas boas neste mundo.”






terça-feira, 29 de março de 2011

Edna Lopes - Memórias de um aprendiz de escritor



Certamente que quem escreve tem na ponta da língua o modo como se iniciou no mundo das letras, como leitor e escritor. O fato é que há sempre o que aprender, o que melhorar, seja como leitor que lê o mundo e a palavra ou como escritor, em forma e conteúdo.

Neste livro, de maneira leve e delicada, o autor nos conta numa “ficção autobiográfica” da infância como foi aprendendo a ser escritor. Um menino apaixonado por livros, um escritor apaixonado por livros.

O livro é classificado como infantojuvenil, mas boa leitura não tem idade ou classificação. As dicas são valiosas para quem, como eu, brinca de escrever, ou para qualquer escritor/a mais tarimbado, que se preocupa em escrever com clareza e alguma emoção.

Da vez que ouvi Scliar numa dessas Bienais da vida, guardo a firmeza da palavra, o encantamento com que falava das leituras que fizera ao longo da vida, a delicadeza poética como demonstrava observar o cotidiano.

Por diversas vezes “pesquei” da Folha online crônicas suas, inspiradas em notícias do jornal para abrir reuniões de trabalho, aulas, seminários de formação de educadores. Nos elementos do cotidiano, provocações, reflexões... Nenhum sentimento banalizado, tudo tão humano, tão real, tão poético.

Dias antes de sua morte, reli Memórias e sugeri que Vinícius, meu adolescente tirado a filósofo o lesse...

- Não pretendo ser escritor - respondeu.
- Nunca se sabe...

Transcrevo a primeira parte do livro... Um carinho imenso por cada lembrança de leitura, cada pensamento articulado. Fisicamente não está mais entre nós, mas sua obra estará.

Eternamente, Moacyr.




Memórias de um aprendiz de escritor
Moacyr Scliar

Escrevo há muito tempo. Costumo dizer que, se ainda não aprendi – e acho mesmo que não aprendi, a gente nunca para de aprender -, não foi por falta de prática. Porque comecei muito cedo. Na verdade, todas as minhas recordações estão ligadas a isso, a ouvir e contar histórias. Não só as histórias dos personagens que me encantaram, o Saci-Pererê, o Negrinho do Pastoreio, a Cuca, Hércules, Tarzan, os piratas, Tom Sawayer, Sacco e Vanzetti. Mas também as minhas próprias histórias, as histórias de meus personagens, essas criaturas reais ou imaginárias, com quem convivi desde a infância.

Na verdade, eu escrevi ali em cima. Verdade é uma palavra muito relativa para um escritor de ficção. O que é verdade, o que é imaginação? No colégio onde fiz o segundo grau, havia um rapaz que tinha fama de mentiroso. Fama, não; ele era mentiroso. Todo mundo sabia que ele era um mentiroso.

Uma vez, o rádio deu uma notícia alarmante: um avião em dificuldades sobrevoava Porto Alegre. Podia cair a qualquer momento. Fomos para o colégio, naquele dia, preocupados; e conversávamos sobre o assunto, quando apareceu ele, o Mentiroso. Pálido:

— Vocês nem podem imaginar!
Uma pausa dramática e logo em seguida:
— Sabem esse avião que estava em perigo? Caiu perto da minha casa. Escapamos por pouco.
Gente, que coisa horrível!

E começou a descrever o avião incendiando, o piloto gritando por socorro… Uma cena impressionante. Aí veio um colega correndo, com a notícia: o avião acabara de aterrizar, são e salvo. Todo mundo começou a rir. Todo mundo, menos o Mentiroso:

— Não pode ser!– repetia, incrédulo, irritado.
— Eu vi o avião cair!

Agora, quando lembro este fato, concluo que não estava mentindo. Ele vira, realmente, o avião cair. Com os olhos da imaginação, decerto; mas para ele o avião tinha caído, e tinha incendiado, e tudo o mais. E ele acreditava no que dizia, porque era um ficcionista. Tudo que precisava, naquele momento, era um lápis e um papel. Se tivesse escrito o que dizia, seria um escritor; como não escrevera, tratava-se de um mentiroso. Uma questão de nomes, de palavras.

Palavras. São tudo, para quem escreve. Ou quase tudo. Como a serra, o martelo, a plaina, a madeira, a cola e os pregos para o marceneiro; como a colher, o prumo, os tijolos e a argamassa para o pedreiro; como a fazenda, a linha, a tesoura e a agulha para o alfaiate. Estou falando em instrumentos de trabalho, porque literatura nem sempre parece trabalho. Há uma história (sempre contando histórias, Moacyr Scliar! Sempre contando histórias!) sobre um escritor e seu vizinho. O vizinho olhava o escritor que estava sentado, quieto, no jardim, e perguntava: Descansando, senhor escritor? Ao que o escritor respondia: Não, trabalhando. Daí a pouco o vizinho via o escritor mexendo na terra, cuidando das plantas: Trabalhando? Não, respondia o escritor, descansando. As aparências enganam; enganaram até o próprio escritor.

Gabriel Garcia Marques conta que, quando senta para escrever, gosta de estar rodeado dos mais variados instrumentos: a máquina, vários lápis, tesoura, cola, borracha, grampeador – para sentir como um operário que vai empreender a tarefa; o operário em construção, de Vinícius de Moraes: “Era ele quem fazia casas/Onde antes só havia chão”.

As Palavras são tudo, você disse, Moacyr? Você mentiu, Moacyr. Mais uma vez você mentiu. As palavras não são tudo, e disso você bem sabe. A emoção conta, caro Moacyr. A Emoção, as idéias, as lembranças. Fale um pouco sobre você Moacyr.(...)

Moacyr Scliar

Nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu em fevereiro de 2011. Autor de mais de 70 livros, uma obra que abrange vários gêneros: ficção, ensaio, crônica e literatura juvenil. Muitos destes foram publicados nos Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha, Portugal, Suécia, Argentina, Colômbia, Israel e outros países, com grande repercussão crítica. É detentor dos seguintes prêmios, entre outros: Prêmio Joaquim Manoel de Mace­do (1974), Prêmio Erico Veríssimo (1976), Prêmio Ci­da­de de Porto Alegre (1976), Prêmio Guimarães Rosa (1977), Prêmio Brasília (1977), Prêmio Jabuti (1988, 1993 e 2000), Prêmio Associa­ção Paulista de Críticos de Arte (1989), Prêmio Casa de las Américas (1989), Prêmio Pen Clube do Brasil (1990), Prêmio José Lins do Rego (Academia Brasileira de Letras, 1998). Formou-se em medicina em 1962, especializando-se em saúde pública. Viajava frequentemente, tanto no país como no exterior, para congressos e conferên­cias; em 1993 e 1997 foi professor visitante na Brown University (Departament for Portuguese and Brazilian Studies), nos Estados Unidos.

Moacyr Scliar foi colunista dos jornais Zero Hora e Folha de S. Paulo e também colaborou em vários órgãos da imprensa no país e no exterior. Muitos de seus textos foram adaptados para cinema, teatro, tevê e rádio, inclusive no ex­te­rior. Em 2003, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Adaptado por mim do site http://www.lpm-editores.com.br/




domingo, 27 de março de 2011

O COMÍCIO


[Minha homenagem ao poeta pantaneiro Zé do Mato, eleito presidente da Câmara de Vereadores de Santa Rita do Pardo]

Santa Rita do Pardo é uma cidade de pouco mais de seis mil habitantes, encravada em pleno coração do Mato Grosso do Sul. Sua maior diversão são as eleições municipais, onde rola comida e cachaça de graça para os eleitores. Quanto mais polarizada estiver a campanha, melhor a festa para os eleitores, disputados a tapas pelos candidatos. Cem votos transformam o candidato no vereador mais votado da região.

Zé do Mato prometia fazer história nas eleições daquele ano. Seria uma versão alfabetizada de Tiririca e especulava-se que a sua votação seria tão magnífica tal qual a do palhaço paulista. Ao contrário do que aconteceria em uma eleição normal, a majoritária puxar voto para o vereador, Zé do Mato é quem iria decidir a eleição para prefeito e é por isso que o seu cunhado, candidato à reeleição, gastava mundos e fundos na campanha do edil.

Poeta das onças apaixonadas, funcionário público responsável, pai de família exemplar, amigo dos amigos, companheiro de não abandonar o barco, esperava-se uma estréia triunfal no primeiro comício na Praça da Prefeitura, única praça da cidade, cuja expectativa do discurso afligira a imensa maioria dos moradores por mais de um mês, ansiosa para ouvir os versos, as rimas e as versões de sua prosopopéia política.

Normalmente o candidato da majoritária é o último a discursar, sendo que os candidatos a vereador enchem linguiça até a chegada do candidato a prefeito que, via de regra, sempre atrasa. Mas em Santa Rita do Pardo aconteceria o inverso: Zé do Mato faria o seu discurso por derradeiro, para não dispersar a multidão. E assim, depois de um falatório vazio do prefeito-candidato, chegou o momento tão esperado. E o locutor não economizou efes e erres:

- E agora, com vocês, o momento tão esperado, o candidato sensação desta eleição, o nosso glorioso poeta Zéééééééé do Maaaatoo!”

A multidão foi ao delírio e uma saraivada ensurdecedora de fogos de artifício se fez ouvir. O povo gritava em êxtase:

– Já ganhou! Já ganhou! Já ganhou!

Uma senhora grávida não resistiu à emoção e deu a luz ali mesmo, na praça, e o nenê nasceu batendo palmas. Era o milagre da Criação aplaudindo o milagre da perversão poética.

Zé do Mato, depois de cumprimentar as autoridades constituídas presentes ao comício, pegou o microfone, pigarreou, fez um pouco de suspense e depois abriu a verborragia:

– Meus concidadãos e concidadãs, como diz o poeta Salgado Maranhão, eu sou de quem me ama, portanto, se vocês me amam, eu amo vocês porque a recíproca é verdadeira e ponto final. Mas é chegada a hora de refletirmos no nosso introspectivo interior a respeito do desrespeito ao nosso cotidiano incerto e que gerou os meus questionamentos reflexivos a respeito de nosso torrão natal. Meus amigos, eu vos humildemente pergunto: nossa querida, amada e sofrida cidade, Santa Rita do Pardo, está no mapa do Brasil?

– Nãao! – respondeu metade dos participantes.

– Está no Guia Quatro Rodas?

Guia Quatro Rodas? Que bichéesse? Pela entonação...

– Nããão!

– Meus amigos, nesta cidade tem luz?

Começava a falar a língua do povo.

– Nãããão! – respondeu uníssona uma gente esperançosa de mudanças. Estava ouvindo a voz de quem tudo podia, de quem tudo sabia, de quem tudo faria.

– Tem água encanada?

– Nããããão! – mais entusiasmo do povo. Este é o homem certo. Já ganhou!

– Tem médico?

– Nããããããão! – tava eleito. Seria a solução para os principais problemas da cidade.

– Tem emprego?

– Nããããããããão! – foram tantos e tão forte que ecoou a quilômetros de distância.

Não restava mais dúvida: era um estadista. O homem certo para ser o mais votado. Presidente da Câmara. Dariam um jeito de cassar o mandato do prefeito para ele assumir.

Zé do Mato, empolgado com a reação emocionante do povo, lançou toda sua indignação na última pergunta:

– Já que esta cidade não existe no mapa do Brasil, não tem médico, não tem luz, não tem água, não tem emprego, então eu pergunto a vocês: por que então vocês não se mudam desta porcaria de cidade?!

– ?????????????


sexta-feira, 25 de março de 2011

Maurício Melo Júnior - A Ancestralidade Nordestina

O primeiro milagre se deu em 1872. Francisca Belmira era prostituta numa currutela perdida no sertão, nos pés da Chapada do Araripe, um pouso de tropeiros, povoado sem eira, com cinco casas de telha, trinta choupanas e uma capela. O padre veio para celebrar a Missa do Galo no ano anterior e sonhou com o próprio Cristo ordenando que ele se entregasse à tarefa de pastorear aquele rebanho de pouca crença e muita iniqüidade. Ficou. Aceitou a peleja. Num dia de céu claro e luz intensa deu-se o encontro. A mulher, enlouquecida, corria praguejando contra Deus e o mundo. Desafiava valente, desacatava a todos. Até ver o padre que pôs as mãos em sua cabeça abençoando-a.

Ela caiu em choro convulsivo pedindo perdão pelos tantos pecados. Nunca mais bebeu, nunca mais se prostituiu. Morreu como matrona, venerada e respeitada por todo Juazeiro. O padre seguiu obrando seus milagres, livrando flagelados da seca, construindo uma civilização no coração do Cariri. Vinha de uma tradição de fé intensa. Isolado de tudo, sem lei nem rei, os primeiro colonizados daquelas brenhas se entregavam à proteção de Deus e só com ele contavam.

Na ausência de padres regulares, se valiam dos beatos, dos andarilhos que falavam em bonanças e anunciavam apocalipses. Essa tradição de tão forte, norteou o Padre Ibiapina, um advogado que abandonou as leis dos homens e se dedicou à lei de Deus. Fez-se padre no Seminário de Olinda e saiu a pregar pelos sertões. Tinha um discurso tão afinado e belo que encantou o menino Cícero que se fez padre e milagreiro, um santo nordestino, no dizer do povo.

Ninguém sabe quando se deu o primeiro tiro. O fato está perdido nos esteios do tempo. E depois dele viram muitos, tantos que nenhuma tabuada é capaz de contar, mas tem um desses tiros que se fez definitivo. Era um rapaz de 17 anos, conta-se, e já estava, junto com outros dois irmãos, metido com bando de cangaceiros e era um atirador de respeito. Um estrategista, embora nunca tivesse pensado no ofício da guerra. Era tropeiro e artífice do couro, tocador de sanfona também.

Na volta de uma viagem encontra o pai em desespero: tinham lhe roubado umas cabras. Descobriu o ladrão, mas este era protegido do coronel do lugar. Mesmo assim buscou a única justiça possível nos sertões: a lei do próprio braço. Para colonizar aquelas brenhas os homens traziam um pouco de gado e muito de coragem. Não podiam contar com ninguém. E se desavença houvesse, essa teria que ser resolvida no disparo da própria bala. Assim fez o moço, mas precisou viajar e na volta o sítio da família era cinza e os pais, cadáveres. Caiu no cangaço. Numa noite de breu intenso, num combate de grande monta seu tiro clareou o mundo. Isso não é tiro, é lampião, alguém gritou e Lampião ficou sendo desde então; é o que se conta. Certeza mesmo são sua coragem e sua disposição de justiçar o mundo. Mais que homem de carne e osso, Virgulino fez-se lenda.

A música estava no embalo do berço. A mãe era conhecida cantadeira de novenas e incelenças. O pai consertava sanfona e animava forró tocando pé-de-bode. Fazia miséria nos oito baixos. E levava pelo braço, escondido da mulher, o filho, um menino de calças curtas. Nesta transgressão aprendeu a passear os dedos pelo teclado daquele instrumento mágico. Inventada nas brenhas da Europa, a sanfona desembarcou no sertão na bagagem dos judeus errantes, os fugitivos das fúrias governamentais, os cristão-novos.

Para se livrar da melancolia, o homem do sertão puxava o fole nos sambas de latada que o bispo de Olinda proibiu dizendo ser aquela uma festa imoral, isso nos idos de 1735. Tornou-se o instrumento tão íntimo do sertanejo que o menino, crescido, soldado do Exército, tentou dedilhar violão. Faltou jeito, ou foi a sanfona quem falou mais alta, sabe-se lá. O certo é que tirou a farda, botou paletó e gravata e foi tocar valsas e mazurcas nas rádios do Rio de Janeiro. Um dia, livrando uns trocados num cabaré da zona do Mangue, o sanfoneiro ouviu um bando de estudantes pedir para ele tocar alguma coisa do Norte.

Tocou e o sucesso foi imenso. Pelejou com os poderosos da rádio. Pelejou, pelejou. Até que se botou diante do imenso Ary Barroso. “O que o senhor vai tocar?” “Vira e Mexe, uma música do Norte.” “É cada uma que me aparece. Então toque logo essa besteira.” Tocou e o auditório, eufórico, pediu bis. Foi contratado e nunca mais parou de tocar e cantar as coisas do Norte. Criou toda uma estética musical, influenciou uma imensa legião de novos músicos, tocou nas praças nordestinas e nos auditórios do exterior, se fez rei. Distribuiu muitas sanfonas. Honrou um home: Luiz, por que nasceu em 13 de dezembro, dia de Santa Luzia; Gonzaga, por que a mãe, Santana, era devota de São Luiz Gonzaga; do Nascimento, por que dezembro é o mês do nascimento de Jesus.

A ancestralidade nordestina e sertaneja tem base no triângulo fé, resistência e musicalidade. Ela nasce da solidão, do trabalho com o gado, da necessidade de se construir sozinho, de ser forte em tudo. Cícero, Virgulino e Luiz.

Um dia os sociólogos entrarão pela história e descobrirão que esta fé não é fanática. Ela nasce do apega à crença ancestral que reza: mais que a justiça dos homens, o sertanejo em sua solidão carece da força divina para aplacar suas revoltas e privilegiar a labutar, o martelar cotidiano sobre a pedra áspera do chão. Também a violência não é gratuita. Ela é colheita que se faz na precisão de defender a honra e a posse. Sozinho, sem lei nem rei, o homem do sertão tinha Deus no céu e o bacamarte na terra. E para aplacar as fúrias do chão pedregoso e dos homens injustos, nas noites de fogueira e lua tocava viola, dedilhava sanfona, cantava suas mágoas e alegria. E nos dias de sol inclemente, tocava o gado, domava a terra, entoava o aboio. Cícero, Virgulino, Luiz.

O Nordeste mudou. O jumento deu lugar às motos. A polícia e a justiça se espalham por todos os cantos. As igrejas milenaristas e protestantes se desenham em todas as paisagens. A sanfona hoje tem a companhia de guitarras e a zabumba é uma bateria completa. O homem é que é o mesmo em sua ancestralidade. Se não é possível aboiar sobre uma moto, canta pelas porteiras e latadas; se a missa abriu espaço para o culto evangélico, no quarto dos santos tem uma imagem do Padre Cícero; se as rádios empesteiam os ouvidos com gritos breganejos e baladas americanizadas, repinicam uma viola, puxam uma sanfona e cantam para a lua. E como essa gente sabe sorrir com honesta sinceridade.

Não se enganem: Em sua ancestralidade o Nordeste continua sendo Cícero, Virgulino e Luiz.




terça-feira, 22 de março de 2011

Luís Pimentel - Rio, Copacabana, Carnaval 2011

O carnaval do Rio de Janeiro continua sendo o melhor do mundo. Quem diz são os turistas do mundo inteiro que superlotam os blocos de rua, desde o dia em que as escolas de samba (não me perguntem por quê) deixaram de ser o programa preferido deles. 2011 foi o ano em que se festejou, na música brasileira, centenários de nomes ligados ao que há de mais belo na folia (as belas canções), como Assis Valente, Mário Lago, Synval Silva, Pedro Caetano e Nelson Cavaquinho. Também foi, mais uma vez, o ano dos caçadores de mijões.

Também me vejo obrigado a me repetir, uma vez que no ano passado também publiquei crônica e artigo em jornal chiando contra a perseguição neurótica ao xixi, desencadeada pelos fiscais (!) da ordem, que não podiam ver um homem coçar a braguilha ou uma mulher ameaçar ficar de cócoras e já chegavam junto. É claro que, a exemplo de muitos que aqui passam o carnaval, não quero desfilar em mar de urina. Mas não aceito o discurso demagógico de que “era só usar o banheiro químico”. Não tinha banheiro químico para todos, disto sou testemunha. Na apresentação do Rancho Flor do Sereno, aqui mesmo em Copacabana – a mais bela tradução do “foi num carnaval que passou” –, filas de mais de cinqüenta foliões tentavam enganar a bexiga diante de seis (seis! Apenas seis) banheiros unissex.

Mas, como o humor sobrevive a qualquer intempérie, o sufoco inspirou muita gente, como o autor da cantada que ouvi na fila do xixi:

– Você vem sempre aqui, colombina?
– Claro que não, pierrô. Só quando quero mijar.

Ou a solução encontrada pelo genial Alfredinho, comandante do Flor do Sereno, colocando uma caixa cheia de areia sob o palco, para os homens se aliviarem em pé. A uma odalisca que perguntou por que as mulheres não podiam usar “a caixa”, ele respondeu, com essa pérola:

– Porque fere o decoro.

O carnaval sobrevive. Quanto aos caçadores de mijões, só o Alá (lá-ô!) dirá.






segunda-feira, 21 de março de 2011

Luís Pimentel - Oficina do Clube da escrita



O Clube da Escrita inaugura oficina literária de prosa e verso no próximo dia 29 de março, sob a coordenação do escritor Luís Pimentel. É uma oportunidade para escritores iniciantes, candidatos a escritores, ou quem deseja, apenas, adquirir uma boa formação sobre a literatura brasileira e estrangeira.

Pimentel é autor de mais de 30 obras, entre elas os livros de contos Um cometa cravado em tua coxa (Record) e Grande homem mais ou menos (Bertrand Brasil), e os de poesia As miudezas da velha (Myrrha) e O calcanhar da memória (Bertrand Brasil). Também escreve para o público infanto-juvenil. Ministrou oficinas no do Espaço Telezoom, na Estação das Letras, no Armazém Digital, no Centro Cultural da Light e em feiras de livros.

A oficina se dará em encontros semanais de duas horas, das 19h30 às 21h30, sempre às terças-feiras. O coordenador vai elaborar guias de leitura e sugerir exercícios temáticos para a criação da narrativa – em contos, capítulos de romances, textos infanto-juvenis ou textos de humor – ou do verso livre, de acordo com a vocação de cada membro do grupo.

Espaço Telezoom. Rua Mário de Andrade, 48 (Largo dos Leões), Humaitá, Rio de Janeiro. Valor: R$ 200,00. A aula inaugural é gratuita. Mais informações: (21) 3497-7620 ou espaco@telezoom.com.br.


domingo, 20 de março de 2011

Cineas Santos - Da necessidade do fazer - FENAVIPI

Se existe algo que efetivamente me incomoda é ver talento desperdiçado, principalmente numa aldeia como a nossa, tão carente de quase tudo. Não seria força de expressão afirmar que o Festival Nacional de Violão do Piauí nasceu dessa sensação incômoda que, com certa frequência, instiga-me a fazer. Explico: venho acompanhando a trajetória artística do violonista Erisvaldo Borges desde sempre. Não me parecia aceitável ver o esforço empreendido, solitariamente, por ele para plantar as sementes do violão erudito em chão piauiense. Tocando, compondo, ministrando aulas para um punhado de alunos, nosso bravo violonista, sozinho, não conseguiria superar os empecilhos que lhe retardavam a caminhada. Por entender que valia a pena apostar no talento, na competência e, principalmente, na dedicação do Erisvaldo, em outubro de 2004,convidei-o para uma reunião num final de tarde. Meia hora depois, estava formatada a proposta de realização do 1º FENVIPI. Em dezembro do mesmo ano, o festival estava literalmente no ar, uma vez que foi transmitido, ao vivo, pela TV Meio Norte. Sucesso absoluto.

É preciso que se diga que sem a inestimável colaboração do mestre Turíbio Santos, nosso patrono, as coisas teriam sido bem mais difíceis. Turíbio nos abriu muitas portas e, principalmente, avalizou um projeto que poderia não ter vingado. Não nos faltou também o apoio da Prefeitura de Teresina e do Governo do Estado. Por sorte, o público piauiense adonou-se do FENAVIPI e fez dele um evento de expressão internacional. Não se trata – é preciso que se diga – de exagero ou bairrismo. Já marcaram presença em nosso festival artistas do porte de Eduardo Fernandez, Ana Vidovic, Tommy Emmanuel e Xuefei Yang, entre outros. Todos os grandes violonistas brasileiros, de Sebastião Tapajós a Nonato Luiz, já estiveram conosco. Este ano não será diferente. Contando com o patrocínio da Petrobras, a 7ª edição do FENAVIPI trará a Teresina: Yamandu Costa, Victor Valadangos, Ulisses Rocha, Fábio Zanon, Marco Pereira, Mário Ulloa, Fábio Lima, Rogério Caetano e, naturalmente, Erisvaldo Borges.

O que distingue o FENAVIPI dos outros festivais é que, além promover belos concertos para os aficionados do violão, o nosso festival tem caráter eminentemente didático: queremos fomentar o gosto pela música erudita nos jovens, melhorar o nível dos músicos profissionais e amadores do Piauí e, naturalmente, formar plateias. Os resultados já se fazem sentir: nas escolas do município de Teresina, nada menos de 800 crianças têm aulas regulares de violão erudito e teoria musical. Se não houver solução de continuidade, em pouco tempo, estaremos exportando grandes músicos. Assim seja.




quarta-feira, 16 de março de 2011

Uma Noite pra lá de Bagdá



O Coronel fora chamado a Brasília para uma reunião extraordinária com o Ministro do Exército. Havia a possibilidade de ele assumir uma diretoria em uma estatal, recompensa pelos mais de trinta anos dedicados ao verde-oliva. Sua dileta esposa arrumou as malas e o acompanhou até o Planalto Central. Enquanto ele tratava de negócios com o Ministro, ela colocaria as fofocas em dia com a amiga virtual Emilly Sepol. Melhor oportunidade não havia para um tête-à-tête.

Na primeira noite do Coronel e a esposa em Brasília, Emilly Sepol saiu mais cedo da universidade onde assinava ponto e passou no hotel para pegar o casal para uma girada pelos bares da cidade, uma das duas coisas interessantes que existem no Distrito Federal. A outra é a passagem de volta.

O Coronel declinou o convite e preferiu ficar no hotel. Estava cansado da viagem e teria um longo dia pela frente, na manhã seguinte. Ademais, não queria beber naquela noite para não falar com o Ministro exalando bafo de leão.

As duas sacerdotisas de Dionísio, embaladas pela emoção do encontro, chaparam todas e mais algumas, sem dar bolas para o azar. Falaram dos filhos, dos maridos, das sogras, dos vizinhos barulhentos e até do mensalão do DEM. Quando a madrugada se anunciava, resolveram voltar para casa, uma mais bêbada do que a outra.

– Laurinha, cuidado que ali na frente tem um baita de um buraco! (hic!) – alertou Emilly Sepol, conhecedora dos mínimos detalhes da rua de Brasília.
– Cuidado o quê!? (hic!) Quem está dirigindo é você!

Caíram na gargalhada. Cantaram “te amo, Brasília” e na última estrofe Emilly Sepol falou:

– Xiiiii! Tou morrendo de vontade de fazer xixi!
– Eu também!

Emilly Sepol diminuiu a velocidade do carro, procurando um local deserto para desafogar a bexiga. Avistou o cemitério. Estacionou atravessado e desceu correndo para regar o terreno dos mortos. Laurinha correu atrás. Era uma questão de vida ou morte. Do jeito que despejaram a bica, haveria uma farra no Além. Puro malte e cachaça mineira. Das boas.

Aliviada a bexiga, uma se lembrou de que não tinha nada para se enxugar. Pegou a calcinha, se enxugou e jogou fora. A outra resolveu tatear no escuro até encontrar a fita de uma coroa de flores e se secou. Depois as duas saíram abraçadas e cantando Cartola, felizes da vida: “... solte o seu som da madeira / eu você e a companheira / à madrugada iremos pra caaaasa / cantandoooo.”

No dia seguinte, antes da conversa com o Ministro do Exército, o Coronel passou na casa da Emilly Sepol,. Chamou o marido a um canto e falou baixinho para que as crianças não ouvissem:

– Meu camarada, nós temos que ficar de olho nessas duas. Andaram aprontando por aí. A Laurinha chegou de madrugada, completamente bêbada, e sem calcinha. Não faz a mínima ideia de onde deixou ou por que tirou.

– Coronel, se foi só isso você teve sorte! – retrucou o marido brasiliense passando a mão na cabeça – A minha mulher também chegou caindo de bêbada e com uma faixa presa na bunda, escrita assim: “saudades eternas”. Sabe-se lá o que essas duas andaram aprontando ontem à noite! Sabe-se, lá, Coronel!



segunda-feira, 14 de março de 2011

Moacyr Scliar - Meu Querido Antônio Torres


Texto publicado no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 9/11/2002, por ocasião da Feira do Livro daquele ano. Por ironia do destino, hoje, o escritor Antonio Torres disputa a vaga de Scliar na Academia Brasileira de Letras. Torcemos por você, bróder!


Meu Querido Antônio Torres

Em Junco (Bahia), onde nasceu e se criou, Antônio Torres escrevia cartas para os analfabetos moradores da região. Uma ocupação que condicionou, e de forma mais que simbólica, seu destino: escrevendo, Torres se tornou um grande escritor, reconhecido no país e no exterior. Mas é, ao mesmo tempo, um escritor que escreve por aqueles que não podem ou não sabem fazê-lo. É um autor popular, no mais legítimo sentido da palavra. Não é de admirar que obras como Os Homens dos Pés Redondos (1973), Essa Terra (1976) – traduzido pelo menos em 15 idiomas – Carta ao Bispo (1979), Adeus, Velho (1981), Um Táxi para Viena d’Áustria (1991), Meu Querido Canibal (2000) tenham feito sucesso tanto de público quanto de crítica.

Deste sucesso, posso dar um testemunho pessoal. Sou amigo de Torres há muitos anos. Pertencemos à mesma geração literária, a geração que começou a publicar em fins dos anos 60 e começo dos 70, ou seja, no auge da ditadura. Naquela época escrever era uma forma de resistência. Resistência a que Torres engajou-se de maneira admirável. Junto com Ignácio de Loyola Brandão e João Antônio, ele percorreu o país, falando para jovens nos mais remotos lugares. E foi várias vezes para o Exterior.

Nessas viagens, não raro nos encontramos. Era, e é, ocasião para um bate-papo que se continua através do tempo, uma conversa que sempre retomamos. Para mim, com enorme prazer. É impossível não gostar de Torres. Ele é, pessoalmente, o mesmo autor amável e emotivo que encontramos nas páginas de seus livros. É um homem profundamente generoso. E profundamente brasileiro. As platéias estrangeiras sempre o escutam com atenção porque sabem que, através de sua voz, fala o Brasil mais autêntico, o Brasil que também está todo em sua obra. Que também prima pela originalidade. Quem chamaria um canibal de “meu querido”, senão Antônio Torres?

Agora ele está, como já fez muitas vezes, nos visitando*. É uma oportunidade de conhecê-lo, e de conhecer as suas obras. Vale a pena. Nas páginas de Antônio Torres o Brasil escreve suas cartas.     

*Por ocasião da Feira do Livro de Porto Alegre de 2002, quando o escritor gaúcho Moacyr Scliar foi o mediador de uma palestra do seu colega baiano, realizada no Clube do Comércio.