terça-feira, 29 de março de 2011

Edna Lopes - Memórias de um aprendiz de escritor



Certamente que quem escreve tem na ponta da língua o modo como se iniciou no mundo das letras, como leitor e escritor. O fato é que há sempre o que aprender, o que melhorar, seja como leitor que lê o mundo e a palavra ou como escritor, em forma e conteúdo.

Neste livro, de maneira leve e delicada, o autor nos conta numa “ficção autobiográfica” da infância como foi aprendendo a ser escritor. Um menino apaixonado por livros, um escritor apaixonado por livros.

O livro é classificado como infantojuvenil, mas boa leitura não tem idade ou classificação. As dicas são valiosas para quem, como eu, brinca de escrever, ou para qualquer escritor/a mais tarimbado, que se preocupa em escrever com clareza e alguma emoção.

Da vez que ouvi Scliar numa dessas Bienais da vida, guardo a firmeza da palavra, o encantamento com que falava das leituras que fizera ao longo da vida, a delicadeza poética como demonstrava observar o cotidiano.

Por diversas vezes “pesquei” da Folha online crônicas suas, inspiradas em notícias do jornal para abrir reuniões de trabalho, aulas, seminários de formação de educadores. Nos elementos do cotidiano, provocações, reflexões... Nenhum sentimento banalizado, tudo tão humano, tão real, tão poético.

Dias antes de sua morte, reli Memórias e sugeri que Vinícius, meu adolescente tirado a filósofo o lesse...

- Não pretendo ser escritor - respondeu.
- Nunca se sabe...

Transcrevo a primeira parte do livro... Um carinho imenso por cada lembrança de leitura, cada pensamento articulado. Fisicamente não está mais entre nós, mas sua obra estará.

Eternamente, Moacyr.




Memórias de um aprendiz de escritor
Moacyr Scliar

Escrevo há muito tempo. Costumo dizer que, se ainda não aprendi – e acho mesmo que não aprendi, a gente nunca para de aprender -, não foi por falta de prática. Porque comecei muito cedo. Na verdade, todas as minhas recordações estão ligadas a isso, a ouvir e contar histórias. Não só as histórias dos personagens que me encantaram, o Saci-Pererê, o Negrinho do Pastoreio, a Cuca, Hércules, Tarzan, os piratas, Tom Sawayer, Sacco e Vanzetti. Mas também as minhas próprias histórias, as histórias de meus personagens, essas criaturas reais ou imaginárias, com quem convivi desde a infância.

Na verdade, eu escrevi ali em cima. Verdade é uma palavra muito relativa para um escritor de ficção. O que é verdade, o que é imaginação? No colégio onde fiz o segundo grau, havia um rapaz que tinha fama de mentiroso. Fama, não; ele era mentiroso. Todo mundo sabia que ele era um mentiroso.

Uma vez, o rádio deu uma notícia alarmante: um avião em dificuldades sobrevoava Porto Alegre. Podia cair a qualquer momento. Fomos para o colégio, naquele dia, preocupados; e conversávamos sobre o assunto, quando apareceu ele, o Mentiroso. Pálido:

— Vocês nem podem imaginar!
Uma pausa dramática e logo em seguida:
— Sabem esse avião que estava em perigo? Caiu perto da minha casa. Escapamos por pouco.
Gente, que coisa horrível!

E começou a descrever o avião incendiando, o piloto gritando por socorro… Uma cena impressionante. Aí veio um colega correndo, com a notícia: o avião acabara de aterrizar, são e salvo. Todo mundo começou a rir. Todo mundo, menos o Mentiroso:

— Não pode ser!– repetia, incrédulo, irritado.
— Eu vi o avião cair!

Agora, quando lembro este fato, concluo que não estava mentindo. Ele vira, realmente, o avião cair. Com os olhos da imaginação, decerto; mas para ele o avião tinha caído, e tinha incendiado, e tudo o mais. E ele acreditava no que dizia, porque era um ficcionista. Tudo que precisava, naquele momento, era um lápis e um papel. Se tivesse escrito o que dizia, seria um escritor; como não escrevera, tratava-se de um mentiroso. Uma questão de nomes, de palavras.

Palavras. São tudo, para quem escreve. Ou quase tudo. Como a serra, o martelo, a plaina, a madeira, a cola e os pregos para o marceneiro; como a colher, o prumo, os tijolos e a argamassa para o pedreiro; como a fazenda, a linha, a tesoura e a agulha para o alfaiate. Estou falando em instrumentos de trabalho, porque literatura nem sempre parece trabalho. Há uma história (sempre contando histórias, Moacyr Scliar! Sempre contando histórias!) sobre um escritor e seu vizinho. O vizinho olhava o escritor que estava sentado, quieto, no jardim, e perguntava: Descansando, senhor escritor? Ao que o escritor respondia: Não, trabalhando. Daí a pouco o vizinho via o escritor mexendo na terra, cuidando das plantas: Trabalhando? Não, respondia o escritor, descansando. As aparências enganam; enganaram até o próprio escritor.

Gabriel Garcia Marques conta que, quando senta para escrever, gosta de estar rodeado dos mais variados instrumentos: a máquina, vários lápis, tesoura, cola, borracha, grampeador – para sentir como um operário que vai empreender a tarefa; o operário em construção, de Vinícius de Moraes: “Era ele quem fazia casas/Onde antes só havia chão”.

As Palavras são tudo, você disse, Moacyr? Você mentiu, Moacyr. Mais uma vez você mentiu. As palavras não são tudo, e disso você bem sabe. A emoção conta, caro Moacyr. A Emoção, as idéias, as lembranças. Fale um pouco sobre você Moacyr.(...)

Moacyr Scliar

Nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu em fevereiro de 2011. Autor de mais de 70 livros, uma obra que abrange vários gêneros: ficção, ensaio, crônica e literatura juvenil. Muitos destes foram publicados nos Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha, Portugal, Suécia, Argentina, Colômbia, Israel e outros países, com grande repercussão crítica. É detentor dos seguintes prêmios, entre outros: Prêmio Joaquim Manoel de Mace­do (1974), Prêmio Erico Veríssimo (1976), Prêmio Ci­da­de de Porto Alegre (1976), Prêmio Guimarães Rosa (1977), Prêmio Brasília (1977), Prêmio Jabuti (1988, 1993 e 2000), Prêmio Associa­ção Paulista de Críticos de Arte (1989), Prêmio Casa de las Américas (1989), Prêmio Pen Clube do Brasil (1990), Prêmio José Lins do Rego (Academia Brasileira de Letras, 1998). Formou-se em medicina em 1962, especializando-se em saúde pública. Viajava frequentemente, tanto no país como no exterior, para congressos e conferên­cias; em 1993 e 1997 foi professor visitante na Brown University (Departament for Portuguese and Brazilian Studies), nos Estados Unidos.

Moacyr Scliar foi colunista dos jornais Zero Hora e Folha de S. Paulo e também colaborou em vários órgãos da imprensa no país e no exterior. Muitos de seus textos foram adaptados para cinema, teatro, tevê e rádio, inclusive no ex­te­rior. Em 2003, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Adaptado por mim do site http://www.lpm-editores.com.br/




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