sexta-feira, 15 de abril de 2011

Maurício Melo Júnior - Um italiano em Realengo



Éramos adolescentes e à noite saímos para farrear pelas ruas da cidadezinha do interior. Não trazíamos maldades no peito e, àquela época, era possível vadiar, violão às costas, pelas madrugadas de música e literatura. Tínhamos pretensões que se frustraram com o passar dos anos, sonhos amalgamados no barro do real e discutíamos sobre as culturas que nos chegavam pelos livros, os jornais, as televisões.

Certa feita um de nós trouxe à tiracolo um novo amigo. Alto e magro, não falava uma palavra em português. Era italiano, sobrinho de um dos padres da cidade. Nunca soubemos ao certo o motivo de sua visita. Especulávamos uma possível fuga da Máfia, uma desilusão amorosa, mas, pelo que afiançava o moço, queria somente conhecer o mundo e o tio pagou sua passagem para o Brasil. Era um dos nossos. Também queríamos o mundo que estava além da estrada que nos levava ao Recife, que nos trazia outras expressões da vida.

Com português e italiano canhestros, nos entendíamos. E banhamos as noites com canções napolitanas. E haja cerveja para alentar as quentes horas noturnas. Na volta de uma farra o italiano – acho que se chamava Marcelo ou tinha cara de Marcelo – resolveu nos mostrar como se divertiam os civilizados europeus. Desembalou na carreira e pulou com os dois pés sobre o capô de um carro. Corremos horrorizados e medrosos deixando o carro bem amassado. Na praça mais próxima, ofegantes, passamos a julgar o amigo. Ali na ingênua cidadezinha não havia espaço para o barbarismo.

Vivíamos em um outro clima, onde a violência estava para além das fronteiras, para além das ruas. O crime mais bárbaro que presenciamos, um assassinato à sangue frio em plena rua, ao bater do meio-dia, nos era tão distante quanto Cabrobó, a cidade onde o criminoso resolveu se homiziar. E hoje, não sem certo horror, assistimos a violência em nossa porta. E, como faria Aldir Blanc, não conseguimos fechar nossa janela. Tudo nos chega com cores de espetáculo, com timbre de glamour. Nós que cantávamos: alô, alô Realengo.

Agora basta ligar a televisão e Realengo nos dói e a demolição do Japão nos fere. Já não há isolamento possível. Escutamos os tiros disparados nas escolas. Sentimos o cheiro do sangue de cada um dos doze meninos mortos. E esquecemos de secundar Gilberto Gil: Alô, alô Realengo, aquele abraço, alô torcida do Flamengo, aquele abraço. Alô, alô seu Chacrinha, velho palhaço, alô, alô Terezinha, aquele abraço…

Chacrinha já não balança a pança, não buzina a moça, não comanda a massa. O mundo, que era amplo, estreitou. E os telejornais insistem no bárbaro. Uma estranha comunicação da barbárie toma lugar daquilo que os perplexos comunicólogos – sou jornalista, nunca serei comunicólogo – diante das graças do Velho Guerreiro chamaram de comunicação do grotesco. Nos tempos quando vadiávamos na madrugada, grotesco era mostrar belas dançarinas, oferecer bacalhau para a platéia, ri do calouro desafinado.

De que chamaremos agora o circo televisivo?

Fui ingênuo, mas jamais culpei a imprensa pelos males todos do mundo, entretanto, há a glamourização da violência. A insistência em se mostrar a degradação nos insensibiliza e já a morte de um anjo sertanejo não nos comove. Aprendi jornalismo acreditando que notícia é quando um homem morde um cachorro. Ou seja, nos interessava o inusitado. Hoje parece interessar o escárnio, a degradação.

loucura ganhou cores de fanatismo e as crenças servem de justificativa para tudo. Às vezes, diante dessas reflexões, acho que envelheço sem tempo para entender o mundo. A geração de meus filhos exportou o culto à violência. É isso amigo Belchior, nossos ídolos não são os mesmos e a aparência do assassino é a mesma de um moço bancário que chora com a dor do Cristo. E de repente faz eclodir todas as dores.

Quem um dia se horrorizou com um capô amassado definitivamente não consegue entender o poder dos fuzis, de suas balas cruzando o céu noturno do Rio de Janeiro que continua lindo, mesmo com projéteis varando o peito de universitários. Acreditamos na educação e estudávamos com as armas possíveis. O extremo tecnológico somente nos permitia trabalhar com um gravador de fita cassete, e isso já nos levava à ousadia de balançar um italiano cambembe e conversávamos com o amigo, uma espécie de Marco Polo a contar maravilhas de terras distantes.

Em suas palavras renasciam a tradição milenar de Roma com Augustos e Césares e Rômulos e Remos. Dos balcões de Veneza Romeu seduzia Julieta e até a prostituta Giuliete Masina era cândida e doce, mas na bagagem vinha a violência gratuita e vazia. Nós lhe ensinamos a paixão pela noite, pela canção. E descobrimos seu lado humanitário, afinal não tínhamos Bruna Surfistinha nem loucos disparando nos cinemas, nas escolas, nas favelas. O bandido que mais nos assustava era Galeguinho do Coque que se converteu, tornou-se crente e foi flagrado roubando o óbolo da igreja.

Como era também ingênuo meu antigo amigo italiano – se chamava Marcelo?

Um dia assistíamos a um filme que fora rodado na cidade onde ele morava. E o rapaz chorava com cada lembrança e gritou dentro do cinema quando na tela apareceu, por segundos, sua velha casa. Era enfim um homem que sentia saudades e carregava a capacidade de se emocionar, embora no mesmo matulão transportasse a revolta de uma juventude que, com quase tudo à mão, buscava emoção na revolta infundada.

Quem sentirá saudades de hoje? Quem irá chorar diante de sua casa registrada numa tela do futuro?

Alô, alô Realengo, esperanças e aquele abraço.


terça-feira, 12 de abril de 2011

Cineas Santos - Ecos do Fenavipi


De Leonardo

Quando ousamos pensar na possibilidade de realizar um festival de violão em Teresina, fomos acossados por duas perguntas que se manifestavam com incômoda frequência: Por que um festival de violão no Piauí se já existem grandes festivais em outros estados brasileiros? Por que realizar um festival de violão numa cidade sem qualquer tradição em matéria de música do gênero? A resposta estava engatilhada: porque os grandes festivais que se realizam em Brasília, Londrina, Belo Horizonte e outras regiões do país são excelentes, mas não são nossos. Quanto à tradição, basta inventá-la. Assim, numa atitude quase temerária, realizamos a primeira edição do Festival Nacional de Violão do Piauí em dezembro de 2004. É ocioso enumerar aqui as dificuldades que enfrentamos para dar o primeiro passo: quem já tentou sabe o que significa pioneirismo; quem nunca tentou jamais entenderia. O certo é que, com o inestimável aval do mestre Turíbio Santos, fizemos um festival de altíssimo nível. Já na terceira edição, o FENAVIPI foi considerado pela revista “Violão-Pro” o principal festival de violão do Norte e Nordeste. Ao longo desses anos, não nos afastamos da filosofia que nos inspirou desde o primeiro momento: realizar um festival que, além de promover belos concertos musicais, pudesse propiciar aos músicos piauienses, notadamente aos jovens, o necessário diálogo com violonistas do porte de Eduardo Fernandez, Fábio Zanon, Marco Pereira, Turíbio Santos, Ana Vidovic, Guinga, entre outros. A estratégia tem dado certo. Para confirmar essa verdade, basta ver o número de crianças e adolescentes estudando violão e teoria musical nas escolas de Teresina.

Para realizar a 7ª edição do festival, inscrevemos o FENAVIPI num dos editais da Petrobras que, pela segunda vez, nos honra com o seu inestimável apoio, clara demonstração de que estamos no rumo certo. Pelo número de estudantes inscritos, pela presença maciça do público nos concertos, pela repercussão alcançada na mídia piauiense, mesmo antes do término do festival, podemos afirmar que os resultados superaram as expectativas. Para nós, é gratificante ver os “filhos” (Josué Costa, Felipe Vilarinho, Emanuel Nunes, Damião Bezerra) e os “netos” (Caio Leon e Leonardo de Caprio) do FENAVIPI brilharem entre estrelas de primeira grandeza. Leonardo bem que poderia ser nossa mascote: há três anos, “tocava” violão num prosaico cabo de vassoura. Hoje, aos 11 anos, é capaz de ler uma partitura e executar uma peça de certa complexidade. As irmãs do garoto, que tem nome de astro de cinema, também tocam violão, inclusive a pequena Mona Lisa, com apenas sete anos de idade. O FENAVIPI demonstra que não há instrumento mais eficiente para elevar a autoestima de um povo do que a cultura.Basta acreditar e investir.




domingo, 10 de abril de 2011

Luís Pimentel - Histórias de encontros e desencontros

Compaixão

Deu um beijo molhado, alisou seus ralos cabelos, jurou amor eterno e subiu os degraus da porta do ônibus. Pela janela, atirou mais um beijo, encostando os lábios nos dedos e soprando em sua direção. Juntamente com o comentário, cheio de compaixão:

– Não chora, amoreco. Já disse que volto.
– Jura?
– Quem jura mente. E se cuida direitinho, viu?
– Vi.
– Toma sopinha, pega sol da manhã, não sai no sereno.
O ônibus partiu, e ainda bem. Pois o jovem namorado, na poltrona aos fundos, já começava a demonstrar impaciência.

Companhia

Conheceram-se num cabaré da Praça Mauá.

Kátia Cilene fora desonrada à força pelo patrão, expulsa de casa pelo padrasto. Aquela história. Baiano, por sua vez, não tinha história nenhuma. Perdia os dentes e a esperança em canteiros de obras, os poucos sorrisos reservados ao futebol, nas tardes de domingo.

A paixão foi imediata. Pensou que deveria retirá-la daquela vida sem rumo. A outra aceitou a generosa companhia. Até descobrir que Baiano – sequer a curiosidade de perguntar o nome dele – morava num quartinho minúsculo, em Brás de Pina.

Kátia se desculpou com o companheiro, deixa como está, e retornou à Praça Mauá. Morar tão longe do Centro, sabe como é.



Fogo morto

Por anos e anos e muitos anos, o velho José guardou dinheiro no colchão. Fez o rasgo com uma faca, e ali enfiava, em meio ao capim, todas as notas que lhe sobravam após as compras semanais que fazia.

E ninguém sabia. O dinheiro faltava, o dinheiro sumia, o segredo espremido entre o corpo e as notas quentinhas que ele amassava todas as noites.

Morto o velho, os filhos se prepararam para tocar fogo no colchão onde todos nasceram. Ao retirá-lo da cama, a fenda aberta cuspiu capim seco e notas e mais notas amareladas e sem nenhum valor. Juntaram e somaram tudo, talvez fosse suficiente para pagar o caixão. Nem isto. Ninguém queria revelar a usura, exibida apenas no comentário baixo e minúsculo da viúva:

– Tanta fome passada com os meus filhos. Enquanto a vida apodrecia junto contigo, infeliz.



sexta-feira, 8 de abril de 2011

Juca Kfouri - Uma derrota que jamais esqueceremos

Ontem o Brasil sofreu uma das maiores derrotas de sua história de mais de 500 anos.
Que Maracanazo, que Sarriá, que nada!
Realengo é o nome da tragédia, tragédia de verdade.
O Brasil perdeu 12 crianças estupidamente.
Quem sabe se perdeu um Pelé, uma Maria Esther Bueno, uma Hortência.
Ou uma outra Elis Regina, uma Dilma Rousseff.
Sabemos que perdemos uma Ana Carolina Pacheco da Silva, uma Bianca Rocha Tavares, uma Géssica Guedes Pereira, Karine Lorraine Chagas de Oliveira, uma Larissa dos Santos Atanázio, outra Laryssa, esta Silva Martins, uma Luiza Paula da Silveira, uma Mariana Rocha de Souza, uma Milena dos Santos Nascimento, uma Samira Pires Ribeiro, um Rafael Pereira da Silva e mais um menino cujo nome ainda não foi revelado.
Todos entre 12 e 15 anos.
Doze famílias choram hoje neste manhã que não tem bom dia a perda de seus filhos, de seus netos, de seus irmãos.
Dez garotinhas e dois garotinhos.
Uma desgraça que não permite falar de mais nada.

Comentário para o Jornal da CBN desta sexta-feira, 8 de abril de 2001.


quarta-feira, 6 de abril de 2011

A Fuga


O médico-cirurgião retirou a chapa radiológica do envelope, examinou-a cuidadosamente usando a luz da janela, recolocou-a de volta no envelope e diagnosticou:

– O raio-X mostra claramente que houve uma redução não anatômica do cotovelo e por causa disso seu irmão não consegue articular o braço normalmente.
– Mas Dr. Alberto, me diga uma coisa: uma cirurgia restabeleceria o movimento do braço?
– Veja bem: como já se passou muito tempo, a cirurgia se torna muito arriscada e não garanto sucesso. Temos que abrir o braço na região do cotovelo, fazer raspagem nos ossos, depois encaixá-los em seu devido lugar. Mas, repito: não garanto sucesso.
– Quais as chances?
– Isso, infelizmente, não sei lhe responder. Por outro lado, como ele é muito novo, a chance de recobrar o movimento fazendo fisioterapia é bem maior.
– Não, doutor. De onde viemos não há como fazer fisioterapia. Prefiro arriscar a cirurgia. Marquemos a data, pois preciso viajar pra São Paulo. Minhas férias estão acabando.

Da antessala do consultório eu ouvia toda a conversa do médico com o meu irmão. Tinha sete anos de idade e ainda não sabia diferenciar o confiável do perigoso. Se o meu irmão achava que o médico deveria me operar, bem achado estava. Mesmo porque, de onde vim, menino e tamanco ficavam debaixo do banco.

Era um final de tarde e pela janela do consultório assisti deslumbrado ao pôr de sol na Baía de Todos os Santos. Bahia de todos os encantos. O mar sôfrego chupava o sol em desejo imoderado e as águas tranquilas espelhavam a vermelhidão do céu anil, muito mais bonito que o arrebol atrás do Cruzeiro dos Montes, cujo horizonte rúbeo enlevava as almas rudes e conduzia os céticos à presença divina.

No caminho do consultório para a casa onde nos hospedáramos, no Terreiro de Jesus, havia uma praça muito bonita, de onde se via a Baía de Todos os Santos. A Praça do Poeta, disse meu irmão. Existiam outras praças, mas não eram tão bonitas quanto aquela. Perto de casa havia uma igreja toda de ouro e outra chamada de catedral basílica. Sair da roça diretamente para a capital foi um choque cultural imensurável. Sequer imaginava haver vida além da Ladeira Grande, o caminho de saída ou de retorno da pequena cidade, o limite entre o real e os sonhos dos do lugar. Não conhecia água encanada, dormia à luz de candeeiro, acordava mal o sol raiava para rezar a Ladainha de Nossa Senhora, andava em garupa de jegue e agora estava ali, no coração da velha Cidade da Bahia, e tudo era novo, tudo era um deslumbramento total. No dia anterior meu irmão me levou para conhecer o mar. Não consegui articular palavra diante daquela visão extraordinária. Léguas e léguas a perder de vista de um tapete azul-marinho. O meu irmão me contou que existiam milhares de mares como aquele e que eles se uniam e davam a volta ao mundo. Como era possível tanta água num lugar só e gente morrendo de sede em outros? Na minha terra, andava-se quilômetros por um pote d’água. O padre, que obrigava o povo a subir de joelhos a ladeira íngreme e encascalhada do Cruzeiro dos Montes em remissão dos pecados, devia saber que Deus privilegiou alguns nas Suas sublimes escolhas.

Chegando a casa meu irmão me chamou a um canto e me falou que precisaria retornar a São Paulo e que eu ficaria aos cuidados dos donos da casa, que eram seus amigos desde os tempos de foca no Jornal da Bahia. A cirurgia aconteceria duas semanas depois, que não me preocupasse não, ia dar tudo certo, confiava no médico, e que no final do mês seu amigo Giese se encarregaria de me levar embora.

Acordei no dia seguinte e não encontrei meu irmão, como nos dias anteriores. “Viajou logo cedo, no escuro”, me disse D. Maria, sorriso bondoso nos lábios. Ela passara de nossa anfitriã a responsável direta por mim. Disfarcei a apreensão de me ver sem nenhum parente em terras alhures, mas, com o passar do tempo, não conseguia disfarçar a tristeza pelos dias iguais que vivia. A casa era um puxadinho no fundo de um sobrado no Terreiro de Jesus, reduto de velhos marinheiros, proxenetas e putas. Dois quartos minúsculos e uma sala que mal cabia a mesa de jantar. O sofá ficava do lado de fora, na varanda sombria, protegida por um muro espremido entre dois velhos prédios. O bem mais valioso da casa era um rádio de pilha que seu Petrônio, o marido de D. Maria, levava todos os dias para o trabalho. No portão, um letreiro avisava tratar-se de casa de família.

Havia mais duas mulheres na casa: Lucy e Judith, filhas de D. Maria. Ambas trabalhavam no comércio da Avenida Sete e, como seu Petrônio, saíam cedo e voltavam à noite, reclamando do cansaço. Somente D. Maria não trabalhava fora e eu passava o dia remoendo saudades pelos cantos. Não havia nenhuma criança para brincar, nem podia sair à porta de casa sozinho. À noite, depois do jantar, as duas mocinhas me contavam histórias e me faziam afagos até dormir em uma cama improvisada na sala, desfazendo a carranca que aumentava com o passar dos dias.

No domingo levaram-me a passear. A solidão era tanta que a Velha Bahia perdera o encantamento. Subir e descer o Elevador Lacerda, andar de bonde ao léu, admirar o pôr do sol da balaustrada da Praça do Poeta já não me fascinavam mais. Ao retornarmos a casa, pensei nos meus irmãos Guidório e Badego, o primeiro, mais velho, o segundo, mais novo que eu. Que estariam fazendo àquela hora? Será que sentiam a minha falta do mesmo jeito que eu sentia a deles? Súbito, ouvi os apelos de minha mãe ecoar na memória:

– Desça dessa jega, menino! Se lembre que seu primo Jucinaldo caiu de uma e quebrou o braço!

Preocupação de mãe é vaticínio. Entre o falar e o cair foi só piscar e coçar. Badego meteu um pau no cu da jega e ela empinou, se contorceu, deu uma upa e fui ao chão, batendo o cotovelo numa pedra. Uma dor aguda e o braço balançando, sem obedecer ao meu comando. Ouvindo os gritos de dor, minha mãe adivinhou o sucedido e mandou Guidório chamar o farmacêutico na rua. Era o único que encanava braço nas redondezas. Hospital, só em Alagoinhas, cem quilômetros além da Ladeira Grande.

O farmacêutico chegou montando um jegue. Caindo de bêbado. Ele e o jegue. Mesmo assim encanou o meu braço, improvisou uma tala com pedaços de ripa, fez uma tipoia com um pedaço de toalha e foi embora, sem receitar um analgésico ou anti-inflamatório. Um mês depois, quando a tala foi removida, minha mãe compreendeu que não se deve confiar serviço ortopédico a um alcóolatra, principalmente em se tratando de luxação: o meu braço não dobrava no cotovelo. Segundo o Dr. Alberto, o encanamento mal feito causou uma sub-luxação, mas a minha mãe nunca soube disso. Para ela, era braço mal encanado mesmo.

Depois do passeio, Lucy, a filha mais nova de D. Maria, me chamou a um canto, perscrutou o ambiente à caça de algum ouvido indiscreto, e depois falou baixinho, quase em cochicho:

– Morro de pena de lhe ver nessa tristeza sem fim, Tonico. Você deve sentir muita falta de seus irmãos e seus amigos, né? E ainda falta uma semana pra você ser operado. Parece pouco tempo, mas quando o sofrimento é muito a dor paralisa as horas. Juntei um dinheirinho e se você aceitar eu lhe dou pra você ir embora pra sua casa.

Olhei-a num misto de espanto e contentamento. A esperança renascia naquele oferecimento. Estaria falando sério ou apenas me provocando?

– Você fala a vera? Você me deixaria ir embora?
– Deixaria, não; deixo. Se eu lhe ensinar como pegar o trem para Alagoinhas, você sabe chegar em casa sozinho?
– Em casa não, mas em Alagoinhas tenho alguns parentes. Também, na vinda, dormimos na casa da mãe de Giese, o amigo do meu irmão que nos trouxe até aqui. Não sei o endereço, mas meu pai fala aos amigos que fica na Rua do Cruzeiro, perto do Jardim dos Macacos. Na estação de Alagoinhas eu pergunto. E a casa da mãe dele eu sei qual é.
– Então vamos fazer assim: amanhã eu venho pra casa meio-dia, digo que vou dar uma volta com você, lhe deixo no bonde que vai pra estação de trem da Calçada, e de lá você segue seu caminho. Já me informei na estação: o trem sai às quatro horas da tarde e chega em Alagoinhas por volta das sete horas da noite. Combinado?
– Combinado!

No outro dia, saciada a fome do meio-dia, arrumei a minha maleta e passei às escondidas a Lucy. Ela saiu furtivamente e retornou, instante depois, sorridente e sem a maleta. Puxou-me pela mão e avisou à mãe que iríamos dar um passeio. Acenei um adeus tímido a D. Maria e apressei os passos antes que o remorso pela minha saída sorrateira me impedisse de levar adiante a minha fuga.

Na rua, pela primeira vez, desde a minha chegada, senti o contraste entre o deslumbramento e a realidade. Vi a imponência da Igreja de São Francisco no final da rua e confidenciei a Lucy minha incompreensão em ver tanto ouro dentro da igreja e a grande miséria do lado de fora. Ela disse que também não entendia a diferença entre a humildade que os padres pregavam e a ostentação que a Igreja praticava.

– É por isso que sou de Oxalá e um dia você vai saber o que quero dizer – completou.

Caminhamos de mãos dadas em direção do Elevador Lacerda, onde nossos destinos se separariam para sempre. Os olhos marejados de Lucy no abraço de despedida foram a única imagem da Cidade da Bahia que conservei na parede da memória.


domingo, 3 de abril de 2011

Maurício Melo Júnior - A infância invisível

Foi Jorge Amado quem primeiro me deu notícia deles.

Era um romance meio proibido, apesar de sua longa idade. Beirava os quarenta anos quando a década de 1970 estava pelo meio, ainda era lido com olhos de escândalo e seu texto somente falava de uma tensa questão social. Pelo sim pelo não foram as palavras que eu podia ler sem medos ou restrições – não me lembro de meus pais terem me proibido nenhum leitura; eu que cheguei, por influência de Tim Maia, a ler O Universo em Desencanto, bíblia de uma seita meio hippie de então –, pelo sim pelo não, dizia, foi Jorge Amado e seu romance que levaram meus olhos a enxergar a infância invisível que circundava minha quase adolescência.

Eram meninos afoitos e libertos, mas não tinham o heroísmo vadio dos personagens jorgeanos e moravam em Palmares. O líder do grupo chamava-se Calango, um homossexual ingênuo, com voz de comando e uma indizível capacidade de revestir todas as atitudes com uma capa lúdica. Gostava de nos mostrar como batia a carteira dos matutos e roubava o relógio dos cidadãos.

A rigor não temia nada, só Luiz Guarda, um policial arbitrário que costumava matar todos os ladrões que encontrava. E enquanto não se deparava com seu destino fatal, Calango se divertia correndo e brincando nas ruas da cidade. Poderia ter presença no romance de Jorge, mas seu tempo era outro, e os capitães da areia me parecem mais reais que a realidade vista de minha janela adolescente.

Não sei o fim de Calango. Acho que quando sai de Palmares ele já não andava pelas ruas. Foi pro Recife? Morreu? Ajustou-se? Impossível saber. Sua invisibilidade ganhou densidade e ele não pertencia ao grupo de meninos que tentava nos arrancar algum trocado enquanto bebíamos pelos bares da Boa Vista. E sempre duvidávamos de seus apelos.

Certa feita um deles se achegou à mesa pedindo dinheiro para comprar comida. Desconfiando de seu pedido, oferecemos sanduiche. E o menino devorou. Agradeceu olhando com olhos súplices para nosso petisco. Oferecemos outro sanduíche. Devorou três ao todo.

Em sua invisibilidade tinha fome e nenhum futuro.

Seus pares espalhavam-se por todos os cantos.

Conheci um deles em Matriz de Camaragibe. Era prestativo, carregava as compras de quem se dispunha a dar-lhe algumas moedas na feira da cidade. Como o morador do cais da Bahia, Perna-Seca, tinha um perna comida pela poliomielite, mancava e chamava-se Pé-de-Bombo. Mais do que viver, brincava pelas ruas escaldantes da cidade, pela praça Bom Jesus, um descampado onde nas festas de Ano-Novo se armavam barracas de madeira para as funções da pândega, os jogos e as bebidas.

Dia dois de janeiro, passada a procissão e fechadas as barracas, sobravam as armações de madeira. Liderando um bando de cangaceiros lúdicos, Pé-de-Bombo se encarregava de derrubar os restos. Aquelas estranhas ruínas que ainda recendiam a madeira nova caiam, uma a uma, na força lúdica do lazer dos meninos que logo sumiam, iam brincar noutros terreiros, deixando aos garis a necessidade de recolher os novos restos.

Eu que os aprendi a olhar nas páginas da literatura, sem cheiros desagradáveis e com o futuro trágico ou glorioso descrito no final do volume, ainda me surpreendo.

Ceio que o precursor de todos eles, pelo menos nos livros, foi Leonardo, o herói de Manuel Antônio de Almeida, das Memórias de um Sargento de Milícia. Era no tempo do rei Dom João VI que ele reinava no Rio de Janeiro. Abandonado por pai e mãe, vivia entre a liberdade das ruas e o pouco rigor da casa do padrinho, o barbeiro que “arranjou-se”. O mundo era tão outro que das ruas Leonardo também “arranjou-se”.

De outras leituras – dos jornais, das revistas – vejo crescer a invisibilidade dessa gente e os alertas vêm de longe, muito longe.

“E o garoto de doze anos, raquítico e cínico, encostado num poste, escolhe entre os passantes precisamente aquele que sabe ingênuo e facilmente enganável. É um psicólogo instintivo, no excesso de pó que cobre o rosto de certa senhora descobre a infalível beata, a dona da bolsa cheia de níqueis destinados aos mendigos que possa encontrar no caminho…”

Eu ainda encontro esse garoto de doze anos, não cresceu, embora José Carlos Oliveira o tenha visto nas ruas do Rio de Janeiro e era novembro de 1953. O tempo teima em não passar para essa gente invisível. Continuam vagando na vastidão, Carlinhos, pois “sobre os desmandos e a insensatez dos adultos paira a inocência infantil”.

Enquanto isso fazemos literatura, enquanto isso o real escarra em nossos rostos escanhoados todas as manhãs.

Pouco antes das seis da madrugada, no Núcleo Bandeirante, cidade-satélite de Brasília, um menino brincava com uma cadeira de rodas. Descia na disparada possível a rua de baixo declive. Estava feliz. Disse um galanteio chulo para duas senhoras que passavam de roupa justa com destino à academia. Elas não deram bola. “Coitado, deve estar varado de crak”, diagnosticaram. E o menino, nem-aí-seu-souza. Corria com a cadeira que tomara emprestado a outro miserável. Já estava invisível.

Os olhos bem formados somente costumam enxergá-los nos noticiários, na narrativa de tragédias que nenhum Sófocles escreveu.

Todos perderam a ingenuidade, já não se assinam Pedro Bala, Calango, Leonardo, Pé-de-Bombo, não esperam a senhora maquiada nas esquinas, não pedem sanduíches. Cresceram suas necessidades e suas encruzilhadas são bem mais cruéis e doloridas.

Cresceu também nosso distanciamento.

Pela televisão, impotentes, ou indiferentes, assistimos o balé macabro. Vestidos de trapos, andrajos, jogaram fora as latas de cola que já nos chocou e fumam crak com o prazer danado de quem caminha para a indesejada. A certeza de que não chegam a lugar nenhum nos transmite a segurança de que não carece enxergá-los. Até a lei os apaga da vida. São inimputáveis, não são responsáveis, e nesta condição, são canteiros férteis para a criminalidade de outros tantos.

E no meio do desalento, na calçada de um edifício em Maceió, por esses dias, esperando um amigo, vi a polícia acossando essa infância invisível. Um deles, idade indefinida, talvez doze anos, levantava com seus trapos. Dormia sob uma árvore. Caminhou até a árvore mais próxima. Voltou a dormir. Seu amigo, um pouco mais velho, ensaiou um discurso. Deus está vendo. Chamou a polícia para nos expulsar daqui. Nós não roubamos, queremos só viver. E porque estão na rua? Minha mãe morreu. Não tenho pai nem para onde ir. E essa corda aí na árvore? Só um balanço; a gente precisa se distrair, né? É.

A ausência do espaço lúdico, da solidariedade, da esperança.

E aí fechamos a porta e abrimos um livro. A legião de excluídos, espectros vivos, ganha a rua na solidão da madrugada fria.

O mundo pode dormir em paz.


sábado, 2 de abril de 2011

Cineas Santos - A celebração da amizade


Corria o ano da graça de 77 e, apesar da ditadura, imperava entre nós a crença na “salvação” do planeta, na iminência de uma luminosa revolução cultural e, principalmente, na construção de um mundo mais justo e mais fraterno. Sonhos juvenis, irrealizáveis, mas necessários. Movido por esse desejo de mudanças, juntei um grupo de jovens – Paulo Machado, Fernando Costa, Alcide Filho, Rogério Newton e Margarete Coelho – e decidimos construir uma ponte cultural entre Teresina e o sertão do Piauí. Amontoados num velho fusca verde-sonho, iniciamos nossa peregrinação por São Raimundo Nonato onde, anualmente, realizava-se uma semana universitária. Levamos uma bela exposição do pintor Fernando Costa que, sozinha, falava mais que a nossa arenga de pregadores. Animados com os resultados, fomos a Oeiras, Floriano e já nos preparávamos para ir a Corrente, quando a gasolina do fusca acabou. Como não éramos financiados por ninguém, encerramos nossa errática aventura na vizinha cidade de José de Freitas.

O projeto durou pouco, mas as sementes foram lançadas em terreno fértil. 34 anos depois, aqui estamos lançando o CD A Cara Alegre do Piauí – a celebração da amizade. Hoje, com mais de 30 integrantes, o Cara Alegre pode orgulhar-se de sua trajetória festiva e consequente. Percorremos praticamente o Piauí inteiro, de Teresina a Guaribas, ensinando, aprendendo, convivendo, compartilhando. A filosofia do projeto continua a mesma: o saber não compartilhado é inútil. Para mim, é motivo de orgulho coordenar uma caravana que conta com a participação de figuras do porte de Raimundo Nonato Monteiro de Santana, Fonseca Neto, Paulo Machado, Erisvaldo Borges, Maristela Gruber, Luíza Miranda, Rosinha Amorim, Wilker Marques, Vanda Queiroz, Carlos Martins, Carla Fonseca, Gabriel Archanjo, Adriana Medeiros, Josafá,Catarina Santos,Geni Costa, Graça Vilhena,Agostinho Ferraz, Margareth Leite, Jeferson Barbosa, Rosinha Pereira, Gílson Fernandes, Tânia Martins, Antônio Amaral, Sid Ribeiro, Ilza Bezerra, Vagner Ribeiro, Wanya Sales, Josué Costa, Beto Boreno, Gílson Caland, Adelino Frazão, entre outros.

O nome do projeto foi sugestão do professor e poeta Fernando Ferraz que, com um argumento irrefutável, nos convenceu: “Ao longo dos séculos, o Piauí sempre se mostrou triste, pobre, acanhado. O máximo que conseguimos foi a piedade de alguns e o escárnio de outros. É hora de mostrarmos a face alegre e luminosa do nosso estado: a cultura e a arte que dão brilho à nossa existência”.

Por oportuno, vale lembrar: o projeto continua com as portas abertas. Para integrar a caravana, basta disposição para servir e alegria de compartilhar. Vinde, pois, “que a messe é muita e os trabalhadores poucos”.



quinta-feira, 31 de março de 2011

Edna Lopes - Roubo de Merenda Escolar em Alagoas

Nós vos pedimos com insistência
não digam nunca:
isso é natural!
diante dos acontecimentos de cada dia
numa época em que reina a confusão
em que corre o sangue
em que o arbítrio tem força de lei
em que a humanidade se desumaniza
não digam nunca:
isso é natural!
para que nada possa ser imutável!
Bertolt Brecht


Certamente muitos conhecem a expressão "Mais fácil que roubar pirulito de criança". Graças à impunidade que grassa em Alagoas é possilvel que mude para "Tão fácil quanto roubar merenda escolar de criança "...

Todos nós já vimos esse filme de horror pelo menos mais de uma vez e nem é preciso ter boa memória... A Operação Guabiru, há sete anos atrás, prendeu vários prefeitos alagoanos, secretários municipais, empresários e indiciou outros tantos envolvidos no desvio da verba da merenda escolar, mas ninguém foi julgado até agora.

A falta de caráter e escrúpulo de vários dirigentes e suas famílias, pessoas que abusam da boa fé, que enriquecem com expedientes desse tipo, parece ser algo natural por essas bandas.

"Em um estado, o nosso, em que mais da metade a população apenas sobrevive, chamar os que roubam o dinheiro da merenda escolar de ladrões é apenas elogiá-los. Repito: em um estado com pouco mais de três milhões de habitantes, registrando uma pobreza de 900 mil pessoas, que se somam a 760 mil miseráveis, os tais a quem nos referimos acima devem ser tratados por assassinos, homicidas, ou – talvez a melhor definição: latrocidas – aqueles que matam suas vítimas depois de roubar." (Ricardo Mota) leia mais http://blog.tudonahora.com.br/ricardomota/

Tem razão, meu caro! E a minha cota diária de indignação transborda! Como cidadã que paga seus impostos, portanto banca a farra dessa corja, e também como educadora, é meu dever botar a boca no trombone, anunciar, denunciar, exigir que a justiça se faça, pois em todos os municípios alvo da ação da PF e da CGU, a merenda escolar tem um peso fundamental para garantir os estudantes na sala de aula.

Sim, eu sei que escola não é "restaurante mirim", mas a desnutrição é uma das causas da não aprendizagem dos alunos e não vamos fingir que não sabemos que há familias que sobrevivem (?) com meio salário mínimo. Não vamos achar que uma corrupçãozinha aqui, um desviozinho de recurso alí não é nada demais, que ninguém é honesto mesmo.

Que a justiça se faça para que essa corja possas refrear seus instintos. Dinheiro PÚBLICO não é pasto e muitos de nós, eu, particularmente, não naturalizou a falta de decencia e caráter como marca para os gestores de nossos municípios.

Leiam mais detalhes:

Operação Mascotch prende em Alagoas suspeitos de desviar dinheiro da merenda escolar para gastos pessoais

Por Gilberto Costa, Agência Brasil

A Polícia Federal (PF) prendeu hoje (30), em Alagoas, nove pessoas envolvidas com desvio de dinheiro público da merenda escolar. O recurso, originário do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), foi desviado em 13 municípios para o pagamento de compras pessoais, como bebidas alcoólicas (uísque 12 anos, vinho) e até ração para cachorro.
A operação, intitulada Mascotch, é feita em conjunto com a Controladoria-Geral da União (CGU) e com o Ministério Público Federal (MPF), nas cidades de Maceió, Arapiraca, Limoeiro de Anadia, Lagoa da Canoa, Girau do Ponciano, Poço das Trincheiras, Senador Rui Palmeira, Belo Monte, Estrela de Alagoas, Jacaré dos Homens, Quebrangulo, Feira Grande e Traipu.
Fiscalização da CGU contabiliza que R$ 8 milhões podem ter sido desviados, entre 2007 e 2009, por meio de contratos fraudulentos com o grupo empresarial que venceu 13 licitações no período.
Sete mandatos de prisão temporária ainda não foram cumpridos. Três pessoas prometeram se entregar nesta tarde à Polícia Federal. Além das prisões, a PF cumpre 28 mandados de busca e apreensão nos municípios, inclusive na sede de cinco prefeituras (Girau do Ponciano, Poço das Trincheiras, Senador Rui Palmeira, Belo Monte e Estrela de Alagoas).
A PF e a CGU não informaram o nome das pessoas presas, mas divulgaram que as autoridades com mandado de prisão expedido são: a primeira-dama e um ex-secretário municipal de Finanças de Belo Monte; a secretária de Educação de Craíbas; a ex-prefeita e a secretária de Educação de Estrela de Alagoas; a primeira-dama e secretária de Assistência Social, a secretária de Educação e uma ex-secretária de Finanças de Lagoa da Canoa; a primeira-dama e o secretário de Administração de Limoeiro de Anadia; a vice-prefeita, a primeira-dama e secretária de Assistência Social, o secretário de Indústria e Comércio e um ex-secretário de Administração de Traipu.
A Operação Mascotch é um desdobramento da Operação Caetés, executada em outubro do ano passado e que também investigou esquema de desvio de recursos da alimentação escolar, prendeu oito pessoas e cumpriu 16 mandados de busca e apreensão nos municípios de Maceió, Arapiraca, Craíbas, Limoeiro de Anadia, Lagoa da Canoa e Traipu.
De acordo com dados do Ministério da Educação, o estado de Alagoas tem desempenho educacional abaixo da média nacional e da média da Região Nordeste. Um em cada quatro alunos de 10 a 14 anos estão atrasados no fluxo escolar e quase 80% dos alunos do ensino fundamental estão defasados em relação à série que cursam.
A taxa de abandono dos estudos em Alagoas é de 9,1% no ensino fundamental. O Índice do Desenvolvimento da Educação Básico (Ideb) de Alagoas é 3,7 pontos (contra 4,6 pontos da média brasileira).

Grifos meus!


quarta-feira, 30 de março de 2011

Luís Pimentel - O homem bom e o vestido de flores


– Primeiro mesmo, de fazer as coisas para valer, foi o Toni. Eu até tive alguns namoradinhos antes dele, sim. Coisa de criança, sem compromisso e sem deixar marcas profundas. Foi mais ou menos nessa época que o estraga-prazeres do meu primo se infiltrou em minha vida. Chamava-se Lourival e não serviu para nada. Pequeno e inseguro, porém pretensioso. Só falava em dinheiro, futebol e corridas de cavalo. Curto que só vendo. Uma besta.
“Ela jamais saberá, mas eu gostaria muito de conhecer o primo Lourival. Gosto de pessoas assim, que não servem para nada. Também gosto de pessoas que só falam em dinheiro, sobretudo quando não têm dinheiro nenhum. E gosto, sobretudo, dessas pessoas que as outras consideram verdadeiras bestas.”
– Coitado do Lourival.
– Coitado nada.
– Tá certa. Não chega aos pés do Toni.
– Também não posso dizer que o Toni tenha representado grande coisa. Não me deu nada, mas pelo menos tirou o que tinha se prontificado a tirar.
– Alguém tem que fazer o trabalho sujo.
– Eu já tinha quase dezoito anos. Passava da hora.
– Parabéns, Toni.
“Eu tinha quase dezoito anos quando fui para a cama com uma mulher. Uma prostituta, como não poderia deixar de ser. Criado em roça, meio do mato, a iniciação se deu mesmo foi com cabras, porcas, novilhas, éguas, cadelas e companhia. Só mais tarde, na cidade, conheci fêmeas de duas pernas, dois braços e dois peitos. Não conseguia me entender com namoradas, sempre difíceis e certinhas. Tinha que ser mesmo com mulheres de vida torta e nenhuma complicação existencial. Dizia apenas conta aí a bela história e não se preocupa comigo, baby. Elas obedeciam, sem remorsos.”
– Aí veio o Jonas.
– Grande Jonas.
– O grande amor de minha vida. Dessa história você vai gostar.
“Gosto das histórias delas. De todas as histórias de todas elas. Quanto mais absurdas, mais eu gosto. Às vezes me dão vontade de rir, mas em geral me dão muito prazer.”
– Como era o Jonas?
– Forte, inteligente, extremamente sensual e educado. Gostava de fazer amor na sala, no velho sofá, enquanto mamãe ouvia rádio e passava roupas na cozinha. Dizia que o excitava, tinha cada idéia de maluco. A qualquer movimento suspeito na cozinha acelerava o ritmo. E como eu gostava.
– Também estou gostando.
– Me mordia toda. Jonas tinha coxas grossas e braços firmes. Mexia com contrabando e um dia evaporou, sumiu do mapa, desapareceu no mundo.
“Lurdes. Era esse o nome dela. Tinha peitos caídos e um sorriso horroroso, forrado de dentes de ouro. Exagerava na pintura e parecia mais uma caricatura malfeita. Cobrava menos do que as outras e tinha histórias interessantíssimas, além de não me considerar um alucinado. Foi compreensiva quando eu disse que gostaria de fazer amor ouvindo histórias malucas. Aceitou de pronto, sem cobrar um tostão a mais. Tentamos muitas vezes até eu ter certeza de que gostaria de fazer sozinho, ouvindo mentiras cabeludas.”
– Fale mais.
– Do sumiço do Jonas?
– Da cama, do sofá, mordendo você todinha.
– Você não presta.
“Eu não presto, nem te amo, não sei nem quero saber o teu nome. Não quero saber dos teus problemas, só das tuas mentiras.”
– Repete tudo. O que ele fazia com você no velho sofá, enquanto a mamãe passava roupas?
– Me beijava dos pés à cabeça. Fazia tudo o que queria comigo.
– Grande Jonas. Fazia tudo, tudinho?
– As coisas que me envergonhavam fazíamos de luz apagada. Chega, não gosto nem de lembrar.
– Esquece.
– Aí conheci o Rodolfo.
– Também contrabandista?
– Não. Motorista de ônibus.
– Rodolfo é um bonito nome.
– De artista. A mãe era apaixonada por um tal de Rodolfo Valentino, do cinema. Só que não se parecia nada com o outro. O meu Rodolfo era magro, desdentado e tossia até não se agüentar, principalmente naquela hora.
– Que horror.
– Fica quietinho, senão desconcentra.
“A vida é assim, feita de pequenas crueldades.”
– Gostava dele?
– Não. Usava como remédio barato, só para tentar esquecer o Jonas. Ia para a cama com ele pensando no Jonas, enquanto ouvia coisas. Sempre desatenta.
– Que coisas?
– Coisas, ora. Coisas que se dizem na cama.
“A vida também é feita de pequenas coisas. Coisas sem sentido, coisas importantes, coisas e coisas. Coisas que se dizem na cama, que se cochicham em enterros, outras que só em comemorações de aniversários. Coisas que só se dizem aos grandes amigos e coisas que não se diz nem aos piores inimigos.”
– E você, o que dizia para ele?
– Coisas também. Bobagens. E cravava as unhas nas costas cheias de espinhas do pobre. Acabou?
– Não. Mas não demora.
– Então vou falar do Júlio.
– O que tinha o Júlio?
– Um olho cego e uma mancha enorme do lado direito do peito.
– Também gostava no sofá?
– Não. De pé, encostado na parede. Ele era muito alto e eu tinha que ficar na ponta dos pés. Mas era bom.
– Sei.
– Era muito bom.
“Não duvido. Todos eles são muito bons para elas e também para mim. Também não tenho queixas das mulheres com as quais sonhei. Todas são boas e não têm culpa de nada.”
– Viu onde coloquei minhas chaves?
– Em cima da mesinha de cabeceira. Nem falei do Alfredo, o que era da polícia.
– Da próxima vez começaremos por ele.
– Você promete?
– Claro. Temos que começar por alguém.
– Jura que gostou?
– Eu gosto sempre. Tome.
– Pode deixar aí.
– Está em cima da cômoda. Tem um pouco mais, para o vestido de flores.
– Não acredito. Enfim, o vestido de flores. Que homem bom, meu Deus.
“Olho para ela e penso: ainda existem pessoas boas neste mundo.”






terça-feira, 29 de março de 2011

Edna Lopes - Memórias de um aprendiz de escritor



Certamente que quem escreve tem na ponta da língua o modo como se iniciou no mundo das letras, como leitor e escritor. O fato é que há sempre o que aprender, o que melhorar, seja como leitor que lê o mundo e a palavra ou como escritor, em forma e conteúdo.

Neste livro, de maneira leve e delicada, o autor nos conta numa “ficção autobiográfica” da infância como foi aprendendo a ser escritor. Um menino apaixonado por livros, um escritor apaixonado por livros.

O livro é classificado como infantojuvenil, mas boa leitura não tem idade ou classificação. As dicas são valiosas para quem, como eu, brinca de escrever, ou para qualquer escritor/a mais tarimbado, que se preocupa em escrever com clareza e alguma emoção.

Da vez que ouvi Scliar numa dessas Bienais da vida, guardo a firmeza da palavra, o encantamento com que falava das leituras que fizera ao longo da vida, a delicadeza poética como demonstrava observar o cotidiano.

Por diversas vezes “pesquei” da Folha online crônicas suas, inspiradas em notícias do jornal para abrir reuniões de trabalho, aulas, seminários de formação de educadores. Nos elementos do cotidiano, provocações, reflexões... Nenhum sentimento banalizado, tudo tão humano, tão real, tão poético.

Dias antes de sua morte, reli Memórias e sugeri que Vinícius, meu adolescente tirado a filósofo o lesse...

- Não pretendo ser escritor - respondeu.
- Nunca se sabe...

Transcrevo a primeira parte do livro... Um carinho imenso por cada lembrança de leitura, cada pensamento articulado. Fisicamente não está mais entre nós, mas sua obra estará.

Eternamente, Moacyr.




Memórias de um aprendiz de escritor
Moacyr Scliar

Escrevo há muito tempo. Costumo dizer que, se ainda não aprendi – e acho mesmo que não aprendi, a gente nunca para de aprender -, não foi por falta de prática. Porque comecei muito cedo. Na verdade, todas as minhas recordações estão ligadas a isso, a ouvir e contar histórias. Não só as histórias dos personagens que me encantaram, o Saci-Pererê, o Negrinho do Pastoreio, a Cuca, Hércules, Tarzan, os piratas, Tom Sawayer, Sacco e Vanzetti. Mas também as minhas próprias histórias, as histórias de meus personagens, essas criaturas reais ou imaginárias, com quem convivi desde a infância.

Na verdade, eu escrevi ali em cima. Verdade é uma palavra muito relativa para um escritor de ficção. O que é verdade, o que é imaginação? No colégio onde fiz o segundo grau, havia um rapaz que tinha fama de mentiroso. Fama, não; ele era mentiroso. Todo mundo sabia que ele era um mentiroso.

Uma vez, o rádio deu uma notícia alarmante: um avião em dificuldades sobrevoava Porto Alegre. Podia cair a qualquer momento. Fomos para o colégio, naquele dia, preocupados; e conversávamos sobre o assunto, quando apareceu ele, o Mentiroso. Pálido:

— Vocês nem podem imaginar!
Uma pausa dramática e logo em seguida:
— Sabem esse avião que estava em perigo? Caiu perto da minha casa. Escapamos por pouco.
Gente, que coisa horrível!

E começou a descrever o avião incendiando, o piloto gritando por socorro… Uma cena impressionante. Aí veio um colega correndo, com a notícia: o avião acabara de aterrizar, são e salvo. Todo mundo começou a rir. Todo mundo, menos o Mentiroso:

— Não pode ser!– repetia, incrédulo, irritado.
— Eu vi o avião cair!

Agora, quando lembro este fato, concluo que não estava mentindo. Ele vira, realmente, o avião cair. Com os olhos da imaginação, decerto; mas para ele o avião tinha caído, e tinha incendiado, e tudo o mais. E ele acreditava no que dizia, porque era um ficcionista. Tudo que precisava, naquele momento, era um lápis e um papel. Se tivesse escrito o que dizia, seria um escritor; como não escrevera, tratava-se de um mentiroso. Uma questão de nomes, de palavras.

Palavras. São tudo, para quem escreve. Ou quase tudo. Como a serra, o martelo, a plaina, a madeira, a cola e os pregos para o marceneiro; como a colher, o prumo, os tijolos e a argamassa para o pedreiro; como a fazenda, a linha, a tesoura e a agulha para o alfaiate. Estou falando em instrumentos de trabalho, porque literatura nem sempre parece trabalho. Há uma história (sempre contando histórias, Moacyr Scliar! Sempre contando histórias!) sobre um escritor e seu vizinho. O vizinho olhava o escritor que estava sentado, quieto, no jardim, e perguntava: Descansando, senhor escritor? Ao que o escritor respondia: Não, trabalhando. Daí a pouco o vizinho via o escritor mexendo na terra, cuidando das plantas: Trabalhando? Não, respondia o escritor, descansando. As aparências enganam; enganaram até o próprio escritor.

Gabriel Garcia Marques conta que, quando senta para escrever, gosta de estar rodeado dos mais variados instrumentos: a máquina, vários lápis, tesoura, cola, borracha, grampeador – para sentir como um operário que vai empreender a tarefa; o operário em construção, de Vinícius de Moraes: “Era ele quem fazia casas/Onde antes só havia chão”.

As Palavras são tudo, você disse, Moacyr? Você mentiu, Moacyr. Mais uma vez você mentiu. As palavras não são tudo, e disso você bem sabe. A emoção conta, caro Moacyr. A Emoção, as idéias, as lembranças. Fale um pouco sobre você Moacyr.(...)

Moacyr Scliar

Nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu em fevereiro de 2011. Autor de mais de 70 livros, uma obra que abrange vários gêneros: ficção, ensaio, crônica e literatura juvenil. Muitos destes foram publicados nos Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha, Portugal, Suécia, Argentina, Colômbia, Israel e outros países, com grande repercussão crítica. É detentor dos seguintes prêmios, entre outros: Prêmio Joaquim Manoel de Mace­do (1974), Prêmio Erico Veríssimo (1976), Prêmio Ci­da­de de Porto Alegre (1976), Prêmio Guimarães Rosa (1977), Prêmio Brasília (1977), Prêmio Jabuti (1988, 1993 e 2000), Prêmio Associa­ção Paulista de Críticos de Arte (1989), Prêmio Casa de las Américas (1989), Prêmio Pen Clube do Brasil (1990), Prêmio José Lins do Rego (Academia Brasileira de Letras, 1998). Formou-se em medicina em 1962, especializando-se em saúde pública. Viajava frequentemente, tanto no país como no exterior, para congressos e conferên­cias; em 1993 e 1997 foi professor visitante na Brown University (Departament for Portuguese and Brazilian Studies), nos Estados Unidos.

Moacyr Scliar foi colunista dos jornais Zero Hora e Folha de S. Paulo e também colaborou em vários órgãos da imprensa no país e no exterior. Muitos de seus textos foram adaptados para cinema, teatro, tevê e rádio, inclusive no ex­te­rior. Em 2003, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Adaptado por mim do site http://www.lpm-editores.com.br/