quarta-feira, 6 de abril de 2011

A Fuga


O médico-cirurgião retirou a chapa radiológica do envelope, examinou-a cuidadosamente usando a luz da janela, recolocou-a de volta no envelope e diagnosticou:

– O raio-X mostra claramente que houve uma redução não anatômica do cotovelo e por causa disso seu irmão não consegue articular o braço normalmente.
– Mas Dr. Alberto, me diga uma coisa: uma cirurgia restabeleceria o movimento do braço?
– Veja bem: como já se passou muito tempo, a cirurgia se torna muito arriscada e não garanto sucesso. Temos que abrir o braço na região do cotovelo, fazer raspagem nos ossos, depois encaixá-los em seu devido lugar. Mas, repito: não garanto sucesso.
– Quais as chances?
– Isso, infelizmente, não sei lhe responder. Por outro lado, como ele é muito novo, a chance de recobrar o movimento fazendo fisioterapia é bem maior.
– Não, doutor. De onde viemos não há como fazer fisioterapia. Prefiro arriscar a cirurgia. Marquemos a data, pois preciso viajar pra São Paulo. Minhas férias estão acabando.

Da antessala do consultório eu ouvia toda a conversa do médico com o meu irmão. Tinha sete anos de idade e ainda não sabia diferenciar o confiável do perigoso. Se o meu irmão achava que o médico deveria me operar, bem achado estava. Mesmo porque, de onde vim, menino e tamanco ficavam debaixo do banco.

Era um final de tarde e pela janela do consultório assisti deslumbrado ao pôr de sol na Baía de Todos os Santos. Bahia de todos os encantos. O mar sôfrego chupava o sol em desejo imoderado e as águas tranquilas espelhavam a vermelhidão do céu anil, muito mais bonito que o arrebol atrás do Cruzeiro dos Montes, cujo horizonte rúbeo enlevava as almas rudes e conduzia os céticos à presença divina.

No caminho do consultório para a casa onde nos hospedáramos, no Terreiro de Jesus, havia uma praça muito bonita, de onde se via a Baía de Todos os Santos. A Praça do Poeta, disse meu irmão. Existiam outras praças, mas não eram tão bonitas quanto aquela. Perto de casa havia uma igreja toda de ouro e outra chamada de catedral basílica. Sair da roça diretamente para a capital foi um choque cultural imensurável. Sequer imaginava haver vida além da Ladeira Grande, o caminho de saída ou de retorno da pequena cidade, o limite entre o real e os sonhos dos do lugar. Não conhecia água encanada, dormia à luz de candeeiro, acordava mal o sol raiava para rezar a Ladainha de Nossa Senhora, andava em garupa de jegue e agora estava ali, no coração da velha Cidade da Bahia, e tudo era novo, tudo era um deslumbramento total. No dia anterior meu irmão me levou para conhecer o mar. Não consegui articular palavra diante daquela visão extraordinária. Léguas e léguas a perder de vista de um tapete azul-marinho. O meu irmão me contou que existiam milhares de mares como aquele e que eles se uniam e davam a volta ao mundo. Como era possível tanta água num lugar só e gente morrendo de sede em outros? Na minha terra, andava-se quilômetros por um pote d’água. O padre, que obrigava o povo a subir de joelhos a ladeira íngreme e encascalhada do Cruzeiro dos Montes em remissão dos pecados, devia saber que Deus privilegiou alguns nas Suas sublimes escolhas.

Chegando a casa meu irmão me chamou a um canto e me falou que precisaria retornar a São Paulo e que eu ficaria aos cuidados dos donos da casa, que eram seus amigos desde os tempos de foca no Jornal da Bahia. A cirurgia aconteceria duas semanas depois, que não me preocupasse não, ia dar tudo certo, confiava no médico, e que no final do mês seu amigo Giese se encarregaria de me levar embora.

Acordei no dia seguinte e não encontrei meu irmão, como nos dias anteriores. “Viajou logo cedo, no escuro”, me disse D. Maria, sorriso bondoso nos lábios. Ela passara de nossa anfitriã a responsável direta por mim. Disfarcei a apreensão de me ver sem nenhum parente em terras alhures, mas, com o passar do tempo, não conseguia disfarçar a tristeza pelos dias iguais que vivia. A casa era um puxadinho no fundo de um sobrado no Terreiro de Jesus, reduto de velhos marinheiros, proxenetas e putas. Dois quartos minúsculos e uma sala que mal cabia a mesa de jantar. O sofá ficava do lado de fora, na varanda sombria, protegida por um muro espremido entre dois velhos prédios. O bem mais valioso da casa era um rádio de pilha que seu Petrônio, o marido de D. Maria, levava todos os dias para o trabalho. No portão, um letreiro avisava tratar-se de casa de família.

Havia mais duas mulheres na casa: Lucy e Judith, filhas de D. Maria. Ambas trabalhavam no comércio da Avenida Sete e, como seu Petrônio, saíam cedo e voltavam à noite, reclamando do cansaço. Somente D. Maria não trabalhava fora e eu passava o dia remoendo saudades pelos cantos. Não havia nenhuma criança para brincar, nem podia sair à porta de casa sozinho. À noite, depois do jantar, as duas mocinhas me contavam histórias e me faziam afagos até dormir em uma cama improvisada na sala, desfazendo a carranca que aumentava com o passar dos dias.

No domingo levaram-me a passear. A solidão era tanta que a Velha Bahia perdera o encantamento. Subir e descer o Elevador Lacerda, andar de bonde ao léu, admirar o pôr do sol da balaustrada da Praça do Poeta já não me fascinavam mais. Ao retornarmos a casa, pensei nos meus irmãos Guidório e Badego, o primeiro, mais velho, o segundo, mais novo que eu. Que estariam fazendo àquela hora? Será que sentiam a minha falta do mesmo jeito que eu sentia a deles? Súbito, ouvi os apelos de minha mãe ecoar na memória:

– Desça dessa jega, menino! Se lembre que seu primo Jucinaldo caiu de uma e quebrou o braço!

Preocupação de mãe é vaticínio. Entre o falar e o cair foi só piscar e coçar. Badego meteu um pau no cu da jega e ela empinou, se contorceu, deu uma upa e fui ao chão, batendo o cotovelo numa pedra. Uma dor aguda e o braço balançando, sem obedecer ao meu comando. Ouvindo os gritos de dor, minha mãe adivinhou o sucedido e mandou Guidório chamar o farmacêutico na rua. Era o único que encanava braço nas redondezas. Hospital, só em Alagoinhas, cem quilômetros além da Ladeira Grande.

O farmacêutico chegou montando um jegue. Caindo de bêbado. Ele e o jegue. Mesmo assim encanou o meu braço, improvisou uma tala com pedaços de ripa, fez uma tipoia com um pedaço de toalha e foi embora, sem receitar um analgésico ou anti-inflamatório. Um mês depois, quando a tala foi removida, minha mãe compreendeu que não se deve confiar serviço ortopédico a um alcóolatra, principalmente em se tratando de luxação: o meu braço não dobrava no cotovelo. Segundo o Dr. Alberto, o encanamento mal feito causou uma sub-luxação, mas a minha mãe nunca soube disso. Para ela, era braço mal encanado mesmo.

Depois do passeio, Lucy, a filha mais nova de D. Maria, me chamou a um canto, perscrutou o ambiente à caça de algum ouvido indiscreto, e depois falou baixinho, quase em cochicho:

– Morro de pena de lhe ver nessa tristeza sem fim, Tonico. Você deve sentir muita falta de seus irmãos e seus amigos, né? E ainda falta uma semana pra você ser operado. Parece pouco tempo, mas quando o sofrimento é muito a dor paralisa as horas. Juntei um dinheirinho e se você aceitar eu lhe dou pra você ir embora pra sua casa.

Olhei-a num misto de espanto e contentamento. A esperança renascia naquele oferecimento. Estaria falando sério ou apenas me provocando?

– Você fala a vera? Você me deixaria ir embora?
– Deixaria, não; deixo. Se eu lhe ensinar como pegar o trem para Alagoinhas, você sabe chegar em casa sozinho?
– Em casa não, mas em Alagoinhas tenho alguns parentes. Também, na vinda, dormimos na casa da mãe de Giese, o amigo do meu irmão que nos trouxe até aqui. Não sei o endereço, mas meu pai fala aos amigos que fica na Rua do Cruzeiro, perto do Jardim dos Macacos. Na estação de Alagoinhas eu pergunto. E a casa da mãe dele eu sei qual é.
– Então vamos fazer assim: amanhã eu venho pra casa meio-dia, digo que vou dar uma volta com você, lhe deixo no bonde que vai pra estação de trem da Calçada, e de lá você segue seu caminho. Já me informei na estação: o trem sai às quatro horas da tarde e chega em Alagoinhas por volta das sete horas da noite. Combinado?
– Combinado!

No outro dia, saciada a fome do meio-dia, arrumei a minha maleta e passei às escondidas a Lucy. Ela saiu furtivamente e retornou, instante depois, sorridente e sem a maleta. Puxou-me pela mão e avisou à mãe que iríamos dar um passeio. Acenei um adeus tímido a D. Maria e apressei os passos antes que o remorso pela minha saída sorrateira me impedisse de levar adiante a minha fuga.

Na rua, pela primeira vez, desde a minha chegada, senti o contraste entre o deslumbramento e a realidade. Vi a imponência da Igreja de São Francisco no final da rua e confidenciei a Lucy minha incompreensão em ver tanto ouro dentro da igreja e a grande miséria do lado de fora. Ela disse que também não entendia a diferença entre a humildade que os padres pregavam e a ostentação que a Igreja praticava.

– É por isso que sou de Oxalá e um dia você vai saber o que quero dizer – completou.

Caminhamos de mãos dadas em direção do Elevador Lacerda, onde nossos destinos se separariam para sempre. Os olhos marejados de Lucy no abraço de despedida foram a única imagem da Cidade da Bahia que conservei na parede da memória.


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