sábado, 30 de abril de 2011

Luís Pimentel - Jamelão e suas histórias


Das inúmeras histórias que enriquecem o folclore do samba a respeito do humor indigesto e inimitável de Jamelão, uma é imbatível. Dizem que convidado para receber uma (mais uma) homenagem em São Paulo, por conta dos não sei quantos anos de idade, o maior intérprete (“puxador é maconheiro ou ladrão de carro!”, dizia ele) do carnaval brasileiro fez a perguntinha: “Tem dindim?”. “Não, mestre, é só uma homenagem”. Um brinde à resposta:

– Homenagens não pagam minhas contas!

José Bispo Clementino dos Santos – o nome já era um enredo – nasceu no Rio de Janeiro, no dia 12 de maio de 1913. Morreu no dia 14 de junho de 2008. Aos nove anos vendia jornais nos subúrbios, onde conheceu o sambista Gradim, que o levou para a Estação Primeira de Mangueira. Começou a carreira no rádio, participou de alguns conjuntos e orquestras, entre elas a Tabajara, de Severino Araújo. Seu reconhecimento veio no final dos anos 50, quando gravou Exemplo e Ela disse-me assim, de Lupicínio Rodrigues.
No começo dos anos 40 Seu José Bispo já pontificava nas rodas de samba históricas da Praça Onze. Em 1945 participou de um programa de calouros na Rádio Ipanema, onde nasceu o apelido que o tornou célebre na verde e rosa e em todas as cores da MPB. Segundo contou em depoimento no Museu da Imagem e do Som, no Rio, o apresentador anunciou determinada música “a ser interpretada por Jamelão". Quando ouviu isso, ainda se perguntou: "Quem seria esse tal de Jamelão?" Para sua surpresa, o Jamelão era ele. O apresentador inventou na hora o apelido que pegou para sempre.

Além da maestria nos sambas-enredo, Jamelão cantava bem qualquer coisa que caísse em seu repertório. Ninguém melhor do que ele no samba-canção ou nos boleros. Encerrando com outra historinha do figuraça: na saída de um show coletivo, entre vários artistas, a jovem cantora se aproximou:

– Mestre, eu quero beijar sua mão.
– Precisa não. Primeiro, porque não sou pai-de-santo. Depois, porque não sei onde você andou com essa boca.


Juvenal Azevedo - Um cão uivando para a imortalidade



Antônio Torres é um dos candidatos à vaga deixada por Moacyr Scliar na Academia Brasileira de Letras. Segundo os entendidos nos meandros da ABL, Torres é, ao lado de Nerval Pereira, um dos favoritos a envergar o fardão dos imortais.

Na minha opinião, Nerval é um jornalista sério, estudioso e competente, mas falta a ele a chamada bagagem literária. Já Antônio Torres, ademais de suas qualidades pessoais e de caráter, tem uma farta bagagem de livros escritos, publicados e aplaudidos tanto pela crítica quanto pelo público, aqui e no exterior.
Desde sua primeira obra, à qual poderíamos sem exagero classificar de obra-prima, “Um cão uivando para a Lua”, de 1972, até seu livro mais recente, “Sobre pessoas”, de 2007, Torres mostrou ser, fundamentalmente, um escritor.

Um escritor talentoso, dominador de seu ofício, como em “Os homens dos pés redondos”, “Essa terra”, “Carta ao Bispo”, “Adeus, Velho”, “Balada da infância perdida”, “Um táxi para Viena d’Áustria”, “O centro de nossas desatenções”, “O cachorro e o lobo” (que recebeu o Prêmio Hors-Concours de Romance da União Brasileira de Escritores em 1998 e foi traduzido para o francês), “O circo no Brasil”, “Meninos, eu conto” (traduzido para o espanhol na Argentina, México, Uruguai), para o francês (no Canadá e na França), para o inglês (nos Estados Unidos) e ainda para o alemão e o búlgaro, além de ser incluído na antologia dos “100 melhores contos do século”, de Ítalo Moriconi, “Meu querido canibal”, “O nobre sequestrador”, “Pelo fundo da agulha” e “Minu, o gato azul”, uma delícia de livro infantil.

E o que espero que aconteça na ABL, em junho próximo, é o reconhecimento de que aos escritores de ofício se deve abrir o reino dos céus literários. Seria também o auto reconhecimento da Academia a um escritor por ela agraciado em 2000 com o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra. 

Como a vaga em questão é a de Moacyr Scliar, não custa lembrar que Torres e Scliar se conheceram pessoalmente em 1985, num circuito de palestras pela Alemanha, sendo que foi numa viagem de trem de Colônia para Bielefeld que a amizade se consolidou. Segundo Torres, “fomos só nós dois no trem”. E acrescenta: “Já havíamos conversado em Frankfurt, mas foi tudo muito rápido. Depois daquela viagem para Bielefeld, ficamos amigos para sempre. No Brasil, costumávamos frequentar a casa um do outro entre o Rio e Porto Alegre. E o maior presente que ele me deixou foi seu artigo com o título “Meu querido Antônio Torres”, quando do lançamento do livro “Meu querido canibal”.

Bem. Desconhecedor dos rituais e cânones da Academia Brasileira de Letras, não sei se ao escrever este artigo estarei colaborando ou não para incrementar a candidatura de Torres à imortalidade, de vez que, se consultado fosse, meu amigo quase milenar Antônio Torres, por seu caráter e modéstia que beira a humildade, me impediria de fazer esta declaração pública de amizade e admiração por suas qualidades, tanto pessoais quanto literárias.

Que o Torres e, principalmente, os membros imortais da Academia me perdoem, mas em certas ocasiões calar seria, isso sim, inoportuno. Avante, imortais, façam justiça. Deem a Antônio Torres a cadeira de Moacyr Scliar que, certamente, onde quer que esteja, terá sua aprovação.

Juvenal Azevedo é jornalista e publicitário. Publicação original no site http://www.difundir.com.br/site/c_mostra_release.php?emp=1098&num_release=41274&ori=I



sexta-feira, 29 de abril de 2011

Edna Lopes - Porta-Voz Celestial



Mal amanhece se ajoelha, faz suas orações e liga o rádio. Ocupa-se das tarefas da casa, mas não descuida de ouvir, atenta, os louvores, os comerciais de produtos sacros enquanto aguarda ansiosa a pregação do Fulano de Tal, autoridade eclesial com o dom da palavra e muitos conhecimentos nas hostes celestiais.

Arruma a casa, lava a roupa, faz comida, mas a atenção no que o pregador fala está em primeiro plano e mal acaba o programa, corre ao telefone para avisar as amigas e parentas dos recados que Deus mandou a cada uma delas.

Nem o Anjo Gabriel pareceria mais íntimo...





domingo, 24 de abril de 2011

Engabelação Pascal

De Coelhinho da Páscoa

Talvez a Igreja me excomungue, mas, Páscoa, para mim, é só um motivo para se engordar mais de tanto se comer chocolate, seja em forma de ovo, de barra ou de bombons. O meu filho mais novo faz a festa nesse dia.

Aqui, neste mundo cibernético, já li tanta coisa sobre a Páscoa que só não vai faltar ovos nos supermercados da vida porque andam confundindo Zé Carroceiro com Zeca Roceiro. Já falaram até que a “Páscoa cristã é a celebração do Êxodo”, esquecidos que judeus e cristãos são inimigos históricos, apesar de o responsável pelo cristianismo ter sido judeu. Aliás, foram os próprios judeus que entregaram Cristo aos carrascos romanos, o que levou o Papa Pio XII, dois mil anos depois da crucificação, a não titubear na hora de escolher entre a cruz da Suástica e os descendentes de Abraão: lembrando Judas Iscariotes, beijou a face judaica.

Tenho saudades das minhas aulas de catecismo na Escola Brazilino Viegas, cuja professora Marilda caprichava nos ensinamentos sem nenhuma paixão ou ressentimento. Dizia que a páscoa era a celebração da vida, a Ressurreição de Cristo, a libertação do material pelo espiritual. E havia missa para as crianças no domingo e a gente cantava assim:

“Coelhinho da Páscoa
Que trazes pra mim?
Um ovo, dois ovos,
Três ovos assim;
Um ovo, dois ovos,
Três ovos assim.

Coelhinho da Páscoa
Que cores tu tens?
Azul, amarelo,
Vermelho também;
Azul, amarelo,
Vermelho também.”

À tarde havia brincadeira na rua: pau-de-sebo, quebra-pote, corrida de saco, boca-de-forno, pega-pega, cirandas e outras brincadeiras.

Foi num domingo de páscoa que fiz a primeira comunhão. Eu e mais todos os colegas da escola. Na catequese, a professora dizia que a comunhão seria o suprassumo da totalidade cósmica e que seríamos conduzidos pelas mãos do Espírito Santo até a presença de Deus. A hóstia deveria dissolver na boca em silêncio meditativo e que ficaríamos tão leves que seríamos capazes de voar. Criou-se uma expectativa enorme a respeito do sagrado momento da Comunhão que não pensava noutra coisa a não ser na hora de degustar meu passaporte para o Divino. Chegado o dia, chegada a hora, chegada a minha vez, a decepção foi tão grande que aquela foi a minha primeira e única comunhão. Anos depois eu soube que não funcionou em mim porque não havia contado todos os pecados ao santo confessor. Mas aí já era tarde para encarar um padre e confessar que fiz sexo antes de casar.

Atualmente catequese saiu da grade curricular das escolas. Cada um com direito a seu credo, à sua religião, vez que o Brasil é um país laico, cada um com seu direito de adorar a quem bem quiser. Lembro-me da aflição e constrangimento do meu colega Crispim, um filho de uma ialorixá tendo que se submeter aos rituais católicos. E ainda ouvir a professora de Religião dizer - na verdade a professora revivia o papel dos jesuítas - que o Candomblé era coisa do Satanás.

Ou era assim, ou era assado.

Nesta semana pascal fiquei de olhos esbugalhados com as manifestações sobre o tema em epígrafe, tanto em alguns blogs, quanto em sites de relacionamento. Mensagens tais que mais parecem copiados de cartão de boas festas, aqueles enviados no fim do ano. Com a globalização, já inventaram até o texto multifuncional, podendo ser usado em qualquer ocasião. Não acredito na sinceridade retirada do baú das letras em forma de mensagem, feito os aerogramas de natal da nossa briosa Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos nos tempos das diligências. A engabelação em tais mensagens é pura e cristalina. Por isso, para tais escribas, só me resta repetir o célebre pedido de Jota Cristo nos últimos instantes de sua existência como homem:

– Perdoai, ó Pai! Eles não sabem simplesmente dizer: feliz páscoa!

sábado, 23 de abril de 2011

O Foguete e as lágrimas


Era um cavaleiro solitário. Ideologicamente solitário. Em tempos que vereador prestava juramento de fidelidade, não aos poderes, mas aos mandatários constituídos, ter cisma ideológica era crime contra a moral e aos bons costumes e o pseudocriminoso se tornava um pária, estigmatizado socialmente para todo o sempre.

Dizia-se que ele era um comunista de carteirinha, desgarrado da Coluna Prestes, infiltrado pelos cossacos para perverter a pacata gente da terra, embora ninguém ali, salvo umas duas exceções, soubesse o que era ser comunista, muito menos cossaco, e pior ainda, Coluna Prestes. Não acreditava em santo e comia carne na Semana Santa, justificavam-se, assim, seus detratores. Podia ser muçulmano ou judeu, ter outro preceito religioso, mas ali, naquele lugar, sob a influência do padre, judeu, muçulmano e comunista era tudo uma coisa só: o Anticristo.

Chamava-se José Jacinto de Melo, primeiro oficial de cartório do distrito de Sátyro Dias, vereador no raiar do novo município, mas não entrou para história pelos seus feitos cartoriais, pela sua falta de Fé ou pela sua atuação política (que não se sabe se foi boa ou ruim). A história, que se conta, reservou um lugar nos seus anais para o Mestre Zezito Fogueteiro, o pirotécnico, reverenciado até hoje, principalmente nas noites de junho, e o povo mais antigo chora sua falta no Sábado de Aleluia.

O Judas, em Sábado de Aleluia, de Zezito Fogueteiro, iniciava o espetáculo no cair da tarde, em desfile apoteótico pelas ruas da cidade, montado no jegue Cemirréis, acompanhado de dezenas e dezenas de crianças e adolescentes, que diziam impropérios contra o famigerado traidor de Cristo. Vestido a caráter, de paletó, gravata e chapéu, depois de concluída a volta olímpica, era pendurado no cadafalso (que ficava embaixo do tamarindeiro existente perto do Mercado) à espera de sua sentença, que vinha após a leitura do seu testamento, um primor de irreverência e sátira aos homens notórios da cidade. Ninguém escapava da “herança” do Judas, nem mesmo o padre e o prefeito. Milhares de pessoas se aglomeravam em volta de um caminhão, improvisado como palanque, para se divertir com a leitura do testamento, que era escrito em quadras: “Para o meu amigo Prefeito/ como não tenho o que deixar/ Deixo a minha vassoura/ Para a cidade ele limpar”. Eram versos picantes e divertidos, que levavam de uma a duas horas para seu desenredo final.

Feita a leitura do testamento, o povo corria para a calçada da igreja para se deliciar com o espetáculo que viria a seguir. Por questão de segurança, e também de perícia técnica, o Judas era aceso à distância, da calçada da igreja, onde havia uma estaca enfiada na terra e dela saiam dois fios de arame até o umbigo do famigerado. Em cada um dos fios existia um foguete luminoso, que ficava em extremidades opostas; o primeiro rojão a ser aceso era o da igreja, que corria pelo arame até o cadafalso, acendia o pavio que desencadeava a queima dos fogos no corpo do boneco e acendia também outro foguete, que retornava para a igreja. O primeiro foguete era chamado de “gato”; o segundo, de “gato de resposta”. O ir e vir por si só já era um espetáculo multicolorido. Após a chegada do foguete “gato de resposta” à estaca da igreja, se iniciava a queima do Judas, com as bombas explodindo em série, soltando fogo e fumaça da barriga, gerando um espetáculo de puro êxtase visual, transformando o Sábado de Aleluia em verdadeira manifestação de congraçamento cristão. Vinha gente de outras cidades assistir ao espetáculo. O povo da roça comparecia em massa, contentando o padre, que no dia seguinte teria os óbolos consideravelmente aumentados.

Apagadas as chamas da glória (ou o fogo justiceiro dos vingadores de Cristo), tudo voltava a ser como dantes no quartel de Abrantes. Zezito Fogueteiro, ou José Jacinto de Melo, tão amado e admirado, retornava à odisséia de ser o proscrito solitário Cavaleiro da Esperança, sem coluna e sem seguidores, porém seus foguetes rasgavam o breu da noite seguinte, em estouro de bombas de “resposta” ou em chuva de lágrimas policromáticas, em anunciação da Ressurreição de Cristo.

- Judas morreu!
- O cavalo é teu! 

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Cineas Santos - Das vezes em que salvei Cristo

No final do milênio passado, convidaram-me para ministrar um curso numa cidadezinha perdida no sertão do Piauí. Terra pobre, gente simples, mas extremamente hospitaleira. Não sei se por falta de um hotel decente ou por excesso de generosidade, hospedaram-me na Casa Paroquial, deferência só concedida aos “do andar de cima”. O padre era um típico pároco do sertão: rotundo, comilão, bonachão, ostentando na carantonha bovina o resignado ar dos mansos. Tinha alguma sensibilidade cultural e gostava dos temas ligados ao folclore. À noite, depois do jantar, digo, depois da ceia digna de um bispo em desobriga, fomos para a biblioteca prosear um pouco. Falamos de Leonardo Motta, Câmara Cascudo, Fontes Ibiapina. Conversa de compadres velhos.

Talvez pelos excessos da ceia, dormi mal e acordei cedo. Levantei-me e fui vistoriar o quintal da Casa Paroquial. Entre as fruteiras, havia um autêntico umbuzeiro do sertão: atarracado, tortuoso, com galharia impenetrável. Lembrei-me daquela descrição antológica de Euclides da Cunha. Naquele umbuzeiro empoleiravam-se as galinhas para dormir. De repente, me dei conta de algo insólito no chão: era a imagem de um Cristo crucificado, ou melhor, o que restara dela. Na verdade, faltavam-lhe as duas pernas, um dos braços e a mão direita. Não bastassem tantas mutilações, a imagem estava recoberta de titica de galinha. Experimentei uma sensação estranha, misto de piedade e indignação. Eu sabia que era apenas uma imagem de gesso, dessas que se compram a preço de banana em fim de feira. Mas aquela imagem, com certeza, fora benta. Diante dela, centenas de fiéis persignaram-se, desnudaram-se, confessaram-se arrependidos de suas culpas e, naturalmente, imploraram pela salvação de suas almas. Era, portanto, uma imagem impregnada do que há de mais humano em nós: a fé. Transumana, se me permitem o termo. Agachei-me e, com alguma dificuldade, consegui resgatá-la. Enrolei-a num jornal velho e levei-a para os meus aposentos. Na hora do café, pedi ao velho pároco que me desse aquele Jesus mutilado. Ele me olhou com uma pontinha de desconfiança e perguntou: Pra que você quer isso? Expliquei-lhe que sou vidrado em coisas antigas e que pretendia restaurá-la. O padre, que não era nada bobo, propôs o seguinte: Deixa isso aí e te dou uma novinha, trazida de Roma, benta por Sua Santidade. Declinei da oferta e, para comover o vigário, recitei o belo poema “Gesso”, de Manuel Bandeira, que termina assim: “Hoje esse gessozinho comercial/É tocante e vive, e me faz refletir/ Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu”. O padre acabou aquiescendo, e o Cristo mutilado e obrado veio comigo. Guardei-o em casa. Com o tempo, esqueci-me da sua existência. Como qualquer cristão relapso, só me lembro de Cristo nos momentos de agrura.

No domingo passado, mandei limpar o quarto das inutilidades e eis que a imagem de Cristo, recoberta de poeira e pátina, veio à tona. A cidadã que limpava os trastes me perguntou: Posso jogar isso no lixo? Antes de dizer não, perguntei-lhe: Por quê? Sem rodeios, respondeu-me: Isso me incomoda. Foi aí que me dei conta de que Cristo, mesmo reduzido a escombros, continua incomodando, ou seja, continua vivo. Resolvi guardá-lo num sarcófago improvisado. Como sou um pecador inconverso, mas honesto, confesso que não agi desinteressadamente. O raciocínio é simples: por duas vezes, em menos de dez anos, salvei aquele Cristo do lixo. Se Ele é, como rezam as Escrituras, todo compaixão e amor, há de me salvar pelo menos uma veizinha. Espero e confio.




quarta-feira, 20 de abril de 2011

Luís Pimentel - Grande homem mais ou menos

O velho relógio pendurado na parede suja marca 15 horas. Traduzindo: são apenas três da tarde e já estou bêbado. Nem almocei ainda e estou trocando as pernas e enxergando muito além ou aquém da paisagem. Nem sei se vai ter almoço hoje nesta casa.

Será que vai ter jantar?

Entre quatro paredes e inúmeros andares acima do chão, cambaleio e tropeço nos móveis. Me assusta tanta altura, mas me sinto em segurança. Se estivesse no chão, neste momento, já estaria juntando um rebanho de moleques à minha volta. As crianças adoram os bêbados. Que nem Deus, que protege os bêbados e as crianças nas horas difíceis. Põe a mão embaixo, é o que dizem. Amortece as quedas.

Bêbado feito um gambá. Velho feito um gambá e bêbado feito um gambá velho.

A velha rabugenta se aproxima. Porre maior que qualquer porre, arrastando pelos corredores as velhas sandálias de couro, velhas e gastas que nem ela. A latinha de biscoitos na mão:

– Bêbado já, a esta hora?
– Bêbado já. Esta hora já. Bêbado estou – respondo.

A velha resmunga qualquer coisa e dá as costas. Volta pelos corredores, arrastando as sandálias.

Bebo meio litro de água e acendo um cigarro. A fumaça invade o corpo feito lava de vulcão e sai pior ainda. Solto um palavrão cabeludo, apago o cigarro e cuspo da janela, acompanhando do parapeito a trajetória da saliva gosmenta e amarelada por doze andares.

Dá gosto ver. Acompanho até a hora em que a porcaria se esparrama lá embaixo, na calçada ou na cabeça de um desocupado. Como tem gente desempregada ou vadia nessa merda de cidade. Sei que também tem uns que trabalham, mas mesmo assim ficam zanzando pelas ruas. E sei que tem aqueles que não precisam trabalhar mesmo e estão cagando para o mundo, chutando chapinhas por aí e levando cusparadas de bêbado no quengo ou nos ombros. Quem manda passar por aqui?

A velha abstêmia abandona sobre a mesa a latinha de biscoitos, a mesma que me servia de marmita na época da repartição. Me olha de cara feia, como se fosse possível envergonhar um velho bêbado que já sente vergonha de tudo, e faz um comentário dos mais idiotas:

– Essa porcaria pode cair na cabeça de alguém, sabia?

Eu podia dizer que já caiu, já emporcalhou quem tinha que emporcalhar, mas me falta a paciência:

– E daí? Não estou lá embaixo.
– Porco – diz a velha, curiosamente sem ódio. “Porco”, como se dissesse “chato”, “bobo” ou “maluco”.

Quando eu trabalhava na repartição só enchia a cara nos finais de semana. Começava mais ou menos ali pela quinta-feira, depois do expediente. Litros de cerveja, garrafas e mais garrafas de conhaque, uísque, vinho, o diabo a quatro. Falando tanta bobagem que até sinto vergonha de lembrar, entre um porre e outro.

Agora sou outro homem, só bebo cachaça e mais ou menos todo santo dia. Chova ou faça sol ou faça até mesmo um tempinho mais ou menos. Também não frequento mais bar, nenhum bar. Evito me misturar com o rebanho de aposentados que enche a cara e conta mentiras a noite inteira. Eles às vezes até telefonam, insistem comigo, mas eu não vou.

Não quero a companhia de bezerros castrados, tristes e impotentes iguais a mim.

– Quer um café amargo? – a velha de novo, com as sandálias nos pés e a lata de biscoitos nas mãos. Come o dia inteiro, mas não engorda. Nem morre.
– Melhorar de quê?
– Do fígado, da cabeça, da bebedeira. Vai ao médico, criatura.
– Deus é pai. Só mesmo Deus, todo poderoso.
– Não esquece do que os filhos te dizem.

Os filhos também são muito esquisitos, puxaram à velha. Quase não me visitam, o que é até um favor que me fazem. Não preciso deles, de nenhum deles. Na verdade, não preciso de ninguém. Sou um homem independente. Bêbado e independente, mesmo quando caindo pelos cantos.

– Quer um copo d’água? Prefere um leite morno? Esquento a água do banho?

Sei que ela jamais vai me deixar em paz.

– Responde, mal-agradecido.

Ainda bem que estou ficando surdo, só assim me tornarei um homem livre.

Tem um boçal esperneando lá de baixo, gritando comigo e interrompendo os meus pensamentos. “Ah, é?” Vou à janela, estufo o peito. A cusparada dessa vez vai certeira e a resposta vem em seguida. Volto à janela e o desmiolado pergunta se já estou bêbado novamente, enquanto limpa a cusparada na camisa branquinha.

– Mais ou menos – respondo.

A velha salta em defesa do moço cuspido. Diz que é um rapaz direito da loja que tem lá embaixo. Insiste em que se o rapaz fosse violento poderia subir e me dar umas pancadas, que eu bem mereço. Solto uma gargalhada estrondosa, tomo mais um gole caprichado e despacho nova cusparada voadora. Ela me chama de animal incorrigível e eu respondo apenas, em absoluta paz comigo mesmo:

– Sou isso tudo mesmo. Quer dizer, mais ou menos.

Fecho as janelas sem olhar para o céu, deixo a velha falando sozinha e me arrasto até o quarto. Repito para mim e para as paredes sujas:

– Sei que sou um grande homem. Ou sou um homem mais ou menos, como todo grande homem.


Conto título do volume de contos Grande homem mais ou menos (Bertand Brasil, 2007).







segunda-feira, 18 de abril de 2011

Edna Lopes - Profética

Estava tão certa de que o marido tinha amantes que passou a desconfiar até da própria sombra. Imaginava que era a vizinha, a colega de repartição, a moça do supermercado, a prima oferecida, a amiga da irmã...
Passou a viver no inferno e transformou a vida dele e dos filhos num purgatório, um tormento de lamúrias, queixas, acusações.

Ele, por sua vez, jurava de pés juntos que era delírio, que a desconfiança dela era infundada, que ele nunca dera motivo para que ela agisse assim, que ciúme tinha limites...
O convívio passou a ter clima de guerra fria. Se trazia um presente, ouvia:
– Culpa! Mil vezes culpa! A troco de que me traz esse presente se não é por culpa?
Se ele esquecia algum item da feira, mais reclamações, acusações:
– Desleixado, irresponsável! Aposto que da feira dela ele não esquece nada!
Se se atrasava:
– Eu não disse? deve tá por aí, farreando com a “rapariga”! – a lamúria e o choro estavam garantidos. Não adiantava os filhos dizer que ela exagerava, que não tinha provas e ela respondia:
– Terei!
Passou a rejeitá-lo na cama:
– Não me toque! Já tem quem lhe satisfaça!
O dito cujo, como não tinha mais sossego em casa, passou a chegar cada vez mais tarde. Aceitou o convite para o futebol, para o churrasco no clube, para o happy hour ...Sempre sozinho, mas, um dia, convidou uma amiga para jantar, outra para dançar, outra para tomar um drinque... Gostou de se sentir solteiro e arranjou uma namorada, duas... três...

Meses depois, chegando de mais de um fim de semana dormindo fora, já bem tarde da noite, estacionou o carro, jogou as chaves na estante e foi tomar banho. A mulher desfiou o costumeiro rosário das reclamações e ele nem ligou. Ela, enfurecida, perguntou:
– Posso saber por que você não se defende mais, não reclama mais do meu comportamento?
– Simples: você estava certa! Eu resolvi aceitar sua sugestão: arranjei uma amante.
Ela para, respira fundo, encara os filhos e grita:
– Eu não falei?!




domingo, 17 de abril de 2011

A Carta


Rabiscou um papel de carta, colocou no envelope, fechou, selou e jogou na caixa do Correio. Retornou a casa calculando o dia que chegaria a resposta. 

Três dias depois, cedo da manhã, sentou-se à porta à espera do carteiro. O agiota lhe dera o prazo até as três da tarde. Ou paga o que deve, oooou...

O carteiro não tardou. Estava com uma carta na mão. Carta, não, a salvação. Reconheceu o envelope. Reconheceu a caligrafia. Era da sua mão trêmula. O coração acelerou aflito.

– Mas, mas, mas... balbuciou, incrédulo.
– Faltou colocar o endereço do destinatário – explicou o carteiro.
– Mas como?! Está aqui, ó, do mesmo jeito que a minha filha falou pra mãe dela, por telefone: Maria Anderlaine 73 Arrôba Guimeio Ponto Com! Vixe, Maria Mãe de Deus, bem que eu sabia que ela tinha esquecido de dizer o tal do cepi!



sexta-feira, 15 de abril de 2011

Maurício Melo Júnior - Um italiano em Realengo



Éramos adolescentes e à noite saímos para farrear pelas ruas da cidadezinha do interior. Não trazíamos maldades no peito e, àquela época, era possível vadiar, violão às costas, pelas madrugadas de música e literatura. Tínhamos pretensões que se frustraram com o passar dos anos, sonhos amalgamados no barro do real e discutíamos sobre as culturas que nos chegavam pelos livros, os jornais, as televisões.

Certa feita um de nós trouxe à tiracolo um novo amigo. Alto e magro, não falava uma palavra em português. Era italiano, sobrinho de um dos padres da cidade. Nunca soubemos ao certo o motivo de sua visita. Especulávamos uma possível fuga da Máfia, uma desilusão amorosa, mas, pelo que afiançava o moço, queria somente conhecer o mundo e o tio pagou sua passagem para o Brasil. Era um dos nossos. Também queríamos o mundo que estava além da estrada que nos levava ao Recife, que nos trazia outras expressões da vida.

Com português e italiano canhestros, nos entendíamos. E banhamos as noites com canções napolitanas. E haja cerveja para alentar as quentes horas noturnas. Na volta de uma farra o italiano – acho que se chamava Marcelo ou tinha cara de Marcelo – resolveu nos mostrar como se divertiam os civilizados europeus. Desembalou na carreira e pulou com os dois pés sobre o capô de um carro. Corremos horrorizados e medrosos deixando o carro bem amassado. Na praça mais próxima, ofegantes, passamos a julgar o amigo. Ali na ingênua cidadezinha não havia espaço para o barbarismo.

Vivíamos em um outro clima, onde a violência estava para além das fronteiras, para além das ruas. O crime mais bárbaro que presenciamos, um assassinato à sangue frio em plena rua, ao bater do meio-dia, nos era tão distante quanto Cabrobó, a cidade onde o criminoso resolveu se homiziar. E hoje, não sem certo horror, assistimos a violência em nossa porta. E, como faria Aldir Blanc, não conseguimos fechar nossa janela. Tudo nos chega com cores de espetáculo, com timbre de glamour. Nós que cantávamos: alô, alô Realengo.

Agora basta ligar a televisão e Realengo nos dói e a demolição do Japão nos fere. Já não há isolamento possível. Escutamos os tiros disparados nas escolas. Sentimos o cheiro do sangue de cada um dos doze meninos mortos. E esquecemos de secundar Gilberto Gil: Alô, alô Realengo, aquele abraço, alô torcida do Flamengo, aquele abraço. Alô, alô seu Chacrinha, velho palhaço, alô, alô Terezinha, aquele abraço…

Chacrinha já não balança a pança, não buzina a moça, não comanda a massa. O mundo, que era amplo, estreitou. E os telejornais insistem no bárbaro. Uma estranha comunicação da barbárie toma lugar daquilo que os perplexos comunicólogos – sou jornalista, nunca serei comunicólogo – diante das graças do Velho Guerreiro chamaram de comunicação do grotesco. Nos tempos quando vadiávamos na madrugada, grotesco era mostrar belas dançarinas, oferecer bacalhau para a platéia, ri do calouro desafinado.

De que chamaremos agora o circo televisivo?

Fui ingênuo, mas jamais culpei a imprensa pelos males todos do mundo, entretanto, há a glamourização da violência. A insistência em se mostrar a degradação nos insensibiliza e já a morte de um anjo sertanejo não nos comove. Aprendi jornalismo acreditando que notícia é quando um homem morde um cachorro. Ou seja, nos interessava o inusitado. Hoje parece interessar o escárnio, a degradação.

loucura ganhou cores de fanatismo e as crenças servem de justificativa para tudo. Às vezes, diante dessas reflexões, acho que envelheço sem tempo para entender o mundo. A geração de meus filhos exportou o culto à violência. É isso amigo Belchior, nossos ídolos não são os mesmos e a aparência do assassino é a mesma de um moço bancário que chora com a dor do Cristo. E de repente faz eclodir todas as dores.

Quem um dia se horrorizou com um capô amassado definitivamente não consegue entender o poder dos fuzis, de suas balas cruzando o céu noturno do Rio de Janeiro que continua lindo, mesmo com projéteis varando o peito de universitários. Acreditamos na educação e estudávamos com as armas possíveis. O extremo tecnológico somente nos permitia trabalhar com um gravador de fita cassete, e isso já nos levava à ousadia de balançar um italiano cambembe e conversávamos com o amigo, uma espécie de Marco Polo a contar maravilhas de terras distantes.

Em suas palavras renasciam a tradição milenar de Roma com Augustos e Césares e Rômulos e Remos. Dos balcões de Veneza Romeu seduzia Julieta e até a prostituta Giuliete Masina era cândida e doce, mas na bagagem vinha a violência gratuita e vazia. Nós lhe ensinamos a paixão pela noite, pela canção. E descobrimos seu lado humanitário, afinal não tínhamos Bruna Surfistinha nem loucos disparando nos cinemas, nas escolas, nas favelas. O bandido que mais nos assustava era Galeguinho do Coque que se converteu, tornou-se crente e foi flagrado roubando o óbolo da igreja.

Como era também ingênuo meu antigo amigo italiano – se chamava Marcelo?

Um dia assistíamos a um filme que fora rodado na cidade onde ele morava. E o rapaz chorava com cada lembrança e gritou dentro do cinema quando na tela apareceu, por segundos, sua velha casa. Era enfim um homem que sentia saudades e carregava a capacidade de se emocionar, embora no mesmo matulão transportasse a revolta de uma juventude que, com quase tudo à mão, buscava emoção na revolta infundada.

Quem sentirá saudades de hoje? Quem irá chorar diante de sua casa registrada numa tela do futuro?

Alô, alô Realengo, esperanças e aquele abraço.


terça-feira, 12 de abril de 2011

Cineas Santos - Ecos do Fenavipi


De Leonardo

Quando ousamos pensar na possibilidade de realizar um festival de violão em Teresina, fomos acossados por duas perguntas que se manifestavam com incômoda frequência: Por que um festival de violão no Piauí se já existem grandes festivais em outros estados brasileiros? Por que realizar um festival de violão numa cidade sem qualquer tradição em matéria de música do gênero? A resposta estava engatilhada: porque os grandes festivais que se realizam em Brasília, Londrina, Belo Horizonte e outras regiões do país são excelentes, mas não são nossos. Quanto à tradição, basta inventá-la. Assim, numa atitude quase temerária, realizamos a primeira edição do Festival Nacional de Violão do Piauí em dezembro de 2004. É ocioso enumerar aqui as dificuldades que enfrentamos para dar o primeiro passo: quem já tentou sabe o que significa pioneirismo; quem nunca tentou jamais entenderia. O certo é que, com o inestimável aval do mestre Turíbio Santos, fizemos um festival de altíssimo nível. Já na terceira edição, o FENAVIPI foi considerado pela revista “Violão-Pro” o principal festival de violão do Norte e Nordeste. Ao longo desses anos, não nos afastamos da filosofia que nos inspirou desde o primeiro momento: realizar um festival que, além de promover belos concertos musicais, pudesse propiciar aos músicos piauienses, notadamente aos jovens, o necessário diálogo com violonistas do porte de Eduardo Fernandez, Fábio Zanon, Marco Pereira, Turíbio Santos, Ana Vidovic, Guinga, entre outros. A estratégia tem dado certo. Para confirmar essa verdade, basta ver o número de crianças e adolescentes estudando violão e teoria musical nas escolas de Teresina.

Para realizar a 7ª edição do festival, inscrevemos o FENAVIPI num dos editais da Petrobras que, pela segunda vez, nos honra com o seu inestimável apoio, clara demonstração de que estamos no rumo certo. Pelo número de estudantes inscritos, pela presença maciça do público nos concertos, pela repercussão alcançada na mídia piauiense, mesmo antes do término do festival, podemos afirmar que os resultados superaram as expectativas. Para nós, é gratificante ver os “filhos” (Josué Costa, Felipe Vilarinho, Emanuel Nunes, Damião Bezerra) e os “netos” (Caio Leon e Leonardo de Caprio) do FENAVIPI brilharem entre estrelas de primeira grandeza. Leonardo bem que poderia ser nossa mascote: há três anos, “tocava” violão num prosaico cabo de vassoura. Hoje, aos 11 anos, é capaz de ler uma partitura e executar uma peça de certa complexidade. As irmãs do garoto, que tem nome de astro de cinema, também tocam violão, inclusive a pequena Mona Lisa, com apenas sete anos de idade. O FENAVIPI demonstra que não há instrumento mais eficiente para elevar a autoestima de um povo do que a cultura.Basta acreditar e investir.




domingo, 10 de abril de 2011

Luís Pimentel - Histórias de encontros e desencontros

Compaixão

Deu um beijo molhado, alisou seus ralos cabelos, jurou amor eterno e subiu os degraus da porta do ônibus. Pela janela, atirou mais um beijo, encostando os lábios nos dedos e soprando em sua direção. Juntamente com o comentário, cheio de compaixão:

– Não chora, amoreco. Já disse que volto.
– Jura?
– Quem jura mente. E se cuida direitinho, viu?
– Vi.
– Toma sopinha, pega sol da manhã, não sai no sereno.
O ônibus partiu, e ainda bem. Pois o jovem namorado, na poltrona aos fundos, já começava a demonstrar impaciência.

Companhia

Conheceram-se num cabaré da Praça Mauá.

Kátia Cilene fora desonrada à força pelo patrão, expulsa de casa pelo padrasto. Aquela história. Baiano, por sua vez, não tinha história nenhuma. Perdia os dentes e a esperança em canteiros de obras, os poucos sorrisos reservados ao futebol, nas tardes de domingo.

A paixão foi imediata. Pensou que deveria retirá-la daquela vida sem rumo. A outra aceitou a generosa companhia. Até descobrir que Baiano – sequer a curiosidade de perguntar o nome dele – morava num quartinho minúsculo, em Brás de Pina.

Kátia se desculpou com o companheiro, deixa como está, e retornou à Praça Mauá. Morar tão longe do Centro, sabe como é.



Fogo morto

Por anos e anos e muitos anos, o velho José guardou dinheiro no colchão. Fez o rasgo com uma faca, e ali enfiava, em meio ao capim, todas as notas que lhe sobravam após as compras semanais que fazia.

E ninguém sabia. O dinheiro faltava, o dinheiro sumia, o segredo espremido entre o corpo e as notas quentinhas que ele amassava todas as noites.

Morto o velho, os filhos se prepararam para tocar fogo no colchão onde todos nasceram. Ao retirá-lo da cama, a fenda aberta cuspiu capim seco e notas e mais notas amareladas e sem nenhum valor. Juntaram e somaram tudo, talvez fosse suficiente para pagar o caixão. Nem isto. Ninguém queria revelar a usura, exibida apenas no comentário baixo e minúsculo da viúva:

– Tanta fome passada com os meus filhos. Enquanto a vida apodrecia junto contigo, infeliz.



sexta-feira, 8 de abril de 2011

Juca Kfouri - Uma derrota que jamais esqueceremos

Ontem o Brasil sofreu uma das maiores derrotas de sua história de mais de 500 anos.
Que Maracanazo, que Sarriá, que nada!
Realengo é o nome da tragédia, tragédia de verdade.
O Brasil perdeu 12 crianças estupidamente.
Quem sabe se perdeu um Pelé, uma Maria Esther Bueno, uma Hortência.
Ou uma outra Elis Regina, uma Dilma Rousseff.
Sabemos que perdemos uma Ana Carolina Pacheco da Silva, uma Bianca Rocha Tavares, uma Géssica Guedes Pereira, Karine Lorraine Chagas de Oliveira, uma Larissa dos Santos Atanázio, outra Laryssa, esta Silva Martins, uma Luiza Paula da Silveira, uma Mariana Rocha de Souza, uma Milena dos Santos Nascimento, uma Samira Pires Ribeiro, um Rafael Pereira da Silva e mais um menino cujo nome ainda não foi revelado.
Todos entre 12 e 15 anos.
Doze famílias choram hoje neste manhã que não tem bom dia a perda de seus filhos, de seus netos, de seus irmãos.
Dez garotinhas e dois garotinhos.
Uma desgraça que não permite falar de mais nada.

Comentário para o Jornal da CBN desta sexta-feira, 8 de abril de 2001.


quarta-feira, 6 de abril de 2011

A Fuga


O médico-cirurgião retirou a chapa radiológica do envelope, examinou-a cuidadosamente usando a luz da janela, recolocou-a de volta no envelope e diagnosticou:

– O raio-X mostra claramente que houve uma redução não anatômica do cotovelo e por causa disso seu irmão não consegue articular o braço normalmente.
– Mas Dr. Alberto, me diga uma coisa: uma cirurgia restabeleceria o movimento do braço?
– Veja bem: como já se passou muito tempo, a cirurgia se torna muito arriscada e não garanto sucesso. Temos que abrir o braço na região do cotovelo, fazer raspagem nos ossos, depois encaixá-los em seu devido lugar. Mas, repito: não garanto sucesso.
– Quais as chances?
– Isso, infelizmente, não sei lhe responder. Por outro lado, como ele é muito novo, a chance de recobrar o movimento fazendo fisioterapia é bem maior.
– Não, doutor. De onde viemos não há como fazer fisioterapia. Prefiro arriscar a cirurgia. Marquemos a data, pois preciso viajar pra São Paulo. Minhas férias estão acabando.

Da antessala do consultório eu ouvia toda a conversa do médico com o meu irmão. Tinha sete anos de idade e ainda não sabia diferenciar o confiável do perigoso. Se o meu irmão achava que o médico deveria me operar, bem achado estava. Mesmo porque, de onde vim, menino e tamanco ficavam debaixo do banco.

Era um final de tarde e pela janela do consultório assisti deslumbrado ao pôr de sol na Baía de Todos os Santos. Bahia de todos os encantos. O mar sôfrego chupava o sol em desejo imoderado e as águas tranquilas espelhavam a vermelhidão do céu anil, muito mais bonito que o arrebol atrás do Cruzeiro dos Montes, cujo horizonte rúbeo enlevava as almas rudes e conduzia os céticos à presença divina.

No caminho do consultório para a casa onde nos hospedáramos, no Terreiro de Jesus, havia uma praça muito bonita, de onde se via a Baía de Todos os Santos. A Praça do Poeta, disse meu irmão. Existiam outras praças, mas não eram tão bonitas quanto aquela. Perto de casa havia uma igreja toda de ouro e outra chamada de catedral basílica. Sair da roça diretamente para a capital foi um choque cultural imensurável. Sequer imaginava haver vida além da Ladeira Grande, o caminho de saída ou de retorno da pequena cidade, o limite entre o real e os sonhos dos do lugar. Não conhecia água encanada, dormia à luz de candeeiro, acordava mal o sol raiava para rezar a Ladainha de Nossa Senhora, andava em garupa de jegue e agora estava ali, no coração da velha Cidade da Bahia, e tudo era novo, tudo era um deslumbramento total. No dia anterior meu irmão me levou para conhecer o mar. Não consegui articular palavra diante daquela visão extraordinária. Léguas e léguas a perder de vista de um tapete azul-marinho. O meu irmão me contou que existiam milhares de mares como aquele e que eles se uniam e davam a volta ao mundo. Como era possível tanta água num lugar só e gente morrendo de sede em outros? Na minha terra, andava-se quilômetros por um pote d’água. O padre, que obrigava o povo a subir de joelhos a ladeira íngreme e encascalhada do Cruzeiro dos Montes em remissão dos pecados, devia saber que Deus privilegiou alguns nas Suas sublimes escolhas.

Chegando a casa meu irmão me chamou a um canto e me falou que precisaria retornar a São Paulo e que eu ficaria aos cuidados dos donos da casa, que eram seus amigos desde os tempos de foca no Jornal da Bahia. A cirurgia aconteceria duas semanas depois, que não me preocupasse não, ia dar tudo certo, confiava no médico, e que no final do mês seu amigo Giese se encarregaria de me levar embora.

Acordei no dia seguinte e não encontrei meu irmão, como nos dias anteriores. “Viajou logo cedo, no escuro”, me disse D. Maria, sorriso bondoso nos lábios. Ela passara de nossa anfitriã a responsável direta por mim. Disfarcei a apreensão de me ver sem nenhum parente em terras alhures, mas, com o passar do tempo, não conseguia disfarçar a tristeza pelos dias iguais que vivia. A casa era um puxadinho no fundo de um sobrado no Terreiro de Jesus, reduto de velhos marinheiros, proxenetas e putas. Dois quartos minúsculos e uma sala que mal cabia a mesa de jantar. O sofá ficava do lado de fora, na varanda sombria, protegida por um muro espremido entre dois velhos prédios. O bem mais valioso da casa era um rádio de pilha que seu Petrônio, o marido de D. Maria, levava todos os dias para o trabalho. No portão, um letreiro avisava tratar-se de casa de família.

Havia mais duas mulheres na casa: Lucy e Judith, filhas de D. Maria. Ambas trabalhavam no comércio da Avenida Sete e, como seu Petrônio, saíam cedo e voltavam à noite, reclamando do cansaço. Somente D. Maria não trabalhava fora e eu passava o dia remoendo saudades pelos cantos. Não havia nenhuma criança para brincar, nem podia sair à porta de casa sozinho. À noite, depois do jantar, as duas mocinhas me contavam histórias e me faziam afagos até dormir em uma cama improvisada na sala, desfazendo a carranca que aumentava com o passar dos dias.

No domingo levaram-me a passear. A solidão era tanta que a Velha Bahia perdera o encantamento. Subir e descer o Elevador Lacerda, andar de bonde ao léu, admirar o pôr do sol da balaustrada da Praça do Poeta já não me fascinavam mais. Ao retornarmos a casa, pensei nos meus irmãos Guidório e Badego, o primeiro, mais velho, o segundo, mais novo que eu. Que estariam fazendo àquela hora? Será que sentiam a minha falta do mesmo jeito que eu sentia a deles? Súbito, ouvi os apelos de minha mãe ecoar na memória:

– Desça dessa jega, menino! Se lembre que seu primo Jucinaldo caiu de uma e quebrou o braço!

Preocupação de mãe é vaticínio. Entre o falar e o cair foi só piscar e coçar. Badego meteu um pau no cu da jega e ela empinou, se contorceu, deu uma upa e fui ao chão, batendo o cotovelo numa pedra. Uma dor aguda e o braço balançando, sem obedecer ao meu comando. Ouvindo os gritos de dor, minha mãe adivinhou o sucedido e mandou Guidório chamar o farmacêutico na rua. Era o único que encanava braço nas redondezas. Hospital, só em Alagoinhas, cem quilômetros além da Ladeira Grande.

O farmacêutico chegou montando um jegue. Caindo de bêbado. Ele e o jegue. Mesmo assim encanou o meu braço, improvisou uma tala com pedaços de ripa, fez uma tipoia com um pedaço de toalha e foi embora, sem receitar um analgésico ou anti-inflamatório. Um mês depois, quando a tala foi removida, minha mãe compreendeu que não se deve confiar serviço ortopédico a um alcóolatra, principalmente em se tratando de luxação: o meu braço não dobrava no cotovelo. Segundo o Dr. Alberto, o encanamento mal feito causou uma sub-luxação, mas a minha mãe nunca soube disso. Para ela, era braço mal encanado mesmo.

Depois do passeio, Lucy, a filha mais nova de D. Maria, me chamou a um canto, perscrutou o ambiente à caça de algum ouvido indiscreto, e depois falou baixinho, quase em cochicho:

– Morro de pena de lhe ver nessa tristeza sem fim, Tonico. Você deve sentir muita falta de seus irmãos e seus amigos, né? E ainda falta uma semana pra você ser operado. Parece pouco tempo, mas quando o sofrimento é muito a dor paralisa as horas. Juntei um dinheirinho e se você aceitar eu lhe dou pra você ir embora pra sua casa.

Olhei-a num misto de espanto e contentamento. A esperança renascia naquele oferecimento. Estaria falando sério ou apenas me provocando?

– Você fala a vera? Você me deixaria ir embora?
– Deixaria, não; deixo. Se eu lhe ensinar como pegar o trem para Alagoinhas, você sabe chegar em casa sozinho?
– Em casa não, mas em Alagoinhas tenho alguns parentes. Também, na vinda, dormimos na casa da mãe de Giese, o amigo do meu irmão que nos trouxe até aqui. Não sei o endereço, mas meu pai fala aos amigos que fica na Rua do Cruzeiro, perto do Jardim dos Macacos. Na estação de Alagoinhas eu pergunto. E a casa da mãe dele eu sei qual é.
– Então vamos fazer assim: amanhã eu venho pra casa meio-dia, digo que vou dar uma volta com você, lhe deixo no bonde que vai pra estação de trem da Calçada, e de lá você segue seu caminho. Já me informei na estação: o trem sai às quatro horas da tarde e chega em Alagoinhas por volta das sete horas da noite. Combinado?
– Combinado!

No outro dia, saciada a fome do meio-dia, arrumei a minha maleta e passei às escondidas a Lucy. Ela saiu furtivamente e retornou, instante depois, sorridente e sem a maleta. Puxou-me pela mão e avisou à mãe que iríamos dar um passeio. Acenei um adeus tímido a D. Maria e apressei os passos antes que o remorso pela minha saída sorrateira me impedisse de levar adiante a minha fuga.

Na rua, pela primeira vez, desde a minha chegada, senti o contraste entre o deslumbramento e a realidade. Vi a imponência da Igreja de São Francisco no final da rua e confidenciei a Lucy minha incompreensão em ver tanto ouro dentro da igreja e a grande miséria do lado de fora. Ela disse que também não entendia a diferença entre a humildade que os padres pregavam e a ostentação que a Igreja praticava.

– É por isso que sou de Oxalá e um dia você vai saber o que quero dizer – completou.

Caminhamos de mãos dadas em direção do Elevador Lacerda, onde nossos destinos se separariam para sempre. Os olhos marejados de Lucy no abraço de despedida foram a única imagem da Cidade da Bahia que conservei na parede da memória.


domingo, 3 de abril de 2011

Maurício Melo Júnior - A infância invisível

Foi Jorge Amado quem primeiro me deu notícia deles.

Era um romance meio proibido, apesar de sua longa idade. Beirava os quarenta anos quando a década de 1970 estava pelo meio, ainda era lido com olhos de escândalo e seu texto somente falava de uma tensa questão social. Pelo sim pelo não foram as palavras que eu podia ler sem medos ou restrições – não me lembro de meus pais terem me proibido nenhum leitura; eu que cheguei, por influência de Tim Maia, a ler O Universo em Desencanto, bíblia de uma seita meio hippie de então –, pelo sim pelo não, dizia, foi Jorge Amado e seu romance que levaram meus olhos a enxergar a infância invisível que circundava minha quase adolescência.

Eram meninos afoitos e libertos, mas não tinham o heroísmo vadio dos personagens jorgeanos e moravam em Palmares. O líder do grupo chamava-se Calango, um homossexual ingênuo, com voz de comando e uma indizível capacidade de revestir todas as atitudes com uma capa lúdica. Gostava de nos mostrar como batia a carteira dos matutos e roubava o relógio dos cidadãos.

A rigor não temia nada, só Luiz Guarda, um policial arbitrário que costumava matar todos os ladrões que encontrava. E enquanto não se deparava com seu destino fatal, Calango se divertia correndo e brincando nas ruas da cidade. Poderia ter presença no romance de Jorge, mas seu tempo era outro, e os capitães da areia me parecem mais reais que a realidade vista de minha janela adolescente.

Não sei o fim de Calango. Acho que quando sai de Palmares ele já não andava pelas ruas. Foi pro Recife? Morreu? Ajustou-se? Impossível saber. Sua invisibilidade ganhou densidade e ele não pertencia ao grupo de meninos que tentava nos arrancar algum trocado enquanto bebíamos pelos bares da Boa Vista. E sempre duvidávamos de seus apelos.

Certa feita um deles se achegou à mesa pedindo dinheiro para comprar comida. Desconfiando de seu pedido, oferecemos sanduiche. E o menino devorou. Agradeceu olhando com olhos súplices para nosso petisco. Oferecemos outro sanduíche. Devorou três ao todo.

Em sua invisibilidade tinha fome e nenhum futuro.

Seus pares espalhavam-se por todos os cantos.

Conheci um deles em Matriz de Camaragibe. Era prestativo, carregava as compras de quem se dispunha a dar-lhe algumas moedas na feira da cidade. Como o morador do cais da Bahia, Perna-Seca, tinha um perna comida pela poliomielite, mancava e chamava-se Pé-de-Bombo. Mais do que viver, brincava pelas ruas escaldantes da cidade, pela praça Bom Jesus, um descampado onde nas festas de Ano-Novo se armavam barracas de madeira para as funções da pândega, os jogos e as bebidas.

Dia dois de janeiro, passada a procissão e fechadas as barracas, sobravam as armações de madeira. Liderando um bando de cangaceiros lúdicos, Pé-de-Bombo se encarregava de derrubar os restos. Aquelas estranhas ruínas que ainda recendiam a madeira nova caiam, uma a uma, na força lúdica do lazer dos meninos que logo sumiam, iam brincar noutros terreiros, deixando aos garis a necessidade de recolher os novos restos.

Eu que os aprendi a olhar nas páginas da literatura, sem cheiros desagradáveis e com o futuro trágico ou glorioso descrito no final do volume, ainda me surpreendo.

Ceio que o precursor de todos eles, pelo menos nos livros, foi Leonardo, o herói de Manuel Antônio de Almeida, das Memórias de um Sargento de Milícia. Era no tempo do rei Dom João VI que ele reinava no Rio de Janeiro. Abandonado por pai e mãe, vivia entre a liberdade das ruas e o pouco rigor da casa do padrinho, o barbeiro que “arranjou-se”. O mundo era tão outro que das ruas Leonardo também “arranjou-se”.

De outras leituras – dos jornais, das revistas – vejo crescer a invisibilidade dessa gente e os alertas vêm de longe, muito longe.

“E o garoto de doze anos, raquítico e cínico, encostado num poste, escolhe entre os passantes precisamente aquele que sabe ingênuo e facilmente enganável. É um psicólogo instintivo, no excesso de pó que cobre o rosto de certa senhora descobre a infalível beata, a dona da bolsa cheia de níqueis destinados aos mendigos que possa encontrar no caminho…”

Eu ainda encontro esse garoto de doze anos, não cresceu, embora José Carlos Oliveira o tenha visto nas ruas do Rio de Janeiro e era novembro de 1953. O tempo teima em não passar para essa gente invisível. Continuam vagando na vastidão, Carlinhos, pois “sobre os desmandos e a insensatez dos adultos paira a inocência infantil”.

Enquanto isso fazemos literatura, enquanto isso o real escarra em nossos rostos escanhoados todas as manhãs.

Pouco antes das seis da madrugada, no Núcleo Bandeirante, cidade-satélite de Brasília, um menino brincava com uma cadeira de rodas. Descia na disparada possível a rua de baixo declive. Estava feliz. Disse um galanteio chulo para duas senhoras que passavam de roupa justa com destino à academia. Elas não deram bola. “Coitado, deve estar varado de crak”, diagnosticaram. E o menino, nem-aí-seu-souza. Corria com a cadeira que tomara emprestado a outro miserável. Já estava invisível.

Os olhos bem formados somente costumam enxergá-los nos noticiários, na narrativa de tragédias que nenhum Sófocles escreveu.

Todos perderam a ingenuidade, já não se assinam Pedro Bala, Calango, Leonardo, Pé-de-Bombo, não esperam a senhora maquiada nas esquinas, não pedem sanduíches. Cresceram suas necessidades e suas encruzilhadas são bem mais cruéis e doloridas.

Cresceu também nosso distanciamento.

Pela televisão, impotentes, ou indiferentes, assistimos o balé macabro. Vestidos de trapos, andrajos, jogaram fora as latas de cola que já nos chocou e fumam crak com o prazer danado de quem caminha para a indesejada. A certeza de que não chegam a lugar nenhum nos transmite a segurança de que não carece enxergá-los. Até a lei os apaga da vida. São inimputáveis, não são responsáveis, e nesta condição, são canteiros férteis para a criminalidade de outros tantos.

E no meio do desalento, na calçada de um edifício em Maceió, por esses dias, esperando um amigo, vi a polícia acossando essa infância invisível. Um deles, idade indefinida, talvez doze anos, levantava com seus trapos. Dormia sob uma árvore. Caminhou até a árvore mais próxima. Voltou a dormir. Seu amigo, um pouco mais velho, ensaiou um discurso. Deus está vendo. Chamou a polícia para nos expulsar daqui. Nós não roubamos, queremos só viver. E porque estão na rua? Minha mãe morreu. Não tenho pai nem para onde ir. E essa corda aí na árvore? Só um balanço; a gente precisa se distrair, né? É.

A ausência do espaço lúdico, da solidariedade, da esperança.

E aí fechamos a porta e abrimos um livro. A legião de excluídos, espectros vivos, ganha a rua na solidão da madrugada fria.

O mundo pode dormir em paz.