Um Canto de Afoxé Para Izabel
De Placa de Aviso |
Dentre outras coisas, o Houaiss diz que: “comoção é emoção forte e repentina”. Então posso afirmar, sem medo de errar, que, o que senti dia desses foi uma comoção, um choque emocional causado pela surpresa (grata, ressalte-se) de encontrar uma pessoa ligada ao meu passado chegando inocentemente para o meu barraco das convivências cibernéticas. E ela se chama Izabel Urpia, que chegou a mim trazida por um amigo português, discípulo de Alexandre O’Neill, o também poeta Jota Vilela.
O simples pronunciar do nome “Urpia” já me causa frisson, comichão espiritual, uma vontade de mergulhar no túnel do tempo e resgatar as lembranças dos áureos tempos da inocência. A presença de um “Urpia” é o próprio passado que me visita, as reminiscências que afloram contundentes, as recordações que me espetam como um roseiral de espinhos. A lógica da vida beira à raia da incongruência quando assistimos a tantas fatalidades despropositadas e que o nosso bom senso reluta em aceitar como uma regra justa da vida: a Morte não tem hora anunciada nem data marcada para acontecer. E nos rebelamos contra este enunciado democrático e universal, pois, por mais que tenhamos consciência do nosso processo de transmigração ou de desencarnação, há sempre uma forte indagação dos pranteadores mais próximos do pranteado: “Por que teve que ser ele (ou ela), meu Deus!?” esquecendo-se que a Morte é a regra número um da Vida e que uma não existe com a exclusão da outra. Vida e Morte coabitam no mesmo Destino.
Cristina, minha primeira mulher, era uma “Urpia” e vivia o apogeu dos seus vinte e sete anos quando a fatalidade resolveu nos procurar. Uma simples gripe mal cuidada virou pneumonia. O médico achou que ela devia se internar para se curar mais rápido. Renitente, em casa ela não faria o tratamento adequado, vez que fumava um cigarro atrás do outro e era adepta do “gripe se cura com cachaça, limão e mel”.
Às dezoito horas deu entrada na enfermaria do hospital Jorge Valente, enquanto aguardava vagar um quarto. Às vinte e duas horas saiu da enfermaria e foi direto para a UTI, em coma profundo, devido a um vírus hospitalar. Trinta dias depois veio a falecer, sem que os médicos tivessem respostas convincentes para a tragédia que se abateu sobre a família. Deixou três filhos pequenos e uma saudade imensa.
Conheci Cristina em 1977, em uma viagem de ônibus de Paulo Afonso para Salvador. Ela era a passageira da poltrona ao meu lado e, uma hora depois de conversa e prosa, marcamos casamento. Era o mês de maio, mês das marias, das noivas e do nosso Destino. Em setembro ela engravidou e em dezembro nos casamos na igreja de Nossa Senhora Santana, no Rio Vermelho. Ela estava com 17 anos; eu, 20.
Após o carnaval de 1983, na quarta-feira de cinzas para ser mais exato, cheguei à conclusão que havia muita mulher em Salvador para pouco homem. Não era justo continuar amarrado quando tinha o mundo e as mulheres aos meus pés. Assim, com cara de ressaca, arrumei a mala e dei bye, bye que durou toda a sua curta vida. Porém, por um desses estranhos desígnios de Deus, ela conheceu e ainda recebeu em sua casa aquela que viria a cuidar dos seus filhos, meses depois.
Mas retomemos o tempo presente. Retornando da caminhada de hoje, pensando nisso tudo e na placa com o estranho aviso, não resisti e toquei a campainha da casa em questão. Um cachorro latiu amofinado, um velho tossiu irritado e uma senhora sorridente me atendeu:
– Desculpe-me pelo incômodo, moça, mas é que não resisti à curiosidade: o que significa esses dizeres “cuidado comoção”?
– Né comoção não, moço. O que está escrito é: “cuidado com o cão”. O senhor não sabe ler não, é?
Lá dentro o cão latiu hostil e um papagaio debochado afinou o chalreio: “uuh, babaca!”
Um comentário:
Muito engraçado este texto.Curiosamente meu grande amigo chama-se Edvaldo Urpia,aqui em Salvador.É muita andança mesmo.Um abraço.
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