Aproveito a festa do grande Dalton Trevisan pelo Prêmio Camões, maior prêmio da Literatura de Língua Portuguesa em termos de prestígio e cifrões, para republicar uma crônica de Antonio Torres, do seu livro "Sobre Pessoas" em que fala da invisibilidade do autor numa feira de livro de Curitiba.
Tudo que sabia dela era de ouvir dizer. Coisas assim: que no fundo de cada filho de família dorme um vampiro, como o Nelsinho, o Delicado, ou o Dalton, o Contista, suplicantes de beijos das virgens - e de suas carótidas. Mesmo sendo refratários à luz do dia, tornam-se invisíveis, só para contrariar os bisbilhoteiros que a visitam na vã esperança de identificá-los. Quais seriam eles, entre aqueles encostados num balcão, de olho nas meninas que passam, sem lhes prestar atenção? Se é isto o que você quer saber, pode ter certeza de que perdeu a viagem. No entanto, acredite: bem diante dos seus olhos, um deles estará às raias do êxtase, ante a esplêndida visão de uma viúva que acaba de sair de um carro: ''Ela está de preto... Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!''.
Impossível não associar Curitiba ao ritual de seus pequenos vampiros, súditos de Onã, priápicos inofensivos a enxugar conhaques, para afogar os dissabores de uma adolescência espinhenta. Ou a um humorístico jogo de palavras que certamente lhe soa tão espirituoso quanto incômodo: ''Ritiba quer dizer 'do mundo'''. E ainda à definição que lhe cunhou a roqueira Rita Lee: ''Uma cidade arrumadinha, bonitinha, com uma gente educadinha''. Só que esta cidade, justa ou injustamente reduzida a diminutivos, é uma das que mais crescem no país.
Fiz um bordejo por lá, a convite da Confraria da Palavra. Palestras. Na PUC-PR e numa simpática Feira de Livros na Praça Osório. Quando cheguei, Carlos Heitor Cony já tinha pegado o avião de volta. Logo outro carioca talentoso, o Fernando Molica, deu o ar da sua graça para um reforço à programação cultural do evento e, a bem dizer, preencher um pouco a lacuna deixada pelo experiente Cony.
Para mim, foi como ir a Roma e não ver o papa, pois Dalton Trevisan, o sumo pontífice das letras paranaenses, ficou famoso também pela invisibilidade. Recluso sistemático, não se sabe se o ermitão Dalton existe ou é ficção. Modo de dizer. Miguel Sanches Neto, um novo valor que se alevanta no Sul, uma vez me garantiu que costuma bater em seus umbrais, e que ele lhe abre a porta, numa prova inequívoca de que sua existência é real, embora escondida a sete chaves da curiosidade pública.
Esse ourives de palavras - um gênio minimalista - foge do assédio como o diabo da cruz. E nisso faz lembrar o finado Scott Fitzgerald, quando dizia que não podia suportar a visita de celtas, ingleses, políticos, estrangeiros, virginianos, lojistas, intermediários em geral, todos os escritores (evitava os escritores com o maior cuidado, porque eles podem perpetuar a agitação e o desassossego melhor do que ninguém) - e todas as classes como classes, a maioria delas pelos seus membros...
Seja lá qual tenha sido o motivo, o certo é que o criador de O vampiro de Curitiba não foi à feira. Ainda assim, a praça atraiu de poetas a loucos. Nenhum dos autores convidados conseguiu causar mais impacto do que uma mendiga. Esta roubou a cena diante de uma mesa de autógrafos, ao bradar, insistentemente: ''Senhor vereador, eu quero uma saia nova!''. Acabou sendo tratada respeitosamente. Aí dei razão a Rita Lee: em Curitiba há uma gente bem educada, sim senhora!
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