Em mais de
uma oportunidade, já afirmei que não tenho comércio com a morte. Nunca deixei
de dormir pensando nela. A bem da verdade, a simples ideia de uma vida eterna
me assusta mais que a “indesejada das gentes”. Às vezes me surpreendo repetindo
Bandeira: “Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres”. Como não
acredito na ressurreição, vivo o que me é dado viver sem maiores ilusões. Para
meu uso (não sei se funciona com os outros), inventei um estratagema para
jamais perder as pessoas que amo. Eu, simplesmente, nunca as imagino mortas.
Guardo dos meus amigos e amigas que partiram as lembranças mais vívidas. Creio
ser a maior homenagem que lhes posso prestar.
Agora, por
exemplo, estou pensando no poeta H. Dobal, que nos deixou há quatro anos.
Impossível não sorrir das bobagens que conversávamos quando saíamos a passear
pela periferia de Teresina nos finais de tarde. De repente, o poeta disparava:
“Se não me falha a memória, esse panteísmo está muito bonito”. Uma frase
absolutamente surrealista. Ríamos como
se aquilo fosse algo extraordinário. Nas manhãs de domingo, M. Paulo Nunes,
Halan Silva, Douglas Machado, Paulo José (às vezes) e eu visitávamos o poeta. Paulo
Nunes adentrava o apartamento recitando: “Poeta fui e do áspero destino...”
Dobal emendava de bate-pronto: “Até
pensavam que isso fosse meu”, e ríamos da velha e surrada história do poeta
medíocre que declamava o famoso soneto de José Albano, não se esquecendo de
afirmar que acreditavam ser o soneto composição dele. Comigo, a senha era outro:O senhor é poeta Hildeburgo Dobal Teixeira?
Sério, como se estivesse aborrecido, Dobal me recriminava: “Acho que o senhor
se olvidou. O funcionário público é Hindemburgo Dobal Teixeira e não
Hildemburgo; o poeta é H. Dobal”. Mais risadas. Tomávamos café com o famoso
bolo frito da dona Gonçala e falávamos bobagens como adolescentes desocupados.
O poeta era um excelente contador de causos, com um incrível senso de humor.
Das muitas
histórias que contava, a mais interessante, para o meu gosto, é esta: fiscal do tesouro, Dobal chegou a um povoado
no sertão do Piauí e procurou um local onde pudesse comer alguma coisa. De
repente, viu uma palhoça ostentando uma placa vistosa: “Restaurante
Oriental”. O poeta comeu o único prato
disponível: maxixe com carne de bode e farinha. Terminada a refeição, não se
conteve. Perguntou ao dono da birosca: “O senhor serve algum prato oriental?”. “Não, senhor”, respondeu o cidadão. “Seus
antepassados eram orientais?”. “Não, senhor”. “Como surgiu a ideia do nome do
seu estabelecimento?”. Sem se fazer de rogado, o sertanejo explicou: “Foi
promessa, seu moço”. Diante do espanto do poeta, prosseguiu: “Eu estava
passando necessidade, fome mesmo. Aí fiz uma promessa com Nossa Senhora pra ela
me orientar. Ela me orientou pra eu abrir este restaurante. Vou escapando, com
a graça de Deus”. Impossível lembrar, com tristeza, de uma figura capaz de
tiradas como esta. Além dos causos, Dobal deixou sua imensa poesia, alimento de
que me sirvo com frequência. Está mais vivo do que nunca.
NOTA DO BLOG:
H. Dobal publicou as seguintes obras:
- O Tempo Conseqüente (1966)
- O Dia Sem Presságios (1970)
- A Viagem Imperfeita (1973)
- A Província Deserta (1974)
- A Serra Das Confusões (1978)
- A Cidade Substituída (1978)
- Os Signos E As Siglas (1986)
- Uma Antologia Provisória (1988)
- Um Homem Particular (1987)
- Cantiga De Folhas (1989)
- Roteiro Sentimental E Pitoresco De Teresina (1992)
- Ephemera (1995)
- Grandeza E Glória Nos Letreiros De Teresina (1997)
- Lírica (2000)
- Gleba dos Ausentes * Uma Antologia Provisória (2002)
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