sexta-feira, 30 de maio de 2014

2 O Homem que pensou ser Deus



Conto 2 – A Gênese

Muito bem antes daquela fatídica manhã em que o estrelismo subiu à cabeça de Silveirinha e ele acordou pensando que era Deus e que poderia sair voando por aí ele também acordou em uma manhã de inverno pensando que era escritor. Sentou-se à beira da cama, acendeu um cigarro e se pôs a divagar sobre sua nova descoberta. Anteviu seu nome no Caderno Dois dos principais jornais do país e teve um breve relampejo visionário de um bate-papo com os seus colegas acadêmicos da casa de Machado de Assis.

Morava sozinho. Não porque quisesse, mas por incapacidade ou timidez, talvez. Uma vez resolveu investir em uma vizinha assanhada que ficava na portaria do prédio dando bola pra gatos e cachorros. Levou dois dias escrevendo uma carta-poesia para a sirigaita, deu cinquenta reais ao porteiro para se fazer de portador, e, quando menos esperava, bateram à sua porta. Era o porteiro que trazia debaixo do braço um espelho e uma resposta da pretendente. Despachou o portador e abriu o bilhete na ânsia que domina os amantes nos instantes próximos ao encontro. À medida que se envolvia na leitura, seu rosto se fechava em uma carranca de desgosto; seu olhar perdeu o brilho e ele chorou feito criança perdida no meio da multidão. Refeito, enxugou as lágrimas e pronunciou um impropério contra a vizinha e atirou o espelho pela janela, sem se incomodar com a superstição dos sete anos de azar para quem quebra espelho. Ou com a possibilidade de atingir algum transeunte na calçada.

– Velho babão é a puta que lhe pariu, sua vagabunda! –  vociferou.  

Depois desse episódio nunca mais teve coragem de encarar uma mulher. Retraiu-se em uma timidez crescente e passou a usar a mão grande como consolo. Assinou revistas de mulheres peladas, comprou filmes pornográficos e se cadastrou em sites proibidos para menores de dezoito anos. Finalmente descobrira uma nova modalidade de fazer sexo sem risco de pegar Aids ou outra doença venérea qualquer. Mesmo assim, por precaução, usava camisinha.


Levantou-se da cama e olhou para o computador. Agora ele teria outra utilidade, uma função nobre e, como prêmio pela nova tarefa, ganharia umas memórias a mais. Ligou a máquina. A placa-mãe fez “bip” e ele sorriu enigmático. Ou triunfal. Puxou a cadeira e abriu o editor de texto do seu micro. Aquela data era histórica e merecia uma comemoração. Foi ao bar e preparou um drinque, esquecido de que ainda não tinha forrado o estômago. Retornou ao teclado e exercitou os dedos antes de dar asas à imaginação.

Ao cabo de duas horas imprimiu o que chamou de seu primeiro best-seller. Leu em voz alta e gostou do que ouviu. Entrou na internet em busca de um site onde pudesse publicar seu texto. Não adiantava escrever e ninguém poder ler.

Depois de muita procura, encontrou um que achou legal. Fez o cadastro e enviou o texto, recebendo a promessa dos moderadores do tal site de que no outro dia a sua crônica estaria publicada. Retornou ao micro e passou a dedilhar causos e mais causos, até esgotar o espaço no HD.

No dia seguinte, ao abrir sua caixa de mensagens, havia umas linhas elogiosas de uma escritora daquele site. Retornou a mensagem, agradecendo, e daí nasceu uma amizade que seria duradoura se não fosse trágica.

A escritora tinha uns contos picantes e Silveirinha, acostumado ao prazer solitário, se amarrou neles. Imprimia-os e corria para o banheiro para se masturbar, imaginando-se o personagem das estórias. Inicialmente fazia isso às escondidas; depois escancarou para a escritora a sua dificuldade em ter mulher e de como estava fazendo para se virar. A escritora sentiu a vaidade aflorar à pele e uma pontada de orgulho picou seu coração e ela propôs que se tornassem amantes virtuais e que ele se masturbasse ali mesmo, enquanto ela ficava nua, se manipulando com o mouse e filmando com sua webcam. Silveirinha achou o máximo. Depois de muito tempo ele iria ter um orgasmo na frente de uma mulher. A pedido dela, aboliu a camisinha. Também não fazia sentido.

Durante dois anos eles viveram assim, se amando no silêncio corrupto dos megabytes cibernéticos, vistos apenas pelo olhar frio da câmera e do monitor de vídeo; ela lhe chamando carinhosamente de Sil e ele retribuindo com o apelido de Formiguinha, até o fatídico dia em que ele, por um acaso, descobriu que ela não lhe era fiel e que mentia descaradamente quando afirmava que desligaria o computador tão logo sentisse o último tremor do orgasmo contrair a sua vulva e seus pulmões parassem de arquejar. Desesperado, pulou da janela do seu apartamento, no vigésimo quinto andar, pensando que era Deus e que podia voar, levando Formiguinha a pronunciar impropérios de revolta sobre o seu caixão virtual:

– Eu lhe dei chifres e não asas, seu idiota!

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