segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Alagoinhas

Conferência proferida na Uneb – Universidade do Estado da Bahia, na cidade de Alagoinhas (campus 02), em 17.12.09.

Por Antonio Torres


De Estação do São Francisco, Alagoinhas, Bahia

Nota do Blog: A monumental estação de São Francisco, em Alagoinhas, com um prédio em arquitetura inglesa, inaugurado em 1860 e hoje totalmente abandonado (Fotos Ralph M. Giesbrecht).

Luzes verdes, sonhos dourados

Ou: quando as marcas culturais da cidade de Alagoinhas eram sinalizadas pelos letreiros luminosos nas fachadas das lojas na Praça J. J. Seabra – a das árvores podadas artisticamente em forma de pássaros -, seguindo pela Rua Coronel Anísio Cardoso, cujo movimento intensificava-se à noite com a chegada na Estação da Leste de um trem chamado Marta Rocha, que trazia os passageiros mais elegantes e os jornais da capital, e depois das sessões do Cine Azi, onde toda uma geração aprendeu a beijar, a dizer “Ai lóvi iu”, e a andar como se tivesse acabado de apear do cavalo do cow-boy. E a ficar horas diante de um espelho, caprichando num pimpão igual ao do Elvis Presley – com a untuosa ajuda da brilhantina Glostora -, cantando “Don’t leave me now”, como no filme “O prisioneiro do amor”, e...


Era uma vez um menino que nunca tinha visto uma cidade tão iluminada.
Ele estava de passagem, com os pais. Vinham de longe e mais longe iriam, para pagar uma promessa a Nossa Senhora das Candeias. Pernoitariam ali mesmo, na Anísio Cardoso, e no Alagoinhas Hotel, do seu hospitaleiro tio Zica. “Que luzes bonitas!”, exclamou o menino. “E são verdes!” Sua mãe, dona Durvalice, o repreendeu: “Não se admire demais do que está vendo, não. Para não dizerem que você é um tabaréu”.

Mas era. Daí o seu deslumbramento. Naquele anoitecer, a cidade iluminava-se diante dos seus olhos como num conto de fadas. Ou como na “viagem inventada no feliz” de um outro menino, o do conto “As margens da alegria”, de João Guimarães Rosa, que só iria ler muito mais adiante, na idade adulta, com o encantamento de quem se reencontra com a criança que havia sido um dia.

As luzes davam uma aura de sonho à cidade onde seus tios José, o Zica, e Antônio se tornaram prósperos hoteleiros, na era dos caixeiros-viajantes. O hotel do segundo tio se chamava Brasil. E ficava a poucos passos do outro. Num 2 de fevereiro, dia da festa de Nossa Senhora do Amparo, a padroeira do Junco, então um distrito de Inhambupe e hoje a cidade de Sátiro Dias, eles reapareceram na terra em que haviam nascido. Chegaram num automóvel empoeirado, vestidos de terno branco e acompanhados por suas elegantíssimas esposas chamadas Nerina e Nair. Imagine o alvoroço do lugar com a repentina chegada daqueles dois filhos pródigos. Não seria exagero compará-lo ao provocado por um prefeito de Nova York de origem italiana, chamado La Guardia, no dia em que visitou a sua aldeia natal, na Sicília. “Eu carreguei você no meu ombro”, diziam-lhe emocionadas senhoras, que de bom grado voltariam a carregá-lo, mas num andor, se seus braços ainda o permitissem. Foi mais ou menos assim o que aconteceu no regresso dos ilustres filhos do Junco. Até o pai deles (chamava-se Adelino), que tanto relutara em permitir que fossem embora, ainda jovenzinhos, agora, no papel do mais abençoado dos patriarcas, desmanchava-se em mesuras em meio ao entra-e-sai na sala de visitas de sua senhorial “casa da rua”, cuja porta e janelas só se abriam nos dias de missa e santas missões. Era como se agora ele acabasse de ser ungido a um novo poder: o de pai de dois filhos bem sucedidos num mundo infinitamente mais civilizado. E esse mundo tinha um nome que a partir daquele dia passaria a ser pronunciado de boca cheia: Alagoinhas! A nova Meca daqueles sertanejos, situada a 15 léguas de distância, na linha divisória entre o sertão e o recôncavo. Tão perto, quão longe. A estrada ainda era de terra, sujeita aos atoleiros, e veículos motorizados naquelas bandas eram raridades.

Voltemos ao retorno vitorioso aos seus pagos daqueles endomingados cavalheiros, que assim fariam o outrora austero senhor que agora os recepcionava, desmanchando-se em sorrisos, esquecer a consumição do dia em que aqueles seus dois filhos tentaram escapar do domínio patriarcal, o que seria descoberto um pouco antes do romper da aurora, quando os chamou – “Zica, Tonho, acordem para rezar a ladainha” -, e não houve resposta. Então pulou da cama e pôs toda a sua numerosa prole em ação, na busca dos desaparecidos, em terreiros e quintais, casa de farinha, curral, paiol, pastos. E nada. Por fim só restou a todos admitir que eles haviam fugido. O desapontamento diante de uma situação que parecia irremediável não impediu aquele pai de raciocinar com rapidez. Mais que depressa mandou chamar o seu vaqueiro Alvino, que imediatamente dispararia a galope pelas sete léguas da estrada que levava à cidade de Inhambupe, até encontrar as duas rezes desgarradas, laçá-las e trazê-las de volta ao rebanho. Cumprida com destreza, a missão do vaqueiro impediu os dois fugitivos de pegarem o atalho para um lugar chamado Serraria, destino, afinal, que seria adiado, até o dia em que o pai desta história finalmente se rendesse, ainda que de coração partido, aos constantes apelos para deixá-los ir embora, e que Deus os levasse, antes que o Diabo os carregasse.

Portanto, não precisaram fugir uma segunda vez. Nesta, partiram com o consentimento de um pai vencido pelo cansaço ou que afinal sucumbira à incontrolável determinação daqueles dois filhos de romperem os laços que os prendiam à sua autoridade. Com o passar do tempo, o Junco os esquecera. Pouco ou nada se sabia deles: onde estavam, o que faziam, como viviam. E agora eles davam os ares de suas graças, com seus modos civilizados, cada qual todo alinhado, bem falante, e belamente acompanhado. Embora também originárias de um remoto lugar chamado Serraria, onde o destino os levara a conhecê-las, as duas beldades pareciam modelos saídos de um figurino. E, além de bonitas, eram alegres, simpáticas, e muito educadas. Bem nascidas, estudaram na capital do estado, e só pela boa educação que haviam recebido poder-se-ia imaginar o cabedal que agregavam. A assinatura do pai delas, por exemplo, era um aval irrecusável em qualquer agência bancária de Alagoinhas, cidade cuja influência comercial se estendia por vários municípios da região. Logo, viagem “inventada no feliz” mesmo foi a dos intrépidos Zica e Tonho. Parecia até que assim fora escrito nas estrelas que iluminaram as suas noites de sonho no Junco: que um dia eles iriam chegar a Alagoinhas, onde seriam muito felizes. Não iria faltar quem lhes seguisse os rastros, a começar pelos seus próprios irmãos Edgar, Manoelito (o Louro), Dinalva, Marieta, Zizi...

Em 1954, o menino do começo desta história acabaria sendo levado pelos seus tios Zica e Nerina, para estudar no ginásio do professor Carlos Cunha, uma bela construção com um amplo e bem arborizado pátio interno, dotado de áreas para a prática de esportes e para a realização de festas, como a da laranja, uma das mais concorridas da cidade. As salas de aula tinham janelas que se escancaravam para um paraíso ecológico. Todos os caminhos do Ginásio de Alagoinhas passavam por laranjais, cujas cercas eram um convite a um pulo, ainda que isso pudesse significar três dias de suspensão, além da obrigatoriedade de se escrever quinhentas vezes uma mesma frase, em forma exaustiva de compromisso de que o invasor de sítios alheios jamais voltaria a cometer tal delito.

Além do olho de lince de um vigia (o senhor Teonílio), e das diligências dos bedéis (senhor Emiliano, dona Maria e dona Deográcia, a pontualíssima batedora do sino para a entrada e saída das salas), das ordens unidas e aulas de educação física, o ginásio do professor Carlos Cunha impunha ainda os rigores das longas caminhadas no trajeto de casa até ele, para quem não vivia nas suas circunvizinhanças, ou seja, ali pelas proximidades do hospital Dantas Bião, depois do qual uma singela estradinha de areia estendia-se até a Lagoa do Frade. Aqui, vale o registro de que em Alagoinhas, na década de 1950, não havia nenhuma linha urbana de ônibus; contava-se nos dedos o número de automóveis; só uns poucos felizardos possuíam bicicleta; e menos ainda os que invejavelmente desfilavam montados numa lambreta, depois que tal veículo motorizado virou sonho de consumo dos rapazes que se imaginavam na pele de John Herbert no filme “Alegria de viver”. Ou seria na de James Dean, em “Juventude transviada”?

Mas inveja mesmo, de fulminar a rapaziada, quem provocava era o ginasiano Valdemar Paraguassú, ao eletrizar o salão do Clube Social, quando a orquestra Os Turunas, comandada pelo clarinetista Benigno, atacava de rock and roll, e ele, com seu balanço inimitável, mais parecia um personagem do filme Rock around the clock, causando espanto a uma cidade que ainda se movia a passos de bolero (dois pra lá, dois pra cá). Aliás, naqueles anos também de rumba, chá-cha-chá, samba-canção, valsa, baião etc., Alagoinhas fazia bonito nos salões também ao ritmo da Filarmônica da Euterpe, principalmente no carnaval e na micareta. Folia foi o que nunca faltou aqui.

Não se deduza que tudo nesta cidade se resumia aos bailes e ao roubo de laranjas nas horas vagas. Havia ainda o alvoroço no Parque à saída das meninas do Santíssimo Sacramento - que mistérios escondiam as mimosas alunas do colégio das freiras? -, um piano ao cair da tarde na Rádio Emissora, a voz inigualável do locutor F. R. Dias, Glenn Miller tocando “Moonligth serenade” no Serviço de Alto-Falantes, nas noites de luar, o jornal do doutor Walter Robatto e o da LBV (Legião da Boa Vontade), dirigido por um funcionário do Banco do Brasil, o senhor Lima, o Rotary e o Lyons Clube, o Tiro de Guerra 110 (“Escola, sentido”!), os maçons, os espíritas, as missas no convento dos capuchinhos e na igreja de Santo Antônio, as procissões, as festas juninas. Um dia as moças da cidade passaram a se postar às janelas, inebriadas ante o desfile das caminhonetes carregadas de possíveis bons partidos, identificados pelos capacetes com a logomarca da Petrobras na frente, quase tão emblemática quanto o dístico “Ordem e progresso” da bandeira nacional. E ficariam ainda mais assanhadas quando geólogos canadenses ocuparam a mais bela casa da Praça Ruy Barbosa. Encarregados de detectar a existência de petróleo por aqui, todo fim de tarde eles podiam ser vistos bebendo gim na Sorveteria Chic, enquanto apreciavam o movimento da Rua Coronel Anísio Cardoso. À noite iam ao cinema, pois, para eles, não havia muito mais a fazer. Mas tinha de acontecer. Um dia voltariam para o Canadá, levando as garotas mais cobiçadas do Parque.

Conquanto, como admite agora o alagoinhense Valdemar Paraguassú, a vida cultural de Alagoinhas fosse limitada, esta cidade parecia uma metrópole para quem vinha de um lugar sem rádio e sem notícias das terras civilizadas, e que aqui, além de tudo isso, iria encontrar livros e livros às mãos cheias: na estante do grêmio do ginásio, nas bibliotecas da Prefeitura e do IBGE, nas casas do professor Carloman Carlos Borges e do doutor juiz (e poeta) Eurico Alves Boaventura, além dos que podia adquirir na Livraria São Jorge, do saudoso Teófilo Maciel. Sem esquecer os romances que sua tia Nerina recebia pelo correio, a crônica de Rachel de Queirós e os Arquivos Implacáveis de João Condé na revista O Cruzeiro, que seu tio Zica levava para casa toda semana. Portanto, na culturalmente limitada Alagoinhas daquele tempo era possível encontrar-se estímulos para a leitura e a criação literária. No ginásio, o jornal mural criado por Kerdoval Macedo oferecia espaço para a publicação de pequenos textos, enquanto que outros mais longos vinham à luz nas páginas do bravo “Avante”, cuja redação era composta por Josival Fagundes, Aristóteles Freitas Costa, José Carlos Fiscina, e o locutor que vos escreve, que nele publicaria os seus primeiros rabiscos em prosa e poesia. E do jornalzinho do ginásio chegaria às páginas mais públicas do “Alagoinhas Jornal”, que saía uma vez por mês e era vendido na banca da Praça J. J. Seabra, e também por assinatura.

E era no jornal do cirurgião-dentista Walter Robatto que morava o perigo. Uma diatribe publicada ali contra o aumento da mensalidade do ginásio por pouco não custou a expulsão do articulista, que vinha a ser o mesmo que agora conta como foi. Por causa de uma expressão maliciosa, “a casa grande do professor Carlos Cunha”, o autor da brincadeira foi chamado às falas. Mal contendo sua indignação, no seu habitual tom de voz manso, educado, o dono do ginásio perguntou:

- O senhor sabe o que significa isto, não sabe?
- Seu ginásio é uma casa comprida, portanto grande. Foi isso o que eu quis dizer – respondeu-lhe o aluno emparedado.
- Sabe o que significa a palavra rapace? – continuou o professor Carlos Cunha, sempre em sereníssimo tom de voz. - O que o senhor está me dizendo é a mesma coisa que eu tivesse escrito a seu respeito chamando-o de rapace, que significa rapinante, e depois alegasse que o que queria mesmo era chamá-lo de rapaz. Logo, ao usar o título do livro de Gilberto Freyre, “Casa Grande & Senzala”, para definir o meu ginásio, o senhor estava me chamando de senhor de engenho escravocrata.

Ele esticou o braço e puxou uma gaveta, da qual retirou a ficha do pálido aluno à sua frente, que em sua defesa insistia no argumento da equivalência casa grande – grande casa, o que não iria colar, jamais.

- Só não vou lhe expulsar porque suas notas são boas. Mesmo assim, o senhor fica suspenso por três dias. E também exijo uma retratação, no mesmo jornal.

Ufa! Que lição para o escriba-aprendiz. Imagine o desastre que seria uma expulsão daquele ginásio, já que não havia outro na cidade. Olhando por esse ângulo, a pena reduzida a uma suspensão de três dias não era o fim do mundo. E era até menos vergonhosa do que ter de se retratar publicamente. Significava uma pausa para refletir sobre as margens da alegria de escrever. “Le parole sono pietre”, diria seu colega e amigo ítalo-alagoinhense José Carlos Fiscina, o seresteiro que gostava de cantar “Mamma son tanto felice”, para embalar os sonhos das meninas internadas no colégio das freiras. Uma opinião por escrito tinha muito mais riscos do que escrever as cartas dos apaixonados analfabetos da sua terra, como havia feito no seu tempo de escola rural, quando era recompensado com deliciosos direitos autorais, pagos em guloseimas, nos dias de feira, e não com punições, pensava aquele que acabava de perder sua inocência em relação à liberdade de expressão.


O curioso era que poderia ter sido expulso do ginásio por fazer uso de uma expressão aprendida nele (mas empregada contra ele, na abalizada avaliação do seu proprietário), e ao próprio aluno significando isto um aprendizado do manejo com as palavras. Um exercício de escrita, enfim, entre tantos para os quais professores daquele mesmíssimo ginásio não lhe poupavam incentivos. E isto desde o exame de admissão, quando a bela Claudionora - que ficava ainda mais encantadora quando cantava Angelitos negros nas solenidades realizadas no Salão Nobre -, cravou uma belíssima nota dez na prova de redação de um certo aluno egresso da Escola Rural de Sátiro Dias, e que assim iria à forra da tal de matemática, da qual passaria raspando, com uma salvadora, para não dizer misericordiosa, nota mínima! Uma goleada de 10 a 5 das letras sobre os números. Como se aquele exame de admissão ao Ginásio de Alagoinhas já lhe pudesse servir também de teste vocacional.

Quatro tipos inesquecíveis e um destino

1. Primeiro, recordo a figura de um sujeito esquisitão que apareceu em Alagoinhas num dia qualquer, trajado como quem ia a uma missa solene. Com toda probabilidade, o estranho transeunte havia desembarcado na Estação da Leste, ou seja, da Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro. Devia até ter chegado no “Marta Rocha”, o trem que ganhara esse nome, na boca do povo, por ser o mais bonito de todos que circulavam de Salvador para Alagoinhas e vice-versa. Seja lá qual tenha sido o meio de transporte que o trouxera, sua presença só iria ser notada no momento em que ele atravessou a Praça J. J. Seabra em uma hora de pouco movimento, sem cumprimentar ninguém nem ser cumprimentado.

Seria aquele estranho personagem um caixeiro-viajante? - perguntavam-se os hoteleiros, cada qual ansiando, secretamente, por merecer a primazia da hospedagem. Não demorou muito para todos o perderem de vista, ao dobrar uma esquina. Mais tarde se saberia que ele tinha vindo do Rio, de mala e cuia, para passar a morar aqui, junto a seus familiares, originários de Sergipe.

Isso dava asas às confabulações: por que o distinto cavalheiro trocava a efervescência da capital federal pela vida pacata de uma cidade do interior baiano? Coisa boa não devia ter aprontado no Rio de Janeiro. Vai ver era um comunista, em busca de refúgio num lugar em que a polícia nem sonhasse onde ficava.

Mas não. Naquele ano de 1957, em plena era JK, respirava-se os bons ares da liberdade política. Tivesse ou não um passado nebuloso, o homem misterioso que, ao chegar, provocava interrogações, tinha em seu destino um emprego no único ginásio da cidade. Era um professor de Geografia, que surpreenderia os seus alunos pela intimidade com que falava de serras como a do Mar, da Mantiqueira, dos Órgãos, e do Pico da Bandeira. Aos poucos, revelaria outros domínios, que abrangiam da Matemática à Literatura. Cada vez mais surpreendente, esse professor! Não fiquei lhe devendo apenas a descoberta de rios, lagos, mares, continentes, capitais e países do mundo. Nem lhe sou grato apenas pelo seu esforço para que eu não fosse derrubado, numa prova final, por equações e figuras geométricas. Mais que tudo, devo-lhe a descoberta da moderna prosa brasileira, no que ele se empenhou com um prazer inenarrável, fora das salas de aula, além de me haver introduzido à arte da oratória, quando me ajudou a escrever um discurso. Foi ele quem me fez ler Jorge Amado, ao me emprestar o “Mar morto”, que devorei numa noite, arrebatado por aquela história da vida e do amor no mar, cujo texto parecia uma versão contemporânea da poesia de Castro Alves, o que até então eu queria ser, quando crescesse – até porque o nosso mais querido poeta era bonito como um corno e dava muita sorte com as mulheres. Depois, fui apresentado aos “Capitães de areia”, e, na sequência, a “Angústia”, de Graciliano Ramos, e aí já me vi no centro de um poderoso ciclo das nossas letras, o dos romancistas nordestinos da década de 1930, os que efetivamente puseram em prática o ideário da Semana de Arte Moderna, capitaneada pelos paulistas Mário e Oswald de Andrade em 1922, e que propugnava um rompimento literário brasileiro da norma lusitana.

Em resumo, o sujeito esquisitão procedente do Rio de Janeiro chegara a Alagoinhas cheio de novidades. Seu nome: Carloman Carlos Borges. Trata-se de um homem de letras que se tornou psicanalista, e que hoje vive em São Gonçalo dos Campos. E o melhor desta história: com mais de meio século de magistério, o doutor Carloman Carlos Borges continua lecionando Matemática na Universidade Estadual de Feira de Santana, certamente com o mesmo prazer com que, numa noite estrelada de Alagoinhas, em pleno impacto da viagem sideral do Sputnik, olhou para o céu, e, em plena Praça J. J. Seabra deu uma aula sobre a importância das viagens espaciais. Que seja infinita a memória de Alagoinhas daquele mestre extra-classe de múltiplas disciplinas, no ano de 1957.

2. Meu segundo tipo inesquecível de Alagoinhas foi o professor Artur. Ou, por extenso, Artur Pereira Oliveira (obrigado, Valdemar Paraguassú, por ainda se lembrar do sobrenome dele, como do veterinário Hernani Martinelli, que ensinava Inglês; da sua mulher, Diva Martinelli, a professora de Francês; do professor Mário Rocha, que chamávamos de Sputnik, por seu andar frenético, agitando os braços, cuja lembrança puxa outra: a do irmão dele, João Rocha, que seria assassinado pela ditadura militar, ao regressar de Cuba; do professor de Latim, o ex-padre Luís “Pancinha”; e do quanto a beleza da professora Claudionora deixava a mocidade louca).

Agora, memorável mesmo era a sensibilidade literária do professor Artur. Um dia ele passou um dever de casa: fazer uma redação sobre Alagoinhas. Um aluno deu asas à imaginação e, num arroubo juvenil, achando-se abençoado pelas musas, e sentindo nos dedos o borbulhar do gênio, escreveu um longo poema, no qual fazia um roteiro sentimental de ruas, praças, bairros, igrejas, fauna, flora, enfim, tudo o que os seus olhos viam na cidade. E o entregou rigorosamente no prazo. Mas como o professor recolheu todos os trabalhos para lê-los em casa, a espera da avaliação o fez penar em torturante ansiedade. Felizmente na aula seguinte não aconteceu o que ele temia: ter que ler o seu poema em voz alta e morrer de vergonha. O professor Artur distribuiu notas e elogios para todos, dizendo-se, porém, surpreso com o aluno que fez o seu dever de casa em versos. E o próprio professor os leu. Imagine a dimensão do estímulo literário que aquele seu gesto simbolizava.

E não ficou nisso. Recordo agora o dia em que ele entrou na sala com o jornal “A Tarde” debaixo do braço. E foi logo anunciando que o assunto da sua aula seria uma crônica publicada no dia anterior, por considerá-la condizente com a sua disciplina, e também de interesse público. Título: “O menino de Alagoinhas”. E leu-a, com a voz embargada, visivelmente emocionado.

Tratava-se da história de um menino que tivera suas pernas mutiladas por um trem, enquanto caminhava pelos trilhos da estação do São Francisco para a da Leste. Traumatizada com o acidente, a cidade se dividira entre os que achavam que para o acidentado teria sido preferível a morte ao sofrimento de sobreviver sem as duas pernas; e os que viam nesse sentimento, por mais piedoso que pudesse parecer, uma crueldade tão chocante quanto a trágica mutilação sofrida pelo menino. A tormentosa discussão acabara repercutindo numa das colunas mais lidas do jornal “A Tarde”, graças à carta de um atônito leitor de Alagoinhas ao seu titular, um célebre cronista chamado Adroaldo Ribeiro Costa (tio do hoje exímio contista Aramis Ribeiro Costa), rogando-lhe que escrevesse uma crônica que trouxesse alguma luz ao conflito das opiniões. A carta impressionara o cronista, a ponto de ceder o seu espaço para ela, na íntegra, sem tirar nem por uma única vírgula. Adicionara-lhe apenas uma linha de introdução, explicando que a recebera de um menino de Alagoinhas, e que fazia dela a sua crônica daquele dia, pois falava por si mesma e dispensava comentários. Para a glória do professor Artur, o menino cronista por um dia no mais lido jornal do estado era seu aluno.

Recordo-o ainda a chamar o tal aluno para uma conversa particular, depois da aula, quando então lhe recomendou que seguisse o caminho da prosa e não o da poesia. Foi como se naquele instante o professor Artur Pereira Oliveira estivesse selando um destino.

3. Agora uma sombra amiga passeia com minha alma de confidências por escuras ruas do passado, não para esquecer a longa noite do tempo, ou para aflorar no meu caminho a sinfonia do seu tormento, mas para evocar o poeta que chegou a esta cidade em 1959 e aqui viveu até 1964, o ano do golpe militar, quando foi preso e torturado brutalmente com chutes e pontapés nas areias do Cachorro Magro, em inominável desrespeito à sua figura humana e à dignidade da sua magistratura de meritíssimo Juiz de Direito da Comarca de Alagoinhas. Nascido em Feira de Santana em 1909, o doutor Eurico Alves Boaventura estava com 50 anos quando aqui chegou, depois de ter vivido em Salvador, e em Capivari (hoje Macajuba), Tucano, Riachão de Jacuípe, Poções e Canavieiras, de onde fora transferido para cá, o que viria a significar algo de novo à vida cultural da cidade, ainda que nenhum de nós – e mesmo nenhum que tenha privado de sua intimidade nos saraus literários que ele promovia - tivesse a real dimensão da sua estatura de “figura de proa nos primórdios do modernismo na Bahia”, como hoje atesta o consagrado poeta Florisvaldo Mattos.

Sua filha Maria Eugênia Boaventura, que mora em São Paulo (onde é professora da Unicamp, a Universidade de Campinas), ainda se lembra das tertúlias realizadas na biblioteca que ficava na sala de visitas da casa em que aqui viveu parte da sua infância, à Rua Carlos Gomes, 63, assim como de algumas pessoas que as frequentavam: a professora Normândia Azi Lacerda, o advogado Murilo Cavalcanti, um funcionário da Justiça do Trabalho chamado José Giése da Cruz (primo do autor destas linhas, que naquele ano morava com ele, sua mãe, dona Alzira, e a irmã dele, Gesilda). Maria Eugênia se lembra ainda que o alfaiate que fazia os blazers do seu sempre elegante pai também marcava presença naqueles encontros literários; que o doutor Eurico foi o fundador do Lyons Clube de Alagoinhas, tendo sido o seu presidente; e que ele lecionou no ginásio, onde introduziu uma disciplina abrangendo uma ampla pauta de conhecimentos.

Quem teve o privilégio de conviver com ele não mais leria poesia da mesma maneira de antes. Por trás daquele juiz de província escondia-se um intelectual de vanguarda, que estabeleceu um diálogo poético com Manuel Bandeira, “um arquiteto de novas paisagens verbais”, como bem o define hoje o professor da UEFS Rubens Alves Pereira, e se correspondeu com Jorge de Lima, de cuja obra se diz que “permanece robusta e poderosa como um penhasco, na solidão incomparável do gênio”. Pois no dizer do próprio Eurico, ele e este ícone da poesia modernista se tornaram bons camaradas. Quanto à sua correspondência com o autor de “Pasárgada”, ocorreu com uma troca de poemas. Ao escrever, aí pelo ano de 1930, a “Elegia para Manuel Bandeira”, em que o convidava a dar um pulo a Feira de Santana para “comer pirão de leite com carne assada de volta do curral” e “sentir o perfume de eternidade que há nestas casas de fazenda”, ele recebeu de Bandeira a seguinte resposta:

Escusa

Eurico Alves, poeta baiano,
Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito.
Sinto muito, mas não posso ir a Feira de Sant’Ana.

Sou poeta da cidade.
Meus pulmões viraram máquinas inumanas e aprenderam a respirar o gás carbono das salas de cinema.
Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata.
Falo com A., que é ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.
Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos nas cores da madrugada.

Eurico Alves, poeta baiano,
Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais da roça.

Em Alagoinhas, o doutor Eurico nos levaria a deixar o romantismo e o parnasianismo de lado por uns tempos, para ler Manuel Bandeira e os poetas que ele traduziu - como o espanhol Federico Garcia Lorca e os franceses Paul Eluard e Charles Baudelaire -, Jorge de Lima, Ascenso Ferreira, Cassiano Ricardo, e o baiano Godofredo Filho. E assim se passaram cinquenta anos: envoltos em sombras [que] abafaram os passos das distâncias/ para que não perturbassem o sono do silêncio...

Ao sair da prisão, o doutor Eurico foi transferido para Vitória da Conquista, e de lá para Salvador, onde se aposentou e veio a falecer, em 1974, não deixando um único livro publicado, o que pode servir de explicação para o silêncio em torno da sua importância literária, que só começou a ser quebrado a partir de 1989, com a publicação pela Ufba do seu alentado ensaio Fidalgos e vaqueiros, obra iniciada em 1952 e concluída em 1963, e que trata da saga dos que traçaram a rota primitiva dos destinos da Colônia que Portugal criou neste lado do Atlântico, e que levaria à civilização do pastoreio. Em 1990, a professora Maria Eugênia reuniria sua produção poética num volume publicado pela Empresa Gráfica da Bahia. Ainda no final dessa década (1999), sairia o livro A poesia de Eurico Alves – Imagens da cidade e do sertão, organizado por Rita Olivieri - Godet (hoje diretora do departamento de Português da Universidade de Rennes, França), em edição da EGB apoiada pela Secretaria da Cultura e Turismo e a Fundação Cultural do Estado. Na sequencia das iniciativas para tirá-lo das sombras, destaca-se ainda o colóquio História, poesia, sertão, realizado na UEFS nos dias 29, 30 e 31 de julho de 2009, em homenagem ao centenário de nascimento do poeta feirense que teve um capítulo da sua trajetória escrito em Alagoinhas. Mesmo assim sua obra “continua restrita a um pequeno círculo de amigos e especialistas”, como constata o arquiteto, artista plástico e também poeta Juraci Dórea. E aqui fica este pequeno tributo ao meritíssimo juiz-poeta que nesta cidade tornaria mais dourados os sonhos de uma juventude que ele ajudaria a crer-se promissora.

4. Ao apagar das luzes de 1959, estava este escrevinhador sentado num banco da Praça J.J. Seabra, pensando na vida, sem saber o que fazer dela, quando, de repente, num passe de mágica, eis que chega e se abanca ali ao lado ninguém menos do que o seu anjo da guarda, que não precisou se apresentar, por ser um ente conhecido: um notório comunista chamado Mário Alves, que, como sempre, portava um pacote do jornal Novos Rumos, que lhe era enviado do Rio de Janeiro para ser distribuído em Alagoinhas. Mas calma! Aquele comunista não espetava padres nem comia criancinhas, conforme os párocos apregoavam em seus sermões dominicais. Longe de ser um herege sanguinário - cruz credo! -, Mário Alves era uma figura de utilidade pública reconhecida por se tratar do dono de uma mecânica e borracharia, tão socialmente aceitável quanto os espíritas, os crentes e os maçons. Antes de puxar conversa com o jovem pensador ao seu lado, ele acendeu um cigarro, deu uma baforada nele, pigarreou, acompanhando com o olhar a trajetória da fumaça, para, enfim, começar a falar.

Depois de dizer que havia lido uns artiguinhos que aquele rapaz vinha escrevendo para o Alagoinhas Jornal, perguntou-lhe se tinha algum plano para o futuro. “Escrever”, respondeu-lhe o jovem pensador, como se nem tivesse pensado no que estava dizendo. Ao que o outro emendou: “Quer ser jornalista?” Ora, se queria! E como! Então ali, naquela tarde, e num banco da Praça J. J. Seabra, o destino lhe sorriu. No dia seguinte, antes das 9 horas da manhã, o magnânimo Mário Alves lá estava à porta da Estação da Leste, à espera do rapaz que na tarde anterior parecia não saber o que fazer de si mesmo. E com dois bilhetes para o Marta Rocha, que luxo! Como se isso fosse pouco, o borracheiro, que vivia todo sujo de graxa, vestia-se de um impecável terno branco. Ao chegar à capital, dirigiu-se a um escritório na Rua Chile, onde perguntou a uma recepcionista se o doutor João Falcão estava. Antes que ela terminasse a frase “E quem deseja falar com ele?”, veio uma voz lá de dentro simplificando tudo:

- É você, Mário?

Sim, era ele mesmo. Mário Alves, o comunista de Alagoinhas, amigo do capitalista João da Costa Falcão, proprietário de uma imobiliária, de um banco e de um jornal diário que ambicionava fazer uma revolução na imprensa baiana, e que o abraçaria calorosamente, perguntando-lhe que bons ventos o traziam.

- Vim lhe pedir para botar este menino no seu jornal.

E o todo poderoso doutor João da Costa Falcão:

- Você quer mesmo ser jornalista, meu jovem?

O jovem em questão jamais iria esquecer o tom afável da voz daquele que tinha a chave da porta da frente de um mundo que sempre sonhara em entrar, e cujos umbrais ele estaria ultrapassando dali a poucos minutos, ao dobrar uma esquina e subir as escadas para a redação do Jornal da Bahia, na companhia de seu próprio dono, e sob a proteção de um anjo da guarda, que retornaria logo para Alagoinhas, assim que seu protegido fosse confiado às boas mãos do redator-chefe Ariovaldo Matos - um escritor! -, que aceitou de bom grado o pedido do seu patrão:

- Ari, arranje aí um lugar para este menino!

Com o assentimento do redator-chefe, o dono do jornal e seu amigo Mário se foram. E o rapaz, que até o dia anterior se sentia sem destino sobre a Terra, agora encontrava uma vereda que o levaria a outros caminhos do mundo, até retornar aqui, para contar como tudo começou.

Obrigado, Alagoinhas. Muitíssimo obrigado.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Rita Jankowski - Ao Professor Antônio Torres



Três meses após a I Bienal do Livro de Curitiba, que ocorreu entre 27 de agosto e 04 de setembro de 2009, confirmo o previsto: o tempo deve ser medido conforme A.B e D.B, a saber : Antes da Bienal e Depois da Bienal.

Em face da variedade de temas e oficinas deste evento, cuja excelente curadoria foi de Alcione Araújo, asseguro que estava tão entretida que vi o tempo passar. O marco foi bem delimitado pelos valiosos profissionais do universo cultural que aqui contribuíram para o aprimoramento do saber.

Tive a satisfação de ser aluna do professor Antônio Torres durante os três dias da oficina de crônica. Já na véspera do término daquelas aulas desejei escrever intensamente. Analiso que a escolha de "véspera do término" foi minuciosa, tendo como objetivo a tentativa de prolongar o tempo. É indubitável que este foi insuficiente perante tanto conhecimento do estimado professor Antônio Torres. Sinônimo de uma de nossas inúmeras riquezas nacionais, suas obras literárias florescem mundo afora. Embelezam almas de professores universitários e jornalistas que publicam comentários em meios de comunicação de renome. Ademais, o vocabulário de Essa terra e O cachorro e o lobo foi selecionado pelo ilustre Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e contribui para o magnífico dicionário.

Na arte da escrita, seu conselho de "ver antes de escrever" foi harmonizado com as "cores, formas, temperaturas, perfumes, sons, texturas e sabores" decorrentes da gama de atividades durante a oficina de crônica. A partir das aulas, ao som de Thelonius Monk e Miles Davis, a musicalidade da vida tornou-se mais intensa. A leitura da crônica de Rubem Braga - Aula de inglês - trouxe a riqueza do entrelaçamento dos idiomas.

No dia 4 de setembro, por volta das seis da manhã, ritmo acelerado para concluir a crônica que seria lida, olhos nos olhos, em homenagem ao professor Antônio, senti-me à vontade para compartilhar alguns verbos de percepção utilizados nas aulas de inglês que leciono. Ao longo das horas de aprendizado na oficina de crônica, a análise com minudência de tais verbos tornou-se obrigatória.

Caminhei entre o to stare (olhar fixamente, com interesse, perante cada comentário), o to look at (ollhar com direcionamento, atraída pelas peculiaridades das crônicas), o to look for (olhar, procurar, igual a um garimpeiro ciente de tanta riqueza de detalhes das explicações). Segui para o to gaze (olhar com admiração, com ternura, pelo seu comprometimento em prol da cultura nacional e internacional e pela modéstia exemplar).

Para as frases de despedida , a pluralidade dos estilos concentrou-se no clássico . Mais formal, to look forward to hearing from you (aguardar com prazer para receber notícias suas), foi um alento para a tristeza da iminente separação de um grupo de alunos com perguntas instigantes e um professor instigador.

Atualmente a amizade formada entre todos os participantes daquela oficina é conservada pela comunicação através de computador e encontros em eventos culturais. É gratificante ler crônicas de colegas que já se aventuram neste gênero literário. Quanto às aulas de idiomas que ministro, estas são enriquecidas pelos textos dos professores e jornalistas de diversos países com comentários sobre o perfil do autor Antônio Torres

O amor pátrio é intensificado a cada análise das obras literárias. Alunos e professora brasileiros têm a satisfação de apresentá-lo aos alunos estrangeiros. Todos se sentem motivados a escrever, seja sobre a vida pessoal ou profissional, a vivenciar uma situação única de proximidade com o autor e a divulgar suas obras com mais orgulho e detalhamento.

Para transmitir os agradecimentos ao professor Antônio Torres e a todos que contribuíram para a distinção entre A.B e D.B, recordo-me de um conselho recebido de meus primeiros professores: “Agradecer, além de ser uma das mais belas virtudes, é um dever”.

Para dissipar as saudades de todos, faço uso da bela e esperançosa expressão “see you soon”: até breve!

Rita de Cássia Klosienski Jankowski
Curitiba, 10 de dezembro de 2009.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O menino Lula, do mestre Audálio


Por Nildo Carlos Oliveira


De O menino lula

A história que aqui se conta poderia ser mais uma variação sobre o mesmo tema: os retirantes nordestinos pendurados nos paus de arara rumo aos cafezais, à construção civil ou às metalúrgicas paulistas. O personagem seria apenas mais um, dentre milhares de outros que igualmente se aventuraram por estradas, rios, planícies e montanhas, num estirão de 3 mil quilômetros, para tentar a sorte em São Paulo.


Mas a história, como é contada, deixa de ser apenas mais uma história, e o personagem, vindo lá debaixo, daquela faixa de sombra onde pobreza e miséria se confundem, destaca-se em razão de uma trajetória sindical e política em cujo contexto histórico conquistou a Presidência da República. Outros se tornaram operários, escritores, poetas, jornalistas, empresários, vendedores, políticos, pastores protestantes, vagamundos ou desapareceram no campo ou na cidade, esmagados na engrenagem de uma sociedade que trata os iguais seletivamente.


O livro O menino Lula, escrito por Audálio Dantas e editado com ilustrações do poeta da xilogravura Jerônimo Soares, numa publicação da Ediouro, lançado recentemente na Livraria da Vila, em São Paulo, é fabulado com o toque, o sentimento e a visão de um mestre da escrita. O autor trata os fatos reais ali narrados com o mesmo cuidado com que trataria o melhor conteúdo ficcional.


Estão ali todos os elementos que mostram uma família desprotegida, entregue ao abandono secular do Nordeste desvalido; o pai, a mãe, os garotos, o cachorro Lobo, farejando os despojos na despedida dos meninos que se preparam para a longa jornada de 13 dias rumo ao Sul.


Ganham relevo os problemas vividos pelo menino Lula, que vai crescendo em um mundo onde não se tinha sequer o mínimo para a subsistência. Registra-se o espanto dele diante de uma novidade surgida no sertão pernambucano: uma bicicleta. Como seria possível alguém se equilibrar e se movimentar em cima de duas rodas? O horizonte palpável, dele e dos irmãos, estava limitado pelo terreiro da casa, o pé de mulungu, o caminho da roça, a venda de seu Tozinho e o açude.


Mas esse mundo, estreito e sem expectativas, ficou abalado com a decisão da matriarca de sair de Pernambuco, com os filhos, para São Paulo. Foi em dezembro de 1952, quando o sol, incendiando o chão, prenunciava a seca. A família deixou tudo, para viajar equilibrada em tábuas sem encosto, colocadas transversalmente na carroçaria de um caminhão, carregando as miudezas essenciais e os mantimentos da sobrevivência: farinha de mandioca, carne seca, galinha cozida, rapadura e bolacha. No caminho, o alumbramento diante do rio São Francisco. - O mesmo espanto que marcou a retina de tantos outros retirantes que por ali passaram. No fundo, a travessia sobre o velho Chico preserva um significado simbólico: um divisor de água entre passado e futuro.


Estão bem caracterizados, na trama, o pai Aristides, que recebeu a família em Santos depois de abandoná-la em Caetés, no sertão, e que nunca deixava de comprar o jornal Tribuna de Santos, embora não soubesse ler; a mãe, dona Lindu, que nos momentos traumáticos era quem decidia e definia o destino da família, e os irmãos de Lula. A narração, enxuta, trabalhada com a inspiração de um texto de Graciliano, mas sem a causticidade do mestre de Vidas Secas, nos dá um quadro da infância e da adolescência do personagem que chegou à Presidência da República.


O livro, mesmo quando trata da miséria do mundo adulto, mantém a graça do menino, numa biografia leve, compassada, concebida sem a pretensão de criar um mito ou um herói; apenas a vida de um retirante que deu certo.




terça-feira, 5 de janeiro de 2010

POR QUE AINDA ESTOU AQUI

Por Cineas Santos


De O secretário Cineas Santos

Ao longo dos últimos 60 anos, ou seja, durante toda a minha existência, sempre tive o cuidado de manter prudente distância do poder. E nem vou invocar o Lord Acton, que afirmava: “O poder tende a corromper”. O poder simplesmente não me atrai nem me fascina, a não ser o poder de divino, pleno, ilimitado. Parafraseando Paul Valéry, só o poder absoluto tem encanto. Mas deixemos de erudição barata, que o chão é minha praia. Convidado pelo Dr. Sílvio Mendes a integrar sua equipe de governo à frente da Fundação Municipal de Cultura Mons. Chaves, tive o cuidado de adverti-lo: Senhor Alcaide, acredito que sirvo melhor ao município de Teresina longe de qualquer instituição pública. O prefeito não me ouviu e aqui ( ainda) estou.

Dirigir a FMC é uma experiência complicada, para dizer o mínimo. Antes mesmo de sentar-me na cadeira da presidência, já um coro de ensandecidos pedia a minha cabeça. Em um ano de serviço público, já peguei mais cipoadas que durante toda a minha vida. Basta contrariar algum interesse, legítimo ou não, para que chovam bordoadas. Como me falta jogo de cintura, não consigo esquivar-me.

Assumi a presidência da FMC num ano difícil: a crise rondava as prefeituras do país, exigindo prudência, cortes, prudência e muita responsabilidade. A despeito disso, cumprimos rigorosamente o Calendário Cultural da Fundação e, sem estourar o orçamento, iniciamos alguns projetos bem-sucedidos. Ressuscitamos o Projeto Picoler, de grande alcance social; incorporamos o Festival Nacional de Violão do Piauí à programação da FCM; instituímos o Festival de Música de Teresina, cuja primeira edição se realizou no aniversário da cidade; criamos os projetos Música na Praça, Arte Itinerante e Teresina Visita, todos funcionando regularmente. É escusado afirmar que pretendíamos fazer mais, muito mais. Fizemos apenas o possível.

Em meio a muitos aborrecimentos, tivemos algumas alegrias: ampliamos o número de alunos inscritos nos projetos Musicalizando e Violão na Escola: hoje são mais de 700 crianças inscritas nos projetos; 50 delas, as mais adiantadas, já integram a Orquestra de Violões de Teresina. Impossível não esquecer a experiência do garoto Leonardo de Cáprio (9 anos de idade), que trocou um cabo de vassoura por um violão e, em menos de uma ano de estudo, já toca por partitura.É comovente e animador ver duas garotas, de 11 e 9 de anos idade, tocando sax e trompete, respectivamente, numa das bandas juvenis mantidas pela FMC. Estamos contribuindo para elevar a autoestima da molecada mais necessitada.

Mas as provocações persistem. Na semana passada um repórter me fez a seguinte pergunta:

- O que você vai fazer quando deixar a presidência da Fundação?

Resolvi dar o nó nos neurônios do impertinente. Respondi:

- Como faço há 40 anos: vou continuar briquitando em defesa da face luminosa do Piauí sem ter de aturar as aleivosias de néscios e apedeutas do seu jaez.

Consta que, desarvorado, o infeliz regressou à redação do jornal onde trabalha, gritando:

- Meu reino por um Aurélio!




quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Senhor dos Destinos

Por Cláudia Magalhães

De Diário de um ladrão


Quarta-feira, 18 de março de 2009

Caro Sr. Fulano,

Possuo uma crueldade excepcional que, quando adormecida, cede lugar a uma ternura intrigante, curiosa, que me entorpece, me alivia. Sou escravo dessas duas realidades. Elas me fazem nascer e renascer, todos os dias, e me tornam humano. Sempre que atravesso a delicada e invisível fronteira que as separam, sou tomado por uma espécie de estupidez execrável que, com o passar dos anos, me fez perceber que o espaço que separa a vida da morte é feito de silêncio, do simples quebrar de um salto, de uma brevidade não medida pelo tempo. Somos movidos por uma bomba-relógio chamada coração, cujo controle não nos pertence. Deixei de sentir revolta, aprendi a não brigar com o que desconheço, perdi o sentido do pecado.

Acredito basicamente em três coisas: na inexistência de Deus, na existência da maldade e na magia da Literatura. Ah... A Literatura! Ela coloca fantasia na sola dos meus pés, arranca minha língua, educa meus ouvidos e, quando dou por mim, sou mais um personagem dos deuses de minha vida. Identifico-me bastante com Édipo, todos os dias, quando acordo, furo meus olhos para não enxergar a podridão do mundo.

O que falar da Literatura que provoca? Que destrói o belo e se masturba quando apresenta as baixezas do homem? Engana-se quem acredita que ela não espera por resposta. Todo bom livro delira de gratidão quando nos arranca uma lágrima, de alegria ou de dor, que usa, sabiamente, para afogar suas traças.

Nada há de extraordinário em minha vida. Rejeitado pelos meus pais, ainda adolescente, eu roubava para sobreviver. Amante da solidão, usava o dinheiro para pagar o quartinho fétido da pensão, comprar comida e livros nos sebos da cidade. Antes de dormir, sentava com alguma bebida barata e escrevia sobre o meu dia, hábito que mantenho até hoje. Escrever é minha única forma de perder a sanidade quando não estou vendo um bom filme ou lendo um bom livro. Não conseguindo viver na “normalidade”, escondo-me em qualquer lugar dentro das infinitas possibilidades das palavras em seus altares devassos, em seus inferninhos divinos, onde o ponteiro do relógio move-se na velocidade e na direção dos meus pensamentos, onde a única lei é a de perder o juízo. Sem escrever, enxergaria minha existência da mesma forma que meus olhos, desprovidos de um espelho, enxergariam minhas costas.

Aos vinte e dois anos cometi o meu primeiro crime. A boa quantia em dinheiro apagou, rapidamente, qualquer possibilidade de remorso. Afinal, aquele pobre homem poderia, ao atravessar uma avenida, tropeçar em alguma pedra solta e ser fatalmente atropelado. Quem pode prever o futuro nessa bola que gira manipulada pelo desconhecido? Desde então passei a viver sempre de malas prontas. Não permaneço mais que uma semana na mesma cidade, motivo pelo qual dou de presente meus livros assim que os termino de ler, mas sempre com a dedicatória: Cuide bem deste livro, ele salvará sua vida!

Hoje o senhor me fez viver um fato curioso, mágico. Quero que atire nas duas partes podres do corpo daquela filha da puta: na buceta e no coração! Foram suas últimas palavras no início da noite. Depois de anotar o endereço, seu rosto, antes nervoso, estampou uma sensação de solidão absurda. Seria essa a face do amor contrariado? Por que sofrer por um simples abandono? Desgraça maior é morar num apartamento luxuoso sem estantes, sem livros! Bem, isso, agora, não importa. Saí da sua cobertura elegante, parei num boteco de esquina, em frente ao fatídico hotel e pedi um conhaque. Quanto mais se aproximava a hora marcada, mais aumentava minha excitação. Uma espécie de gozo contido queimava meu juízo e me fazia beber compulsivamente. Não tardou para que ela aparecesse na rua deserta, com um vestido solto, preto, que lhe ia até a altura dos joelhos. Aproximei dela com a fúria de um animal selvagem desprovido de alimento. Assustada com o barulho dos meus passos, ela se virou abruptamente e protegeu o peito segurando com as duas mãos um livro: Diário de um Ladrão, de Jean Genet! Gelei até os ossos. Em minha mente, somente as palavras daquele Deus, cujo túmulo não poderia depositar flores: Conservei-me atento para agarrar esses instantes que, errantes, me pareciam estar a procura, como de um corpo, uma alma penada, de uma consciência que os anote e os experimente. Quando a encontram, param: o poeta esgota o mundo. Essa lembrança eletrizou meus cabelos, escorreu pelas minhas costas, preencheu minha coluna e virei verso. A minha alma, farta de poesia, assumiu proporções indescritíveis. Vestindo de letras as minhas fraquezas e a minha maldade, tornei-me a mais bela das criaturas. Observando a minha cara assassina coberta de vergonha, ela correu assustada, em direção ao hotel. Se prosseguisse com meu plano, desmoronaria. Não poderia matar alguém com um livro que me fez encontrar o vazio, a existência do mundo e a certeza de saber que não o possuo.

Coloco, agora, sob o seu cadáver essa carta para que outros a leiam quando o encontrarem em sua luxuosa cobertura "sem livros". Peço-lhe perdão, embora não sinta o menor arrependimento, afinal, você poderia tentar, novamente, matar o que temos de mais belo e raro: bons leitores! Quanto ao senhor, quem se importa? O senhor poderia atravessar uma avenida, tropeçar em alguma pedra solta e ser fatalmente atropelado. O que me resta dizer? Desgraça maior é ser Lady Macbeth e ser coroada com a loucura. É ser Othelo e não poder viver em paz seu grande amor. É viver numa mansão sem livros, é saltar para o nada sem ter conhecido o lirismo de Genet!

Ass.:Um amigo.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O motoqueiro que virou Papai Noel

Por Leila Barros

Em plena noite de 24 de dezembro, Josias corria com sua moto mais que o frango veloz da Sadia, embora não estivesse trabalhando. Ele corria para tentar afugentar o torvelinho de pensamentos que o assolava naquela véspera de natal. E nesse fervor, pensava muito:

“Já se vê que esse moleque vai dar trabalho. Um garoto que resolve nascer na véspera de natal, deve ser problemático e quem sabe até chorão. Eu tive que largar todo aquele rango na mesa para ver ele nascer.”

“Vacilei na hora agá e não usei o preservativo, mas a Josilene também vacilou, homem não é ligado nessas coisas! Agora eu vou ter que deixar de comprar meus CDs de pagode, vou ter que comprar tênis sem marca para arrumar leite para o bacuri, fala sério!”

E então, Josias se vê entrando em uma maternidade na periferia de São Paulo, meio desorientado e sem saber para onde se dirigir. E pensava:

“Não gosto de hospitais, como é que eu estou entrando nesse bagulho para ver um guri chorão, que eu nem sei se vai curtir a minha cara? E se ele resolver torcer para outro time?”.

Chegou finalmente no quarto que procurava e encontrou a sua Josilene.

“Que quarto maneiro, hein Josi? É esse aí o nosso moleque? Até que o guri não é tão feinho. Posso pegar? E aí moleque, tá gostando aqui do lado de fora? Ele é miudinho... Deve estar com frio... Vou sair para comprar um agasalho para ele e já volto.”

E na rua, Josias viu um camelô vendendo gorros de papai Noel. Comprou um e o colocou todo satisfeito! Começou a correr com aquele gorro vermelho na cabeça, com uma sensação mágica, seus pensamentos já estavam mais calmos, e o gosto novo de segurar o seu filho nos braços o envolvia por completo.

Resolveu diminuir a velocidade, queria curtir aquele momento como se saboreia um panetone em uma tarde natalina. E, com um sorriso de anjo nos lábios, sorria e pensava:

“Agora sou motoqueiro e papai Noel de responsa! Tô chegando moleque, seu papai Noel está na área, tá ligado?”



Natal infeliz, Natais felizes...

Por Edna Lopes

(...) Minha vida... Quebrando pedras e plantando flores.”
Cora Coralina

Nossas comemorações se iniciavam no primeiro dia do mês com o aniversário de um dos irmãos. Depois, o de nossa irmã mais velha e de nossa mãe. Em seguida, o natal e o fim de ano. Era um mês de festas. Naquele ano não foi diferente, mas tudo mudou de repente e nos vimos mergulhados num turbilhão de aflição e dor sem precedentes.


Conseguem imaginar infelicidade maior que sepultar alguém que amamos? Fazem uma idéia do que é “viver” isso no dia do Natal? Este foi e ainda é inesquecível. Lembrança indelével da dor da perda, do nosso sofrimento externado nas crises nervosas, nos vômitos, nas lágrimas, no desespero da impotência.

Retornávamos sempre para o sítio, a casa de nossos pais, nas férias escolares, nas festas ou feriados. Éramos dez filhos, genros, noras, neta, primos e sempre alguns amigos. Sempre uma festa o reencontro com nossas origens, porém, nesse dia, voltar era morrer um pouco. Uma dor insuportável em nossos corações ao constatar que havia um carro fúnebre em nosso cortejo, sempre tão animado, tão feliz.

Nossos pais nos aguardavam, não com o farto almoço e as novidades do lugar, mas para sepultar nosso menino-irmão, que me pedia sempre para cantar “o Menino da Mangueira,” contar histórias de grandes aventuras, que havia feito dezenove anos no inicio do mês e fora arrancado do nosso convívio pela fatalidade, pela tragédia. Nossos natais jamais seriam os mesmos.

Alguns anos depois retornei da maternidade ás vésperas de mais um natal e iniciei um novo ciclo de comemorações. Bem antes disso e aos poucos, sobrinhos e sobrinhas que nasciam a cada ano, animavam nossos reencontros e, em especial, os natais com a alegria, com a inocência benfazeja e curativa que é a presença de crianças em nossas vidas. Elas resgataram em nós a possibilidade de ressignificar o natal.

Nos próximos dias, minha grande -enorme família reunir-se-á mais uma vez para rir, orar, brincar, cantar, brigar, fazer as pazes e chorar juntos em mais um Natal. A vida continua. E que bom que temos a oportunidade de celebrá-la com quem amamos. As dores, as perdas, as alegrias, os sucessos, os fracassos, os momentos felizes, são substratos da nossa construção de humanos nessa dimensão.

“(...) A vida pode ser dura, mas tem momentos de alegria que há poesia batendo a porta do sonhador...” O Filho do seu Menino de Rildo Hora, mas que aprendi a amar na voz de Jair Rodrigues


Saudades eternas de nosso menino-irmão Albênio.


Feliz Natal, Meu Irmão.





CARTA ABERTA A UM VELHO RANZINZA


Por Cineas Santos


Prezado Noel:

É escusado dizer o quanto me custou antepor o adjetivo prezado ao seu nome. Como é do seu conhecimento, eu não o prezo,e a recíproca deve ser verdadeira. Quanto à carta aberta, não tome o meu gesto como indiscrição ou exibicionismo. Quis tão-somente poupá-lo do trabalho ingente de localizá-la em meio à avalanche de cartas que, nesta época do ano, ameaça soterrá-lo. Nada além.

Mas vamos ao que (me)interessa: a primeira vez que ouvi falar do seu nome, eu ainda morava nos cafundós do Caracol. Como qualquer moleque do meu tope, campeava nuvens, conversava com o vento e não me ardia o desespero de ser dono de nada, como diria o poeta Dobal. Eis que, numa manhã qualquer de dezembro, minha mãe, que acabara de chegar da cidade, me entregou um balãozinho vermelho, desses que os moleques de hoje se comprazem em estourar com pés nas festinhas de aniversário. Limitou-se a dizer: “Foi o Papai Noel que mandou”.Ressabiado, mas curioso, aceitei o presente e tratei de inflá-lo para atiçar a inveja dos companheiros de traquinagens. Tamanho foi o meu entusiasmo que o balãozinho, depois de um pluft, desfez-se em tirinhas de borracha sem qualquer serventia. Creio ter sido aquela a minha primeira decepção. Chorei tudo o que tinha direito e prometi a mim mesmo que jamais voltaria a chorar por algo perdido ou não conquistado. Assim tem sido. Jurei também odiá-lo para todo o sempre.

Mais tarde, já em São Raimundo Nonato, na véspera do Natal, encontrei, num canteiro mal cuidado, uma pequena imagem de Nossa Senhora de Fátima. Coberta de poeira, abandonada e triste, parecia ter sido jogada ali por alguém que perdera a fé. Encarei o fato como uma mensagem sua: uma tentativa de reconciliação. Prontamente, aceitei-a. Limpei a imagem da fralda da camisa e voltei correndo para casa. Dona Purcina, precisa como um tiro de lazarina, não se comoveu com a minha versão. ”Quem acha o que não perdeu não é o dono”, limitou-se a dizer e me obrigou a devolver a imagem ao canteiro onde a encontrei. Não podendo odiar minha mãe por razões de ordem prática : medo de taca, descarreguei todo o meu ódio em você. Jurei que, um dia, ainda lhe arrancaria todos os fios da barba com um alicate enferrujado.

Na adolescência, perdidamente apaixonado por uma fulaninha, passei-lhe uma cantada em regra (sou do tempo em que se cantava mulher). Com ensaiada timidez, ela me prometeu a resposta para a noite de Natal. Estávamos em outubro. Foram dois meses de expectativas, sonhos, pesadelos, febres, poluções noturnas e outras coisinhas impublicáveis. Na noite aprazada, coração aos pulos, fui procurá-la. Sem se despedir, a moça deixara a cidade com a família. Chorei, chorei, “até ficar com dó de mim”, como naquela canção do Chico. Jurei que jamais voltaria a chorar por mulher alguma, jura que não cumpri...

Cresci, envelheci, e muitos natais se passaram sem que nada de extraordinário acontecesse. Para ser franco, meu ódio arrefeceu. Cheguei mesmo a ignorá-lo. Como diria um amigo cruel: “Papai Noel é só um velho senil, acompanhado de veados, que se presta ao papel de camelô de ilusões a serviço do capitalismo selvagem”...

Eis que, na semana passada, um autodoor de uma fábrica de sapatos mexeu comigo. Nele, vê-se uma perna linda, fornida, generosa, enrolada com fitas coloridas, pronta para ser comida (com os olhos), permita-me a liberdade de expressão. Foi aí que me ocorreu a ideia de lhe fazer uma proposta. Já que é final de ano, tempo de paz, por não aproveitamos a oportunidade para fazermos as pazes? É simples: você me manda a dona daquela soberba perna (pode ser zarolha, dentuça ou corcunda) e eu esquecerei todas as nossas divergências pretéritas. De quebra, para mostrar que não guardo ressentimento, passarei a tratá-lo por Papai Noel, com fazem as pessoas normais.

PS: não precisa trazê-la: irei buscá-la pessoalmente.

Fraternalmente, velho Ancião

sábado, 19 de dezembro de 2009

Noite de Natal

Por Luiz Eudes


De Presépio

A tarde vai embora calma e lentamente. A noite chega soberana. O homem para o carro na praça. Há moças na calçada de uma casa grande. São suas primas. O homem está acompanhado da sua filha. Uma das moças os convida a entrar. Eles entram por um corredor. A moça abre a porta da sala ao lado. Um mundo encantado surge num momento mágico: é o presépio de Dona Sinhá que há muitos natais faz brilhar de encantamento os olhos das crianças.


Dona Sinhá foi quem criou aquele espetáculo para animar as noites natalinas do Junco. Hoje ela arma lapinhas com os anjos e santos no céu. Um céu sempre azul e iluminado. Lá de cima ela observa as crianças que todas as noites de dezembro visitam a sua casa e, atentas, observam o músico anunciando por seu tambor a chegada de Papai Noel, que sobe a escada e dança twist. No presépio há um convívio fraternal do animado gorila com o pacato burrinho, do cantante pássaro azul com as silenciosas borboletas, dos peixes e cobras que, de longe, miram os animais sagrados: a vaca e a ovelha, o galo e o jumento.


É noite de Natal e no centro de tudo está a representação do nascimento de Cristo. Dona Sinhá montava o presépio seguindo uma tradição iniciada por São Francisco no século XIII. Quando ela partiu ao encontro com Deus, suas filhas e colaboradoras resolveram homenageá-la colocando uma foto sua na parede da sala e dando seguimento ao seu projeto, sabendo que lá no alto ela iria montar um novo presépio, com anjos e santos de verdade, tendo o Menino Jesus Cristo ao vivo e a cores.


A menina e seu pai estavam encantados com tudo aquilo. O homem se lembrava de antigos natais quando vinha com os seus amigos e ali ficavam horas a contemplar, alegrando-se com tudo. A menina também se sentia assim. A sala foi invadida por uma pequena multidão de curiosos. As crianças chegavam e logo atrás vinham os seus pais que também queriam participar da festa.


O homem se lembrava de quando ia aos grotões dos Pilões buscar ramas de barba de velho, catava pedrinhas nas barrancas do açude, cessava areia da velha praça empoeirada e apanhava barro tauá no barrocão do Junco para fazer as imagens que enfeitavam a lapinha de uma das suas irmãs.


E como era bonito tudo aquilo. E o homem, naquela noite, pensava nos meninos andarilhos pelos caminhos das roças iluminados pela beleza cósmica da Lua e protegidos por São Jorge, o Santo Guerreiro. Aqueles meninos talvez não conhecessem o presépio de Dona Sinhá, talvez nem soubessem o que é um presépio, mas o que lhe confortava era saber que a lua nasce para todos, não importa onde esteja e, quando a noite termina, momentos e palavras se eternizam.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Palhaço

Por Luiz Andrioli



Quando o meu pai me perguntou o que eu queria ser quando crescesse, eu respondi, na lata: palhaço. Ele deu risada. Aí eu percebi que estava no caminho certo.

Uma vez, ainda criança, fui ao circo e ganhei um saquinho de pipoca. Esvaziei-o e coloquei nele um punhado de serragem para deixar embaixo do travesseiro. Assim eu podia sonhar com o circo sentindo o seu aroma. Na escola, um professor me disse:

- Já que você gosta tanto de circo, porque não foge com ele?

Na hora eu fiquei quieto e também não tive coragem de fugir. Nem precisava. Na verdade foi o circo que fugiu comigo. Existe dentro de mim um trapezista corajoso, um malabarista, um mágico, dois ou três equilibristas, uma linda bailarina, aquele punhado de serragem, um picadeiro e uma arquibancada fazendo festa.

Hoje eu sei que, por baixo de toda maquiagem, existe um palhaço triste – e é desta tristeza que o artista arranca sorrisos da plateia.

O circo me ensinou a ser muito prevenido. Sempre carrego uma bolinha vermelha de colocar na ponta do nariz. Para usá-la quando a vida fica séria demais.

Sobre o Novo Colaborador

Luiz Andrioli é escritor e jornalista. Atuou oito anos como repórter de televisão. Trabalha atualmente como apresentador, locutor e diretor artístico de TV. Pós-graduado em Cinema e mestrando em Literatura. Professor universitário e ator profissional. Como escritor, teve várias peças encenadas por grupos de teatro de Curitiba, dentre elas, “Não só as Balas Matam” (2001). Autor da biografia “O Circo e a Cidade – histórias do grupo circense Queirolo em Curitiba” (Editora do Autor, 2007). Para crianças, escreveu “A menina do Circo” (Pró-infanti Editora, 2009). O seu site [ www.luizandrioli.com ] encontra-se linkado neste blog.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

A minissaia e a liberdade à brasileira


Por Adriana Berger


De Minissaia x Uniban



Voltei preocupada com a teoria e a prática que se alastram pelo nosso país: o da liberdade à brasileira. Pelo que vi em grandes e pequenas cidades o Brasil passa por um momento de grande licenciosidade, vulgaridade, superficialidade, besteirol. Vi meninas dançando em cima de garrafas. Sexo aberto em bailes e shows. Em novelas, programas de entretenimento, o corpo da mulher é usado e abusado. Noventa por cento da programação nacional da TV aberta é sobre cirurgia plástica, cosméticos, penteados, fofocas, brigas domésticas, rezas e "curas", receitas, remédios, cães e bichos, violência. Piadas, de bêbado e homossexual. "Psicólogos", "conselheiras" sentimentais e familiares usam sofrimentos de pessoas em programas sensacionalistas.


Há "formadores de opinião" para qualquer assunto. Afirmo, sem medo de errar, que nós precisamos é de formadores de caráter. Há um grande apagão cultural. É como se todos estivessem sonâmbulos. Não se discute nada de profundo, alternativas para o país. A juventude sem sonhos e poesia não tem em quê ou em quem se inspirar. Contrabando é crime, mas, artigos contrabandeados são vendidos nas ruas na cara da polícia. O cerrado e a floresta, mais destruídos. As cidades em colapso no trânsito e na urbanidade. Crime e violência por toda parte. Milhões de brasileiros nas filas de atendimento da péssima saúde pública. O Brasil continua exportando matéria-prima e importando bugigangas. Baixa produção científica e tecnológica. Cada vez menos formandos em matemática, engenharias, física, química, biologia, ciências exatas.


Se escolas e universidades se comportassem como instituições a formar cidadãos para o equilíbrio social e moral do país discussões públicas velhas e exageradas como essa da minissaia em universidade paulista não prosperaria. O X da questão não está na altura da saia rosa-choque da aluna, mas como, onde e por que foi usada. O que fez parte da imprensa "séria" onde microfones e páginas estão nas mãos de "formadores de opinião"? Usou o assunto para aumentar audiência e tiragem.


Isto É critica a Uniban por seu interesse mercantilista. O que fez a revista ao dar capa à minissaia com reportagem cheia de frases do movimento feminista dos anos 60/70? Nenhuma palavra sobre regras, normas, comportamento nas escolas, em sala de aula, respeito mútuo. Destacaram mulheres com os seios de fora em Brasília, defensoras da garota da capa.


A star is born (Nasce uma estrela)


Com apoio da TV Globo nasce uma estrela nos costumes e no showbiz brasileiro. O cenário se repete. A moça já foi convidada para posar nua. Vai desfilar na escola de samba Porto da Pedra. Em breve poderá ter seu espaço televisivo e ser mais uma formadora de opinião. No programa "Altas Horas" ela sentou-se na cadeira da fama, mas de jeans. Mandou recado para milhões de garotas: "a roupa é minha, visto como quiser, às sextas sempre vou a baladas e já saio de casa vestida e não devo satisfação a ninguém, aquele vestido é um dos mais discretos que uso". Recebeu apoio de universitárias de Brasília com os seios à mostra: "se quiser ir nua que vá é a liberdade de cada um, o corpo é meu, ninguém tem nada com isso". O apresentador do programa com cara de pateta, cercado por estudantes-tietes achando-se o máximo por promover a "liberdade". Uma aluna de minissaia, saltos altos, super maquiada, produzida para baladas, em aula noturna, no meio de marmanjos, ou está com problemas de aceitação, chamando atenção para ser notada; ou não sabe a diferença entre o vulgar e o popular; ou esta querendo bagunçar com um confronto premeditado. Nas escolas do mundo todo há normas, uniformes, regras de comportamento onde muçulmanos, cristãos, budistas, ateus, ricos e pobres, educam jovens que continuarão a defender valores e princípios de seus povos e países.


Psicólogos, professores, ao perceberem o comportamento da aluna deveriam ter conversado com ela, orientá-la, ajudá-la a superar fobias e rejeições. Não o fizeram. A reação de estudantes foi desmedida, vazia de conteúdo. Sem instituições sólidas, cria-se a liberdade à brasileira. Em que ou em quem se espelha a aluna do micro vestido? O que tem aprendido em ética, valores, comportamento e convivência social? O que ela ouve e vê a seu redor? "Sou livre, visto o que quiser a hora que quiser". Num país sem retentores morais, com apatia política e cultural, sem critérios, a garota não tem a quem responder ou dar satisfação. Nem em casa, nem na escola, nem à sociedade, nem ao país. "Se, juiz e desembargador podem, eu posso; se deputado e senador fazem, eu também posso fazer; se o presidente, seus ministros, o prefeito, podem, eu também posso". A TV incentiva quebradores de regras. Cria espaço para mulher-melancia, samambaia, melão, morango. Popozudas ensinam danças, abrem as nádegas e, se abaixam, para mostrar mais. O programa Fantástico da TV Globo no dia 15 de novembro entrou em milhões de lares promovendo o livro e o filme da ex-prostituta Surfistinha, a garota da mina saia e o concurso Menina Fantástico. A Proclamação da República, data histórica do povo brasileiro não interessa. Não dá IBOPE. Em dez minutos, a TV Globo daria a milhões de jovens uma necessária aula da queda do império, a velha República, a era Vargas, JK, a ditadura militar e em 15 de novembro de 1989 a Nova República. Estão rasgando páginas de nossa história. A memória nacional se extingue.


Com tanta noticia que precisa ser dado ao povo o noticiário noturno (Globo), no dia 16/11, se despediu destacando prostituta de noticia velha de tablóide inglês. O que ensina e estimula a mais rica e poderosa escola do Brasil? Não há na TV aberta brasileira (concessão pública) incentivo ao cumprimento de leis, a regras de respeito mútuo, à solidariedade e cooperação. Destaques, astros e estrelas, são os da marginalidade, corruptos bem-sucedidos, políticos mentirosos, os da sexualidade vulgar.


Meu querido Brasil: rico por natureza, mas pobre de cidadania, princípios e ética.


Adriana Berger é professora de História e Literatura Brasileira. A publicação no blog foi autorizada pela autora.



quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

NO FUNDO DA REDE


Cineas Santos


De Flamengo
A rede, como qualquer pessoa saudavelmente preguiçosa sabe, foi a maior contribuição que os índios nos legaram. Graças a ela, passamos mais tempo pensando que fazendo bobagens. É simples: quanto mais tempo passarmos
deitados, menos danos causaremos aos nossos irmãos, à Natureza, ao Planeta... Mas isso será tema de outro arremedo de crônica em futuro próximo. O objeto dessa arenga é outro.

Há coisa de três anos, o poeta Paulo Machado, irmão e amigo, presenteou-me com uma bela rede, larga, generosa e acolhedora como um colo materno. Feita sob encomenda por mãos peritas, tem varandas de crochê e tudo mais. Não bastasse isso, ostenta as cores do brioso Mengão. Uma rede supimpa, diriam os antigos. Presente de tal monta só poderia ser usado em momento festivo. E o momento se me apresentou quando minh’alma andava meio embaçada pela tristeza. Uma cabeçada certeira de um zagueiro, cuja carreira quase se encerrou de modo trágico, e a bola foi aninhar-se, carinhosamente, no fundo da rede. Num átimo, a nação rubro-negra contagiou com sua alegria transbordante todas as almas sensíveis dessa República enxovalhada por escândalos de todas as versidades. Um cometa luminoso brilhou no céu da pátria... Do Oiapoque ao Chuí, o grito uníssono: “Uma vez Flamengo/ Flamengo até morrer”!

Depois de um jejum de 17 anos, sob o comando de Andrade, um dos remanescentes daquela máquina de triturar adversários, o Mengo tornou-se hexacampeão, tendo como principais estrelas dois jogadores problemáticos e, para muitos, “acabados”: Petkovic e Adriano. O primeiro, “velho demais” para a função de meio-campista; o segundo, “um farrista bipolar”. Peti, repetindo as lições de Didi e Gérson, demonstrou que quem precisa correr é a bola; o Imperador, por seu turno, abiscoitou o título de artilheiro do campeonato. “Capricho dos deuses do futebol”, diria um cronista paulista, repetindo um chavão desbotado.

Como não sou torcedor de sair por aí atirando pedras nos adversários, curti a conquista sem muito barulho. Sou um flamenguista atípico: torci (e como!) para que o Vasco ascendesse à primeira divisão e, principalmente, para que Fluminense e Botafogo não fossem rebaixados. Gosto de ver o meu time vencer adversários fortes: ser lobo entre cordeiros é a “glória” dos fracos. E fraqueza não combina conosco.

O Flamengo já nasceu vitorioso: no primeiro campeonato que disputou (em 1912), com Buena, Píndaro, Nery, Curiol, Gilberto, Galo, Baiano, Arnaldo, Amarante, Gustavo e Borgerth, derrotou o Mangueira pelo placar de 16x2, levando aquela brava gente a desistir definitivamente do futebol para dedicar-se ao samba. Bater em tamborim é bem mais fácil que bater o Mengão.

Na noite de domingo, enquanto meus irmãos de credo e cor desfilavam pelas ruas da cidade, cantando e batucando, armei minha rede rubro-negra, “cheirando a guardado de tanto esperar”, abri uma garrafa de vinho e, com ardente paciência, esperei a chuva que se anunciava. E ela veio: suave, silenciosa e acariciante como os dedos da mulher amada. E meu coração de velho, encharcado de alegria, voltou a pulsar no ritmo dos tambores. Como já afirmei tantas vezes: Deus é velho, muito velho e não abandona os Seus.




segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

A Primeira Vez Que Vi Noel




Viera da roça, fugindo da seca e da precisão. Chegara à véspera do Natal e no dia seguinte crianças brincavam na rua exibindo seus presentes: bolas de futebol, carros, bonecas, bicicletas. Ele observava todo o movimento de sua janela. Um garoto o viu e se aproximou:

– Oi! Sou Mário. Pegue seu presente e venha brincar conosco!

Ele desviou o olhar para o chão. Envergonhado, procurou a mãe.

– Mãe, quem é esse Papai Noel que deu brinquedo a todos os meninos da rua e a mim não?

 
A mãe não soube responder. De onde vieram, papai noel se chamava cesta básica e carro-pipa.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Sobre o Natal

(Quando não tinha Papai Noel)

Antonio Torres

De Presépio


Era uma vez um lugar esquecido nos confins do tempo, sem rádio e sem notícias das terras civilizadas, num remoto sertão onde ninguém jamais ouvira falar de Papai Noel. Esse lugar existe. Eu nasci lá.

E se lá não tinha Papai Noel, não havia presentes, ceias, cartões de Boas Festas, propaganda, votos de um Feliz Natal. Desconhecíamos essas coisas, o que era bom. Não faziam falta. O nosso Natal era uma festa singela. Para o menino Jesus.

Como era? Quando dezembro chegava, a meninada se assanhava. “Oba!” Estava na hora de reunir a turma, dormir uns nas casas dos outros, aninhados aos magotes em camas, redes e esteiras, na maior algazarra. Na verdade, ninguém queria dormir. E isso era o melhor da festa, que começava com uma espécie de desafio: vencer o sono e a noite numa animação sem fim, à espera do sol raiar, quando finalmente pegaríamos a estrada, a caminho dos pés de serra e dos tabuleiros, em busca dos ornamentos para a lapinha. E o que era a lapinha? Um presépio. A representação da manjedoura onde nasceu o Menino Jesus. Meninos, eu conto: íamos ao mato em bando, em bíblica alegria. Priminhos de mãos dadas com priminhas, que não escapavam de uns beliscões safadinhos, incentivados por animadíssimas tias. E assim íamos: cheios de prosa e dando muita risada, à cata de jericó, uma planta prateada que seca sem morrer, e de gravatá, que vocês conhecem com o nome de bromélia, para a instalação da lapinha no melhor canto da sala de visitas.

Passávamos dias e dias na montagem de um cenário que correspondesse ao imaginário do velho povo, como rezava a tradição, que vinha dos pais de nossos pais e assim para trás, desde que o mundo, aquele mundo, passou a comemorar o Natal. Depois era esperar as visitas para contemplar a nossa réplica da gruta sagrada, feita de pedras e galhos de árvores, ao fundo de uma planície de areia, repleta de boizinhos de barro, rios de cerâmica com peixinhos de verdade e os reis magos em seus cavalos. E tudo sob uma tênue luz de um candeeiro, porque assim eram as nossas noites, tão simplesinhas quanto no tempo de Jesus.

Um dia chegou o motor da luz no povoado. Fechamos a casa, lá na roça, com lapinha e tudo. Fomos ver as novidades de perto. A igreja estava toda acesa, promovendo quermesses e anunciando a Missa do Galo. Era um novo tempo. Ali na praça iluminada, cheia de atrações nunca antes vistas ou imaginadas, íamos de casa em casa, disputando espaço em suas janelas, para apreciar os presépios, cada um mais deslumbrante do que o outro, graças aos efeitos da eletricidade. Com o motor da luz, chegava o Serviço de Alto Falantes A Voz do Sertão. E com ele, as músicas de Natal. Começava outra história, um outro Natal.

Era a chegada de Papai Noel.