quarta-feira, 23 de novembro de 2011

29 anos sem Adoniran

O dia de hoje não poderia passar em brancas nuvens, pois é a data de aniversário de morte de um dos ícones da Música Popular Brasileira: Adoniran Barbosa. Abaixo, um encontro antológico de Adoniran e Elis Regina, num desses “botecos” da vida, o Bar da Carmela, no Bexiga , em São Paulo, no ano de 1978. 
O cidadão sentado à esquerda da Elis, com cara de tanquense, é o grande jornalista Audálio Dantas.
Também a biografia de Adoniran condensada do site “Wikipédia”.



João Rubinato, (Valinhos, 6 de julho de 1912 — São Paulo, 23 de novembro de 1982), mais conhecido como Adoniran Barbosa, foi um compositor, cantor, humorista e ator brasileiro. Ficou conhecido nacionalmente como o pai do samba paulista.

Rubinato era filho de Ferdinando e Emma Rubinato, imigrantes italianos da localidade de Cavárzere, província de Veneza. Aos dez anos de idade, sua certidão de nascimento foi adulterada para que o ano de nascimento constasse como 1910 possibilitando que ele trabalhasse de forma legalizada: à época a idade mínima para poder trabalhar era de doze anos.

Abandonou a escola cedo, pois não gostava de estudar. Necessitava trabalhar para ajudar a família numerosa - Adoniran tinha sete irmãos. Procurando resolver seus problemas financeiros, os Rubinato viviam mudando de cidade. Moravam primeiro em Valinhos, depois Jundiaí, Santo André e finalmente São Paulo.

Em Jundiaí, Adoniran conhece seu primeiro ofício: entregador de marmitas. Aos quatorze anos, ainda criança, o encontramos rodando pelas ruas da cidade e, legitimamente, surrupiando alguns bolinhos pelo caminho. "A matemática da vida lhe dá o que a escola deixou de ensinar: uma lógica irrefutável. Se havia fome e, na marmita oito bolinhos, dois lhe saciariam a fome e seis a dos clientes; se quatro, um a três; se dois, um a um".

Tenta, antes do advento do rádio, o palco, mas é sempre rejeitado. Sem padrinhos e sem instrução adequada, o ingresso nos teatros como ator lhe é para sempre abortado. O samba, no início da carreira, tem para ele caráter acidental. Escolado pela vida, sabia que o estrelato e o bom sucesso econômico só seriam alcançados na veiculação de seu nome na caixa de ressonância popular que era o rádio.

Entrega-se ao mundo da música. Busca conquistar seu espaço como cantor – tem boa voz, poderia tentar os diversos programas de calouro. Já com o nome de Adoniran Barbosa – tomado emprestado a um companheiro de boêmia e de Luiz Barbosa, cantor de sambas, que admira – João Rubinato estreia cantando um samba brejeiro de Ismael Silva e Nilton Bastos, o Se você jurar. É gongado, mas insiste e volta novamente ao mesmo programa; agora cantando o belo samba de Noel Rosa, Filosofia, que lhe abre as portas das rádios e ao mesmo tempo serve como mote para suas composições futuras.

A vida profissional de Adoniran Barbosa se desenvolve a partir das interpretações de outros compositores. Embora a composição não o atraia muito, a primeira a ser gravada é Dona Boa, na voz de Raul Torres. Depois grava em disco Agora pode chorar, que não faz sucesso algum. Aos poucos se entrega ao papel de ator radiofônico; a criação de diversos tipos populares e a interpretação que deles faz, em programas escritos por Osvaldo Moles, fazem do sambista um homem de relativo sucesso. Embora impagáveis, esses programas não conseguem segurar por muito tempo ainda o compositor que teima em aparecer em Adoniran. Entretanto, é a partir desses programas que o grande sambista encontra a medida exata de seu talento, em que a soma das experiências vividas e da observação acurada dá ao país um dos seus maiores e mais sensíveis intérpretes.

Mas a escolha de Adoniran é outra, seu mergulho também outro. Aproveitando-se da linguagem popular paulistana – de resto do próprio país – as músicas dele são o retrato exato desta linguagem e, como a linguagem determina o próprio discurso, os tipos humanos que surgem deste discurso representam um dos painéis mais importantes da cidadania brasileira. Os despejados das favelas, os engraxates, a mulher submissa que se revolta e abandona a casa, o homem solitário, social e existencialmente solitário, estão intactos nas criações de Adoniran, no humor com que descreve as cenas do cotidiano. A tragédia da exclusão social dos sambistas se revela como a tragicômica cena de um país que subtrai de seus cidadãos a dignidade.

O seu primeiro sucesso como compositor vira canção obrigatória das rodas de samba, das casas de show: Trem das Onze. É bem possível que todo brasileiro conheça, senão a música inteira, ao menos o estribilho, que se torna intemporal. Adoniran alcança, então, o almejado sucesso que, entretanto, dura pouco e não lhe rende mais que uns minguados trocados de direitos autorais. A música, que já havia sido gravada pelo autor em 1951 e não fizera sucesso ainda, é regravada novamente pelos “Demônios da Garoa”, conjunto musical de São Paulo (esta cidade é conhecida como a terra da garoa, da neblina, daí o nome do grupo). Embora o conjunto seja paulista, a música acontece primeiramente no Rio de Janeiro. E aí sim, o sucesso é retumbante.

O primeiro casamento não dura um ano; o segundo, a vida toda: Matilde. De grande importância na vida do sambista, Matilde sabe com quem convive e não só prestigia sua carreira como o incentiva a ser quem é e como é, boêmio, incerto e em constante dificuldade. Trabalha também fora e ajuda o sambista nos momentos difíceis, que são constantes. Adoniran vive para o rádio, para a boêmia e para Matilde.

Numa de suas noitadas, de fogo, perde a chave de casa e não há outro jeito senão acordar Matilde, que se aborrece. O dia seguinte foi repleto de discussão. Mas Adoniran é compositor e dando por encerrado o episódio, compõe o samba Joga a chave.

Dono de um repertório variado de histórias, o sambista não perdia a vez de uma boa blague. Certa vez, quando trabalhava na rádio Record, onde ficou por mais de trinta anos, resolveu, após muito tempo ali, pedir um aumento. O responsável pela gravadora disse-lhe que iria estudar o aumento e que Adoniran voltasse em uma semana para saber dos resultados do estudo... quando voltou, obteve a resposta de que seu caso estava sendo estudado. As interpelações e respostas, sempre as mesmas, duraram algumas semanas... Adoniran começava se irritar e, na última entrevista, saiu-se com esta: “Tá certo, o senhor continue estudando e quando chegar a época da sua formatura me avise..”

Nos últimos anos de vida, com o enfisema avançando, e a impossibilidade de sair de casa pela noite, o sambista dedica-se a recriar alguns dos espaços mágicos que percorreu na vida. Grava algumas músicas ainda, mas com dificuldade – a respiração e o cansaço não lhe permitem muita coisa mais – dá depoimentos importantes, reavaliando sua trajetória artística. Compõe pouco.

Mas inventa para si uma pequena arte, com pedaços velhos de lata, de madeira, movidos a eletricidade. São rodas-gigantes, trens de ferro, carrosséis. Vários e pequenos objetos da ourivesaria popular – enfeites, cigarreiras, bibelôs... Fiel até o fim à sua escolha, às observações que colhe do cotidiano, cria um mundo mágico. Quando recebe alguma visita em casa, que se admira com os objetos criados pelo sambista, ouve dele que “alguns chamavam aquilo de higiene mental, mas que não passava de higiene de débil mental...” Como se vê, cultiva o humor como marca registrada. Marca aliás, que aliada à observação da linguagem e dos fatos trágicos do cotidiano, faz dele um sambista tradicional e inovador.

Adoniran Barbosa morre em 1982, aos 70 anos de idade.
Discografia

1951 - "Os mimosos colibris/Saudade da maloca" (78 rpm)
1952 - "Samba do Arnesto/Conselho de mulher" (78 rpm)
1955 - "Saudosa maloca/Samba do Arnesto" (78 rpm)
1958 - "Pra que chorar" (78 rpm)
1958 - "Pafunça/Nois não os bleque tais" (78 rpm)
1972 - "A Música Brasileira Deste Século -Adoniran Barbosa"
1974 - "Adoniran Barbosa"
1975 - "Adoniran Barbosa"
1979 - "Seu Último Show" (Ao Vivo)
1980 - "Adoniran Barbosa e Convidados"
1984 - "Documento Inédito"
2003 - "2 LPs em 1" (Re-lançamento dos LPs de 1974 e 1975)

Coletâneas

1990 - "Claudinha Do céu" (Com interpretes de suas músicas)
1996 - "MPB Compositores: Adoniran Barbosa" (Com participações e interpretes de suas músicas)
1999 - "Meus Momentos: Adoniran Barbosa"
1999 - "Raízes do Samba: Adoniran Barbosa"
2001 - "Para Sempre - Adoniran Barbosa"
2002 - "Identidade: Adoniran Barbosa"
2004 - "O Talento de: Adoniran Barbosa" (Com participações especiais)

Video

1972 - "Programa Ensaio: Adoniran Barbosa"

Principais Musicas

Malvina, 1951
Saudosa maloca, 1951
Joga a chave, 1952
Samba do Arnesto, 1953
As mariposas, 1955
Iracema, 1956
Apaga o fogo Mané, 1956
Bom-dia tristeza, 1958
Abrigo de vagabundo, 1959
No morro da Casa Verde, 1959
Prova de carinho, 1960
Tiro ao Álvaro, 1960
Luz da light, 1964
Trem das Onze, 1964
Trem das Onze com Demônios da Garoa, 1964
Aguenta a mão, 1965
Samba italiano, 1965
Tocar na banda, 1965
Pafunça, 1965
O casamento do Moacir, 1967
Mulher, patrão e cachaça, 1968
Vila Esperança, 1968
Despejo na favela, 1969
Fica mais um pouco, amor, 1975
Acende o candeeiro, 1972

Filmografia

1953 - "O Cangaceiro"
1954 - " Candinho"
1955 - "A Carrocinha"

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Maurício Melo Júnior - Poemas para Alagoas


Impossível lembrar o dia, impossível lembrar as emoções, se é que as tive. Uma certeza? Vinha nos braços de minha mãe e trazia apenas a leveza despreocupada de meus poucos meses. Foi a primeira vez que vi Alagoas e por ali fiquei na deslembrança de minha primeira infância. Coisa de três anos depois voltei para Pernambuco, mas a terra de massapê coberto de cana e o rio Camaragibe formando barrancos miúdos já me eram íntimos, tinham-se feitos como partes da argamassa que me criou.

Como a vida precisa ser vivida nos espaços que oferece aos homens, fui caminhando, tocando os dias. Vez que outra, sobretudo nos finais de ano, voltava, percorria na procissão do Bom Jesus as ruas de Matriz de Camargibe e de maneira involuntária absorvia todos os ensinamentos daquela gente marcada pelo melaço da cana e os gritos da usina. Fiz tudo que me outorgava a idade. Andei a cavalo, brinquei de finca e quando a idade permitiu conheci matadores e cantei pelos bares: “Matriz é terra boa / é meu natural. / O amor que tenho a ela / É grande e sem igual.”

A cidade tinha seus poetas, como o parnasiano Fabrício Braga, meu tio, que escrevia sonetos contando seus amores pela terra. Outros vinham da vizinhança, do Passo, como seu Nelson, um poeta de verve popular. Sempre chegava proclamando seu bordão: “Se o Passo não fosse o Passo eu não passava pelo Passo, mas como o Passo é o Passo, eu passo pelo Passo”. E nas horas de desamores por sua terra recitava: “Eita Passo do Camaragibe / Cidade triste e atrasada / Tem meia dúzia de gente / O resto não vale nada.”

Os poetas nem sempre são muito justos, pois o Passo fomentou uma das maiores culturas deste país. Foi no balcão da loja que o pai mantinha na cidade que Aurélio Buarque de Holanda ouviu pela primeira vez o termo ôxente, e saiu à cata de saber do que se tratava. Descobriu ser uma corruptela da expressão “ô gente”, e nunca mais parou de estudar a língua portuguesa. E deu no que deu.

Posso dizer que conheço Alagoas e o quanto me dói ler o noticiário que gera. Isso já atingia o poeta Jorge de Lima. Sempre que vinham falar com ele sobre a violência de seu estado, ele, que também foi vítima de tal violência, retrucava: “As minhas Alagoas são outras”. Esta mesma frase usei muito quando há poucos anos alguns amigos falavam da corrupção que se espalhou pelo país no bojo de um governo que se dizia inovador e progressista, mas que nacionalizava práticas doentias. E pensei voltar à carga diante da recente notícia do IBGE apontando o estado como o campeão brasileiro em analfabetismo.

Verdadeiramente as minhas Alagoas são outras, como também são outras as Alagoas dos alagoanos reais. Como o Brasil definido por Machado de Assis, existe sim uma Alagoas real e uma outra oficial. E, tenham certeza, a primeira é mais vítima que responsável pela segunda. O açúcar que fundou a província, também a afundou, pois no bojo de suas ambições foram criadas todas as desigualdades que hoje maculam a terra de um dos maiores juristas brasileiros, Pontes de Miranda.

Outro dia ouvi alguém confessar o estranhamento de não conhecer nenhum benefício feito por luminares, como a doutora Nise da Silveira, às Alagoas. Isso é argumento de quem não conhece os fatos. Graciliano Ramos no relatório que enviou como prefeito de Palmeira dos Índios ao governador Álvaro Paes, em 11 de janeiro de 1930, fala desolado da instrução pública da época. “Instituíram-se escolas em três aldeias: Serra da Mandioca, Anum e Canafístula. O Conselho mandou subvencionar uma sociedade aqui fundada por operários, sociedade que se dedica à educação de adultos. Presumo que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. As aspirantes a professoras revelam, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância. Escolhidas algumas delas, as escolas entraram a funcionar regularmente, como as outras. Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros.”

Mestre Graça fez mais. Depois que se tornou Diretor da Instrução Pública, uma espécie de Secretário de Educação da época, mandava as professoras estudarem novos métodos de ensino no Recife, comprava fardamento para os alunos e, uma revolução, pioneiramente instituíu a merenda escolar. Mas os roceiros não podiam se dedicar às discussões políticas e à leitura de sonetos, como logo descobriu o escritor ao ser demitido do cargo, preso e deportado para o Rio de Janeiro.

Esta prática espalhou-se pelo país. No dia 2 de abril de 1963, diante de todos os governadores do Nordeste, do presidente João Goulart e do general Castelo Branco, na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, o aluno mais velho da primeira turma formada pelo método Paulo Freire escreveu no quadro: “Há trinta anos, o dr. Getúlio veio aqui matar a nossa fome de barriga. Agora o senhor veio matar a nossa fome de cabeça”. Acabada a festa, quando todos iam embora, o general falou para o Secretário Estadual de Educação, Calazans Fernandes: “Meu jovem, você está engordando cascavéis nesses sertões”.

O resta da história já se sabe. Um ano depois, liderando um golpe militar, Castelo Branco se fez presidente e começou a esmagar as cascavéis, experiência seguida por seus sucessores.

Assim caminha a educação deste país. Felizmente muitas experiências procuram quebrar esta desgraça, como os sarais poéticos que acontecem nas periferias de São Paulo e Brasília, onde se lê sonetos e se fala de política pública, mas a mediocridade que ainda domina Alagoas, segundo nos informa o IBGE, insiste em expulsar Graciliano Ramos de sua terra.

Tenho esperanças e mesmo não sendo poeta, acalento o sonho de escrever versos que possam ser lidos por todos os alagoanos, por todos os alagoanos de fato.


Quando ainda se jogava futebol

A seleção brasileira de futebol de 1982 não foi campeã, nem mesmo moral, um esdrúxulo título que arranjaram para amenizar a incompetência de alguns treinadores, mas, sem dúvida nenhuma, mereceu o título de melhor seleção do século, desbancando até a seleção de 1970. Para quem não viu, uma oportunidade de ver os  gols daquela Copa; para quem viu, vale a pena relembrar os momentos alegres do verdadeiro futebol-arte.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Marcelo Moutinho - A palavra ausente [convite lançamento]

Caro amigo,

Na próxima segunda, dia 28, vou lançar meu novo livro – “A palavra ausente” - na Travessa de Ipanema. É meu terceiro livro solo. O lançamento começa às 19h, mas rola até mais tarde. Ou seja, não é preciso chegar na hora marcada. O importante é que você esteja lá.

A Travessa de Ipanema fica na Rua Visconde de Pirajá, 572. O convite segue em anexo.

Abraço

Marcelo

P. S. Quem for chegar muito, mas muito tarde mesmo, pode entrar em contato com o autor, que estará bebendo algo pós-livraria em um bar próximo e, com sorte, ainda escrevendo dedicatórias.

Marcelo Moutinho
www.marcelomoutinho.com.br
Twitter: @mmoutinho

De Convite Marcelo Moutinho

domingo, 20 de novembro de 2011

Você tem fome de quê?


“A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte...”
(Comida - Arnaldo Antunes/Marcelo Fromer/Sérgio Britto)

O quiproquó cultural no penúltimo dia da Fliporto (Festa Literária de Porto de Galinhas), que por uma dessas razões que a razão desconhece acontece anualmente em Olinda, se deve ao embate ideológico entre os escritores Fernando Morais, Leandro Narloch e Samarone Lima, cada um no seu passionalismo agudo em defesa do seu ponto de vista na velha e batida discussão de “capital e trabalho”. Ou seja, a querela surgiu por algo que não estava previsto na programação da mesa: as benesses do socialismo cubano versus as mazelas do capitalismo brasileiro. Ou o contrário. 

Morais, um castrista de carteirinha, usou o argumento da negação da liberdade em troca da comida e do assistencialismo estatal; Narloch, direitista enrustido, e Samarone, um anticastrista juramentado, entraram em rota de colisão com o autor de “Olga” e a plateia, segundo os jornais, ora torcia por um, ora torcia por outro, como se estivesse numa peleja de embolada, tão comum nas ruas de Recife e Olinda.

Devido ao nome dos envolvidos, esse embate repercutiu na imprensa no dia seguinte, e a Fliporto, que até então acontecia discretamente, quase anônima, de repente ganhou divulgação extra, página inteira nos principais jornais do Nordeste. Essas divergências, desde que não sejam pessoais, engrandecem o debate nessas mesas de notáveis em que todos concordam com todos, e a plateia fica apática, na dúvida entre ouvir e dormir.

Ou acontece como na Flimar deste ano, em que colocaram Ignácio de Loyola dividindo a mesa com um ilustre desconhecido do mundo literário e os dois não conseguiram falar a mesma língua ou sintonizar o tema proposto. Ou com o academismo excessivo dos temas e a invencionice vocabular, em que os palestrantes não conseguem entender o significado e mandam ver qualquer coisa.

Se verdadeiro o que se noticiou, essa argumentação de que quem tem fome não precisa de liberdade está um tanto além da minha compreensão de leitor. Partindo desta premissa, devemos achar que os engaiolados nas cadeias e presídios da vida não são apenados, mas apenas sobreviventes do socialismo judiciário. Ou seja, quando a polícia tira um meliante de circulação, não está efetuando uma prisão, mas promovendo uma revolução socialista.

Ufana-se Fernando Morais com a segunda colocação da “Ilha” nos jogos pan-americanos. Mas nos jogos paraolímpicos que estão sendo disputados este mês, em Guadalajara, Cuba está uma decepção, um pífio quarto lugar. No ranking mundial de medalhas paraolímpicas, a situação é mais decepcionante: 43º lugar, abaixo de países como Zimbábue, Irã, Nova Zelândia e Jamaica. Seria isso um sinal de que ao socialismo castrista só interessa a teoria darwiniana da perseverança do mais capaz, que descamba para a famosa seleção natural?

Você tem fome de quê? Os socialistas tupiniquins socializam a miséria e capitalizam a riqueza. Moram em mansões, em bairros nobres, se hospedam em hotéis cinco estrelas e frequentam os restaurantes mais caros. A confraria do PC do B das Alagoas se reúne em um dos restaurantes mais caros do Nordeste para justificar a falta de liberdade de imprensa e do direito individual em Cuba e, apesar de se servir nababescamente de camarões, ostras, lagostas e whisky importado, ainda encontra boa vontade para falar da fome do povo de todo o mundo, menos de Cuba, porque lá a fome é de outra coisa. Como eles se acham acima do bem e do mal, pensam que podem tudo. Fumam até em ambiente público e fechado, sem se incomodarem com o mal que fazem aos outros. É o típico caso do faça o que digo, mas não faça o que eu faço. Ou, como dizia a minha avó, pimenta no fiofó dos outros é refresco.

A fome já matou a fome de muitos comunistas e socialistas, porém o povo continua na indigência. Como a fome não tem raça, cor, credo, muito menos ideologia, vem junto a sede de liberdade. Satisfazer-se só com comida feito boi no pasto não é muito digno do ser humano, por mais que discursem os intelectuais de esquerda. 

Ademais, se a comida é tudo, não vejo os famélicos indigentes capitalistas pedindo asilo político a Cuba. Mas o contrário...

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Cineas Santos - Chuvas Amorosas

“Nas mãos do vento as chuvas amorosas
vinham cair nos campos de dezembro,
e de repente a vida rebentava
na força muda que as sementes guardam.” 

Tivesse escrito apenas estes quatro versos, Dobal já teria deixado, entre nós, a marca da sua presença luminosa. Para um habitante das regiões sul ou sudeste do Brasil, este punhado de versos talvez não diga nada; para quem vive, padece e morre no sertão nordestino, é pouco menos que o anúncio de uma epifania. Com alguma frequência, surpreendo-me recitando esses versos como se fossem um mantra. Tenho minhas razões. Onde nasci – sertão do Caracol – chovia bem menos que o necessário. Menino, eu gastava parte do tempo disponível à caça de alguma nuvem tresmalhada na vastidão do céu. Sobrou dessa experiência inútil o gosto pelo azul que me encharca a alma. Como dependíamos da chuva para sobreviver, aprendíamos, muito cedo, a buscar os seus sinais em todas as coisas: na agitação das formigas e dos cupins; na floração dos mandacarus; na posição do ninho do João-de-barro. Mas, de todos os sinais, o que efetivamente nos enchia de certezas e de alegria era uma chuva, chuvisco que fosse, no Dia de Finados. À época, sobreviver no semiárido exigia alguma sabença.

            Ler os sinais da chuva era uma das habilidades do meu pai, um sertanejo perfeitamente integrado ao seu chão. Seu Liberato sabia tirar da terra o que a terra lhe podia dar, sem exauri-la. Era um homem sem transbordamentos: nunca o vi eufórico nem colérico. Ainda assim, quando chovia, notadamente à noite, era bom vê-lo sentado num velho banco de madeira, pitando seu cigarro de palha, esfregando as mãos e balançando a cabeça afirmativamente. Se a chuva se fazia mais intensa, levantava-se, ia até a porta e afirmava categórico: “É geral!”. Para nós, a sentença era inquestionável: estava chovendo no mundo inteiro. E, efetivamente, estava, uma vez que o nosso mundo não ia além dos limites das nossas roças. Um mundo pequeno onde só cabiam pequenas alegrias.

            Um dia, transplantaram-me para uma cidade hostil onde passei a me sentir um estranho entre estranhos. Com o tempo, percebi que jamais me tornaria um citadino. Hoje, o sertão que ainda me habita se manifesta, às vezes, com tamanha intensidade que mal consigo resistir à tentação de abrir mão do que (não) tenho na cidade para reaver a gleba onde nasci. O problema é que Campo Formoso já não existe; não passa de uma metáfora boiando na memória. Tivesse menos idade, eu voltaria para reinventá-lo e gastaria o que me restasse de vida lidando com a terra e os bichos miúdos... Infelizmente, trata-se de uma empreitada grande demais para as minhas forças. Talvez eu ainda retorne ao Campo Formoso, mas como adubo, o que seria muito natural: afinal de contas, homem e húmus provêm da mesma raiz.
             

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Luís Pimentel - Wilson Batista - Samba e malandragem

Nota do blog: em 1935 Noel Rosa e Wilson Batista se digladiaram musicalmente, enriquecendo a nossa MPB. Em 1956 a Odeon registrou essa polêmica na voz de Roberto Paiva (Wilson Batista) e Francisco Egydio (Noel Rosa). Em 1999, em show dedicado a Noel Rosa, Henrique Cazes e Cristina Buarque de Holanda colocaram no repertório essa polêmica. Se você gosta da MPB, eis a grande oportunidade de conhecer um pouco dos bastidores na criação da nossa Música Popular Brasileira. O show de Cazes e Cristina foi registrado em disco com o nome Sem tostão 2... a crise continua - Canções de Noel Rosa. Em 2001 foi lançado em cd.



O Rio de Janeiro já hospedou, em tempos idos, alguns malandros de renome, a maioria com livre trânsito no mundo da música. Basta citar Valdemar da Babilônia, João Cobra, Mané da Carretilha, Nina do Estácio, Brancura, Gaguinho Bicheiro e Madame Satã. Este último, tão próximo viveu de artistas, compositores e cantores, que veio a ser mais tarde acusado de provocar a morte do sambista Geraldo Pereira (1918-1955), após uma briga de bar na Lapa. Madame Satã não negava o imbróglio, pelo contrário. Gabava-se da façanha, por pura malandragem.

Mas entre os compositores, praticamente não havia malandro. Neguinho ralava (como rala até hoje), e muito. A honrosa exceção deve ser feita a Wilson Batista. Apesar de carioca por adoção, Wilson nasceu em Campos, em 1913. Adolescente, desembarcou no Rio de Janeiro para morar com um tio, no subúrbio. Pressionado pelos parentes, que queriam a todo custo empregá-lo numa oficina mecânica, saiu de casa e foi morar sozinho nas proximidades da Lapa, onde logo começou a frequentar a vida noturna, fazendo amizade com figuras conhecidas e respeitadas na “área”, como Madame Satã, Jorge Goulart, Boi (um misto de porteiro e leão-de-chácara dos cabarés), Ataulfo Alves e Miguelzinho Camisa Preta, entre outros mais ou menos votados.

Autor de sambas geniais como Nega Luzia (“Lá vem a Nega Luzia/No meio da cavalaria/Vai correr lista lá na vizinhança/Pra pagar mais uma fiança/Foi calibrina demais/Lá no xadrez ninguém vai dormir em paz”), Mundo de zinco, Chico Brito (“Lá vem o Chico Brito/Descendo o morro na mão do Peçanha”), Samba rubro-negro (“Flamengo joga amanhã/Eu vou pra lá/Vai haver mais um baile/No Maracanã/O mais querido tem Rubens, Dequinha e Pavão/Eu já rezei pra São Jorge/Pro Mengo ser campeão”) e tantos, tantos outros, Wilson Batista encarnou como ninguém o espírito malandro carioca, passando a vida a complementar os minguados trocados dos direitos autorais com os chamados “pequenos expedientes”: venda de samba, cafetinagem, empréstimos jamais honrados, trambiques e aprontos de toda espécie. Vivia literalmente na malandragem, de corpo e alma. Seu espírito, sua linguagem e brincadeiras procuravam reproduzir as gírias e as emoções dos grandes malandros de sua época, a quem ele tanto admirava.

Wilson viveu várias polêmicas em sua vida atribulada: com “comprositores” que lhe compraram sambas e não quiseram pagar, com mulheres e com traficantes de quem, no fim da vida, comprava drogas na ilusão de aliviar a angústia provocada pelo esquecimento profissional. A mais importante foi a polêmica com Noel Rosa, já registrada em disco. Wilson compôs um samba chamado Meu chapéu de lado (“Meu chapéu de lado/Tamanco arrastando/Lenço no pescoço/navalha no bolso”), Noel rebateu com Rapaz folgado (“Deixa de arrastar o teu tamanco/ Pois tamanco nunca foi sandália/.../E guarda essa navalha/Que só te atrapalha”) e o zunzunzum começou, com a produção de belas canções como Feitiço da Vila, Conversa fiada, Palpite infeliz e Terra de cego.

Como a grande maioria dos malandros, e boa parte dos artistas que fizeram o prestígio da MPB, Wilson Batista morreu na miséria. Consumido pela droga, o álcool e a depressão, lesado pelas sociedades arrecadadoras de direitos autorais e abandonado pela maioria dos amigos. A chama se apagou no dia 7 de julho de 1968, numa enfermaria coletiva do Hospital Souza Aguiar, no Rio de Janeiro. Mas está por aí, pois qualquer malandrinho de porta de tinturaria sabe: quem samba fica.




segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Altamir Tojal - A USP e a isonomia na impunidade

Não bastassem o espetáculo grotesco do ministro Carlos Lupi peitando a presidente da república e o STF ter empurrado com a barriga a Lei da Ficha Limpa, a crônica da corrupção no Brasil surpreende mais uma vez, agora com o princípio da isonomia na impunidade, evocado por pais de alunos da USP que invadiram a reitoria. A lógica é a seguinte: se políticos corruptos não são punidos, porque os estudantes têm de ter punição?

Este é o ponto em que estamos. Quando a gente imagina que não vai se surpreender com mais nada, tem de ouvir um argumento desses, uma espécie de direito adquirido à impunidade, mais um tributo à generalização da corrupção e à vergonhosa complacência, omissão, conivência e aplauso de governantes, parlamentares, juízes e poderosos em geral.

Como não param de roubar, a gente também não vai parar de protestar. Estão anunciadas manifestações anticorrupção em dezenas de cidades nesta terça-feira, 15 de novembro, Dia da Proclamação da República. No Rio estão programados três atos: 10h – na Favela de Mandela, Complexo de Manguinhos; 15h – na Cinelândia; e 15h – em Copacabana, Posto 4.

As manifestações são pela aplicação imediata da Lei da Ficha Limpa, cujo julgamento está em curso no STF, pelo voto aberto no Congresso Nacional, pelo limite à imunidade parlamentar e pelo aumento das penas e agilização dos processos de corrupção na justiça.

Um tema específico para o Rio de Janeiro é o apoio à aprovação da Lei da Ficha Limpa estadual, que entra na pauta de votação na Alerj nesta quarta, dia 16. Trata-se da PEC 5/2011. É preciso, portanto, por pressão nos nobres deputados. Há também o Projeto de Lei 902/2011, que ficou engavetado um tempão e parece que recomeçou a andar agora.

Antes que zoem de mais atos anticorrupção num feriado, vale lembrar que a maioria dos manifestantes tem de ralar nos dias úteis. É gente que não tem ponto abonado para protestar nem subvenção do governo, nem boquinha em ong fajuta. Aliás, zoar das manifestações contra a corrupção é coisa de quem não tem o que fazer ou de quem tem rabo preso.

Segue o convite do Movimento 31 de Julho:

ATO ANTICORRUPÇÃO: 15 DE NOVEMBRO, 15 HORAS, COPACABANA

Será realizada nesta terça-feira, 15 de novembro, Dia da Proclamação da República, manifestação contra a corrupção e a impunidade em Copacabana, Rio de Janeiro. O ato, organizado pelo Movimento 31 de Julho, está programado para as 15 horas, no Posto 4, Avenida Atlântica, em frente à Rua Constante Ramos.

A manifestação será pela aplicação imediata e integral da Lei da Ficha Limpa, cujo julgamento está em curso no STF, pelo voto aberto no Congresso Nacional, pelo limite à imunidade parlamentar e pelo aumento das penas e agilização dos processos de corrupção na justiça.

O ato contará com a presença de representantes de movimentos anticorrupção e pela valorização da cidadania e terá apresentações de hip hop e de uma coreografia, que foram criados especialmente para a manifestação.
Caso chova, a manifestação será transferida automaticamente para domingo, 20 de novembro, no mesmo local e horário.

O Movimento 31 de Julho apoia as demais manifestações anticorrupção programadas na cidade no dia 15 de novembro, como os atos em Manguinhos às 10h e na Cinelândia, às 15h.

Outras informações:
Marcelo Medeiros:
21-8165-4444
movimento31dejulho@gmail.com
www.movimento31dejulho.blogspot.com


sábado, 12 de novembro de 2011

Maurício Melo Júnior - Névoa poética sobre a Academia

Os do Norte chegaram arrastando seus sonhos. E o Norte era longe, improvável. Traziam também na bagagem vastas emoções, culturas. Pela estrada cumprida – no mar ou na terra – corriam tantas vidas, tantas paisagens, tantas cores que preenchiam as retinas mais amplas e abertas. E com suas cargas entranhadas na pele, os do Norte espalharam-se por todas as partes.

Um deles, de nome Nabuco, Joaquim Nabuco, falava de noites escurecidas pela opressão onde a resistência fazia nascer desejos libertários. Pelas pregações que fazia, o negro Tobias que esfaqueara de morte o patrão num engenho de Pernambuco não matara um homem, mas séculos de humilhação e dor. Foi contra os incontáveis lanhos abertos nas costas de seus pares que investiu o pobre escravo. Depois da abolição, ainda prenhe de ideário renovador, o agora maduro jurista sofreu por não ver realizado o projeto de inclusão social que sonhou para os deserdados da sorte e se voltou para seus escritos e sistematizou uma academia para abrigar as letras do Brasil. Hoje perpetua-se, com gingado de dândi, na calçada da instituição.

Ao seu lado, sentado numa escrivaninha, tentando arrancar alguma poesia da rigidez do bronze que lhe segura sempre na mesma posição, outro do Norte, Manuel, de sobrenome Bandeira. Este nunca conseguiu chegar em Pasárgada, no entanto escreveu passos líricos em quilômetros incontáveis de terras espalhadas por todos os continentes. Semeou versos em cada palmo desse chão, seduziu a todos com as belezas de sua criação. Sua voz de tísico, de homem com pulmões capazes de tocar tangos argentinos se ouviu alta, em palavras fortes e indissolúveis. Se fez herói trabalhando somento verbos e sentimentos: “Não faço versos de guerra, não faço porque não sei, mas num torpedo suicida darei de bom grado a vida na luta que não lutei.”

Por tudo isso está ali, na calçada de um edifício alto, de muitos andares, com incrição no pilar principal: Palácio Austregésilo de Athayde. Este também era nortista. Foi numa conversa com Rachel de Queiroz, também filha da terrinha, que o assunto surgiu: “Você precisa ouvir o Athayde. Ele tem mais de 90 anos e uma lucidez invejável. É da raça cearense.” “Dona Rachel, ele estudou no seminário de Fortaleza, mas é pernambucano de Caruaru…” “Meu filho, quando o menino é bonito todo mundo quer ser o pai.” Athayde não era necessariamente um homem bonito, portava mesmo uma feiúra danada, mas as palavras saiam com facilidade e explendor de sua imaginação. Em essência foi cronista, homem de jornal, conhecedor dos rigores da linguagem e sua necessidade na defesa dos direitos naturais do bicho humano. 

Hoje se caminha pelos espaços desses edifícios – o palácio propriamente dito e o menor, o mais clássico, o dito Petit Trianon – respirando os prazeres da cultura. Quem preferir pode subir outros andares, onde se cuida de negócias que sustentam numerários, de minha parte vadio olhando livros, reedições bem cuidadas de obras raras e fundamentais – João do Rio no cinema, cartas de Machado de Assis. A língua portuguesa, essa nossa pátria tão judiada, olvidada, precisa de defesas, imunidades que mantenham suas particularidades, suas características seminais. Penso nisso ao cumprimentar o gramático Bechara, outro do Norte. E sigo sem saber bem o que fazer. 

Como peixe-agulha encantado com a luz de lanternas, pulo em outro barco chamado por um cartaz imenso – Presença Poética do Recife / Exposição Sobre o Centenário de Mauro Mota. Desculpe a fraqueza desta memória, meu poeta, mas seu nome estava escondido numa prateleira mais alta de minha cabeça e há muito que não esticava o braço até lá. É também que este país, esta máquina de moer talentos é tão eficiente em sua faina cruel que as vezes nos entregamos ao sentimento ruim e em tempos mais eufóricos esquecemos os primores de ontem. Coisas do bicho humano, você sabe. 

O certo é que passei por um passado que me parecia distante, imemorial, sem lembrar que era parte primordial de meu âmago. O Recife, os canaviais, os engenhos. Tudo isso que foi seu desfilava sob meus olhos de saudade. Livros, poemas, análises de sabor sociológico, o fabrico de uma cabeça inquieta que ousou pensar Pernambuco como pedaço do Nordeste, mas também por isso, síntese do vasto mundo. Daí o carinho pelas tecelãs, pelas moças assustadas com os tiros da guerra e encantadas com a beleza nova de homens vindos de outros Nortes. E a vida em família, entre filhos e amigos. A beleza de Hermantine, a que tinha mãos feitas para construir destinos. O primitivismo artístico brotado das telas de Marly, a de mãos feitas para expressar o belo. Um cochicho com Gilberto Freyre. Um abraço em Chacrinha, o bonachão nortista Abelardo que veio saber de sua glória chegando à Academia. Muitas lembranças, meu velho.

Tudo se transmuta, quando preciso, em poesia. As estantes centenárias da biblioteca me mostram Ferreira Gullar, também do Norte, pedindo a Bandeira que leia seu livro de estreia, Um Pouco Acima do Chão. No mesmo patamar, um volume magro com poemas de Ascenço Ferreira traz dedicatória fraterna ao mesmo Bandeira. É tanta vida a se olhar, moço, que sigo carregando o orgulho de também ter vindo do Norte e poder juntar as forças de um talento miúdo para falar de esferas infindas. 

Penso no tanto que Pernambuco, bicho atrevido que gosta de falar para o mundo, plantou neste solo fértil. E sento para ouvir Carlos Fuentes falar de outros mundos. O México rebelado, Pedro Páramo, gente que conversa com fantasmas, as possibilidades infindas da literatura.

O mundo é grande e não tem porteiras. E as academias quando querem sabem encontrar os caminhos da atividade, do saber e da grandeza.


quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Cineas Santos - As lições das meninas do Zuenir

No milênio passado, eu e o prof. Adala Carnib apresentamos, por mais de um ano, um programa na Rádio Pioneira de Teresina. “Viva o sábado”, com duração de duas horas, ia ao ar nas noites de sábado, das 18 às 20 horas. O foco do programa era a educação, mas falávamos de quase tudo: cultura, ecologia, costumes, etc. Além de não nos pagarem nada pela produção e apresentação do programa, que ostentava a chancela do MEB, ainda tínhamos de levar nossos discos (os velhos vinis) para termos a liberdade de só tocar o que quiséssemos. E, em matéria de música, tínhamos um pacto inegociável: não tocávamos música estrangeira nem brega. Abríamos o “Viva o sábado” com o “Expresso 2222”, de Gilberto Gil, na voz de Simonal. A melodia de fundo era “Assim falou Zaratustra”, de Richard Strauss”, com arranjos de Eumir Deodato. O mais eram Elomar, Quinteto Violado, as feras da MPB e até o bruxo Hermeto Paschoal. Modéstia às favas, o programa era bem feito. Quanto à audiência, devia ser bem chinfrim.
 
Uma noite, uma radiouvinte (palavrinha antiga) me ligou: “Professor, para o senhor, o que é felicidade?”. Esperava, naturalmente, uma longa explanação com incursões pela filosofia, religião, literatura e o diabo a sete. Por preguiça e incompetência, fui direto ao ponto: minha irmã, para mim, felicidade é o dente que não dói. Insatisfeita com a resposta, a cidadã retrucou: “Honestamente, não entendi”. Rebati de bate-pronto: quando lhe doer um dente, você entenderá. E mais não disse. Confesso que, hoje, eu não teria resposta melhor. Na verdade, nunca me preocupei em procurar um conceito para felicidade. Basta-me fruí-la quando ela me concede o ar de sua graça, o que sói acontecer com alguma frequência.

Lembrei-me dessa história ao ler a bela crônica “A Preguiça de Sofrer”, do Zuenir Ventura. O cronista nos fala de sete cidadãs, quatro delas irmãs, com idades entre 73 e 90 anos. São amigas e costumam passar os finais de semana na região serrana de Itaipava. Tornaram-se amigas do escritor na década de 70. De amigas, passaram a fãs. Hoje são conhecidas como as Meninas do Zuenir. Onde quer que o cronista se apresente para uma palestra ou debate, lá estão as sete na primeira fila. A despeito da idade, continuam lúcidas, ativas e alegres. Trabalham, passeiam e divertem-se com um entusiasmo de matar de inveja muitos jovens. Há, entre elas, um acordo tácito: não se fala de doenças, de mágoas, de tristezas. Um dia, o Zuenir lhes perguntou qual a receita para o bom humor do grupo. Guilhermina, de 84 anos, respondeu por todas: “Tenho preguiça de sofrer”.

Dia desses, um desses sábios de plantão afirmou: “Um dos problemas do homem ocidental é a obrigação de ser ou de, pelo menos, parecer feliz em tempo integral”. Nessa busca desenfreada e inútil, vale tudo: de reza forte a cirurgia plástica, passando por drogas e livros de autoajuda (não seriam a mesma coisa?).Resultado: uma legião de neuróticos narcisistas e consumistas à procura do Valhalla. Enquanto isso, sem gastar um centavo, as Meninas do Zuenir curtem sua saudável preguiça onde quer que estejam. O poeta tem razão: “Viver deveria bastar”.



quarta-feira, 9 de novembro de 2011

José Nêumanne Pinto - A revolução dos “bichos grilos” mimados da USP

É proibido fumar maconha na nave da Sé, na rua, nas boates e no campus da Universidade.

A Universidade de São Paulo (USP) é a maior instituição de ensino superior do Brasil. Com 11 campus e 89 mil alunos matriculados, dos quais 50 mil na Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, figura também entre os mais reconhecidos centros de excelência em pesquisa científica e produção de pensamento filosófico do subcontinente latino-americano. No entanto, nenhum de seus mais respeitáveis mestres de Matemática será capaz de explicar de que tipo de legitimidade foram ungidos os 73 vândalos que ocuparam dois prédios – um da administração da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e outro da Reitoria – para merecerem do reitor anistia “administrativa” pelos danos cometidos contra o patrimônio, de propriedade da cidadania brasileira, que sustenta suas atividades de aprendizado. Nem sequer o grego Aristóteles, preceptor de Alexandre, o Grande, encontraria alguma lógica na concessão dada a, digamos, 600 estudantes para decidirem sobre a permanência de jovens turbulentos e estranhos ao expediente nos dois prédios, a pretexto de protestarem contra a presença da Polícia Milita (PM) no campus, que consideram “território sagrado” e inviolável..

Quem se depara com a informação de que os invasores dos prédios só admitiam negociar com a Reitoria se os policiais fossem afastados da Cidade Universitária pode ter a falsa ideia de que, de repente, num pesadelo inimaginável, tivéssemos voltado à ditadura, que reprimia a liberdade acadêmica. Nada disso! Entre janeiro e abril deste ano, os roubos no campus aumentaram 13 vezes e os atos de violência – entre os quais estupros e sequestros relâmpagos – cresceram 300%. Em maio, um estudante de Economia foi morto num assalto. O sangue dele foi a gota que fez o cálice transbordar e a direção da USP assinar um convênio com a PM para que soldados fizessem o papel que vinha sendo desempenhado por 130 agentes de segurança patrimonial, que, em dois turnos, vigiavam dezenas de prédios e vários estacionamentos e garantiam a segurança de 100 mil pessoas que circulam todo dia pelas ruas da sede da USP. Em quatro meses de policiamento, os furtos de veículos caíram 92,3%; os sequestros relâmpagos, 87,5%; os roubos, 66,7%; e os delitos de lesão corporal, 77,8%. 

Tudo corria muito bem até o dia em que policiais militares que patrulhavam as ruas amplas e arborizadas do aprazível local abordaram três alunos que fumavam maconha no prédio da História e da Geografia.

Quando tentaram levá-los para o 91.º Distrito Policial (DP) para registrar a ocorrência, os agentes da lei foram atacados por uma horda de cerca de 200 estudantes. Do entrevero resultaram policiais feridose seis viaturas apedrejadas. Minorias radicais que controlam diretórios acadêmicos e sindicatos de servidores e professores usaram o incidente como pretexto para um violento protesto contra a presença da polícia “repressora” em “seu” campus. Os rebeldes ocuparam um prédio da FFLCH, transformado em QG de sua guerra contra a “neo repressão”. 

A congregação da faculdade cujo prédio foi invadido apoiou a invasão e a reivindicação dos amotinados. Mas, numa demonstração de que, felizmente, é possível estudantes aprenderem certo, mesmo quando seus mestres ensinam errado, a maioria dos alunos aprovou, em duas assembleias, a imediata desocupação dos prédios e o policiamento das ruas. A decisão era de uma sensatez cristalina. Afinal, as únicas prejudicadas com a presença de policiamento no local foram as quadrilhas instaladas nas favelas que cercam a sede da universidade, os quais tiveram reduzidos seus lucros no furto de bens, na sevícia de pessoas e na venda de drogas. A serviço dessas quadrilhas – da mesma forma que as Farc, na Colômbia, se tornaram a guarda pretoriana dos traficantes de cocaína e o crime organizado no México se aliou ao terrorismo internacional patrocinado pelo Irã –, os grupelhos esquerdistas desprezaram a decisão democrática dos colegas, ocuparam a Reitoria e exigiram a retirada da polícia para negociar a retirada.

Ao invadirem os prédios, mascarados, os ativistas da revolução dos filhinhos dos papais da USP mostraram que não tinham vergonha de se comportar como os assaltantes de diligências no Velho Oeste americano. E que contavam com a possibilidade de não ser identificados na hora de terem de pagar por seus crimes. Ao aceitar sua exigência de que os anistiaria desses delitos, o reitor João Grandino Rodas agiu com a pusilanimidade com que habitualmente os administradores universitários enfrentam esses delinquentes. 

Desde que a escolha dos reitores passou a ser feita pelo voto de alunos, funcionários e professores, a politicagem vem sendo a moeda de troca que tem permitido esse tipo de baderna, nociva ao livre aprendizado e à pesquisa que a sociedade paga caro para manter em instituições como a USP. Felizmente, contudo, a autoridade policial não precisa dos votos dos baderneiros e fez o que devia ser feito: numa operação espetacular e exemplar, retomou os prédios dos invasores e os levou em ônibus para a delegacia, da qual cada “bicho grilo” mimado só saiu depois de pagar fiança de R$ 545, valor razoável para as famílias de privilegiados de elite que não frequentam aulas que poderiam estar sendo ministradas a filhos de pobres, que pagam as contas da USP e não têm chance de frequentar seus cursos caros e disputados. 

O campus de qualquer instituição acadêmica é sagrado para a transmissão do saber, não para o consumo de drogas. É proibido fumar maconha na nave da Sé, na rua, em boates e na Cidade Universitária. Os “bichos grilos” mimados que se disseram “torturados” por terem sido levados de ônibus – e não nos carrões dos pais – para a delegacia devem ser fichados como bandidos comuns e expulsos da universidade para outros que querem e precisam estudar recebam a educação que eles desprezam. 

Jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde
(Publicado na Pág. A02 do Estado de S. Paulo de quarta-feira, 9 de novembro de 2011)

domingo, 6 de novembro de 2011

Edna Lopes - E agora, José?

Obrigações de genro é dívida em dobro. Negar algo a sogra é negar duplamente, pois nem a sogra nem a filha (no caso, a esposa) perdoam uma desatenção nesse nível e por isso ele concordou em pedir ao chefe para ser liberado naquela tarde. Tinha que levar sua santa sogrinha ao médico.

Na hora combinada liga para a esposa e pega as duas na porta do prédio, recebendo as coordenadas de onde e como seria a maratona da tarde: consulta, depois laboratório e na volta, farmácia.

No carro, a conversa amena, com rádio ligado baixinho para não incomodar Dona Júlia, a pessoa mais teimosa que ele já havia conhecido. Quando cismava com algo, infernizava tanto a vida da família que acabava ganhando “no grito” qualquer discussão.

Já havia dirigido um tanto quando percebeu algo junto ao pedal do freio: um sapato de mulher!

Culpa é mesmo um sentimento perverso e José Alberto, que não era nenhum santo, gelou! Se a “Federal” visse aquilo ele estava frito e mal pago! Disfarçou um sorriso amarelo, pegou a “prova” de sua culpa e descartou pela janela. Por sorte, mulher e sogra olhavam as vitrines no lado oposto.

Estacionou na porta da clínica. Enquanto a esposa descia, abriu a porta para ajudar a sogra a descer do automóvel.

D. Júlia , desesperada, jurava à filha que não estava doida, que havia calçado os dois pés do sapato quando saíram de casa.