quarta-feira, 11 de julho de 2012

Ibys Maceioh e o homem que falava javanês

Clip da música "O homem que falava javanês", de Geraldo do Norte e Ibys Maceioh, baseada no conto de Lima Barreto "O homem que sabia javanês". Abaixo do vídeo, o divertidíssimo conto, para quem nunca o leu.


O Homem que Sabia Javanês
de Lima Barreto

Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades para poder viver.

Houve mesmo, uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso.

O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:

— Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo!
— Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho aguentado lá, no consulado !
— Cansa-se; mas não é disso que me admiro. O que me admira é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático.
— Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês!
— Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?
— Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso.
— Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?
— Bebo.

Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei:

— Eu tinha chegado havia pouco ao Rio estava literalmente na miséria. Vivia fugido de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Comércio o anuncio seguinte:

"Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas, etc." Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me. Saí do café e andei pelas ruas, sempre a imaginar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os "cadáveres". Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir; mas, entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e a língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo maleo-polinésico, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.

A Encyclopédie dava-me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras. Na minha cabeça dançavam hieróglifos; de quando em quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia estes calungas na areia para guardá-los bem na memória e habituar a mão a escrevê-los.

À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu "a-b-c" malaio, e, com tanto afinco levei o propósito que, de manhã, o sabia perfeitamente.

Convenci-me que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que não me encontrasse com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:

— Senhor Castelo, quando salda a sua conta?

Respondi-lhe então eu, com a mais encantadora esperança:

— Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor de javanês, e...

Por aí o homem interrompeu-me:

— Que diabo vem a ser isso, Senhor Castelo?

Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do homem:

— É uma língua que se fala lá pelas bandas do Timor. Sabe onde é?

Oh! alma ingênua! O homem esqueceu-se da minha dívida e disse-me com aquele falar forte dos portugueses:

— Eu cá por mim, não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá para os lados de Macau. E o senhor sabe isso, Senhor Castelo?

Animado com esta saída feliz que me deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente propor-me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo Jornal e lá deixei a carta. Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia ou se por ter me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que ia ensinar.

Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, à Rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que numero. E preciso não te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e responder "como está o senhor?" - e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico.

Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei, para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É mais fácil - podes ficar certo - aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo; e, Com maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza...

Era uma casa enorme que parecia estar deserta; estava mal tratada, mas não sei porque me veio pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver que mesmo pobreza. Devia haver anos que não era pintada. As paredes descascavam e os beirais do telhado, daquelas telhas vidradas de outros tempos, estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras decadentes ou mal cuidadas.

Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores mortiças. Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento.

Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão; mas, daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela pureza da louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar, diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos...

Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com o lenço de alcobaça na mão, tomando veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de ir-me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à tona do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei.

— Eu sou, avancei, o professor de javanês, que o senhor disse precisar.
— Sente-se, respondeu-me o velho. O senhor é daqui, do Rio?
— Não, sou de Canavieiras.
— Como? - fez ele. Fale um pouco alto, que sou surdo, — Sou de Canavieiras, na Bahia, insisti eu. — Onde fez os seus estudos?
— Em São Salvador.
— Em onde aprendeu o javanês? - indagou ele, com aquela teimosia peculiar aos velhos.

Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai era javanês. Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi javanês.

— E ele acreditou? E o físico? - perguntou meu amigo, que até então me ouvira calado.
— Não sou, objetei, lá muito diferente de um javanês. Estes meus cabelos corridos, duros e grossos e a minha pele basané podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço de malaio...Tu sabes bem que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro.
— Bem, fez o meu amigo, continua.
— O velho, emendei eu, ouviu-me atentamente, considerou demoradamente o meu físico, pareceu que me julgava de fato filho de malaio e perguntou-me com doçura:
— Então está disposto a ensinar-me javanês?
— A resposta saiu-me sem querer: — Pois não.
— O senhor há de ficar admirado, aduziu o Barão de Jacuecanga, que eu, nesta idade, ainda queira aprender qualquer coisa, mas...
— Não tenho que admirar. Têm-se visto exemplos e exemplos muito fecundos... ?
— O que eu quero, meu caro senhor....
— Castelo, adiantei eu.
— O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz." Meu pai, continuou o velho barão, não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me lembrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro, que preciso entender o javanês. Eis aí.

Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos e perguntou-me se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e explicou-me que perdera todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante.

Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in-quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.

Logo informei disso o velho barão que, não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.

Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria: aprendia e desaprendia.

A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça e julgaram a coisa boa para distraí-lo.

Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa Única! Ele não se cansava de repetir: “É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava!”

O marido de Dona Maria da Glória (assim se chamava a filha do barão), era desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar diante de todo o mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo.

Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens !...

Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos !

Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Passava, enfim, uma vida regalada.

Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um seu parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a cousa ao meu javanês; e eu estive quase a crê-lo também.

Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande, quando o doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Cayru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. — "Qual!” retrucava ele. “Vá, menino; você sabe javanês!" Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso.

O diretor chamou os chefes de seção: "Vejam só, um homem que sabe javanês — que portento!"

Os chefes de seção levaram-me aos oficiais e amanuenses e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam: "Então sabe javanês? É difícil? Não há quem o saiba aqui!"

O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu então: "É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?" Disse-lhe que não e fui à presença do ministro.

A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, concertou o pince-nez no nariz e perguntou: "Então, sabe javanês?" Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. "Bem, disse-me o ministro, o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bale, onde vai representar o Brasil no Congresso de Linguística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Müller, e outros!"

Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios.

O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade conveniente e fez-me uma deixa no testamento.

Pus-me com afã no estudo das línguas maleo-polinésicas; mas não havia meio! Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia necessária para fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the English-Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: "Lá vai o sujeito que sabe javanês." Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de entenderem o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do Comércio um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna...

— Como, se tu nada sabias? - interrompeu-me o atento Castro.
— Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas de geografias, e depois citei a mais não poder.
— E nunca duvidaram? - perguntou-me ainda o meu amigo.
— Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só falava uma língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia. Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente. Demorei-me em ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês — uf!

Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram-me na seção do tupi-guarani e eu abalei para Paris. Antes, porém, fiz publicar no Mensageiro de Bale o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando voltei, o presidente pediu-me desculpas por me ter dado aquela seção; não conhecia os meus trabalhos e julgara que, por ser eu americano brasileiro, me estava naturalmente indicada a seção do tupi- guarani. Aceitei as explicações e até hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme prometi.

Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Bale, em Berlim, em Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo Senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga.
Não perdi meu tempo nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi uma ovação de todas as classes sociais e o presidente da república, dias depois, convidava-me para almoçar em sua companhia.

Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia.
— É fantástico, observou Castro, agarrando o copo de cerveja.

— Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser?
— Que?
— Bacteriologista eminente. Vamos?
— Vamos.

Gazeta da Tarde, Rio.28-4-l9ll.


segunda-feira, 9 de julho de 2012

Ricardo Kotscho - Audálio Dantas, aos 80 anos, sempre na luta


"Onde e quando se fizer uma homenagem a Audálio Dantas, sempre uma voz haverá de dizer em alto e bom som: ele conduziu os jornalistas que estavam de joelhos a caminhar eretos novamente", Juca Kfouri, na edição especial do Jornalistas & Companhia, em homenagem aos 80 anos de Audálio Dantas.

Acabaram-se as controvérsias. O jornalista Audálio Ferreira Dantas, bravo e honrado cidadão brasileiro, completou 80 anos, oficialmente, neste domingo, 8 de julho. Na época em que ele nasceu, no município de Tanque D´Arca, interior das Alagoas, levava muito tempo e muitas léguas para o pai fazer o registro e, por isso, como tantos conterrâneos, Audálio tinha duas datas de nascimento - uma confusão danada que já foi tema deste Balaio e causou muita polêmica entre os amigos.

Em qualquer profissão, é muito raro alguém chegar aos 80 anos em plena atividade profissional, pleno de saúde, admirado e respeitado pelos colegas, sempre na batalha pelas boas causas. No jornalismo, é mais difícil ainda.

No caso de Audálio, o que menos importa é a idade, até porque, sempre disposto a enfrentar novos desafios, ele não a aparenta. Tem alma de menino. Com mais de seis décadas de serviço no lombo, continua trabalhando por gosto e por precisão. Neste tempo todo, só conseguiu juntar de bens materiais o apartamento onde mora, nas Perdizes, um velho Corsa e um terreno em Vinhedo, no interior paulista. Em compensação, pode se orgulhar de tudo o que fez para o jornalismo e pela democracia nos muitos papéis que exerceu na vida.

Agora mesmo, está para lançar dois novos livros (um de reportagem e outro sobre Vladimir Herzog), tem uma agenda cheia de palestras e outros compromissos, entre eles o de dirigir a redação da revista "Negócios da Comunicação".

Por isso mesmo, e com justa razão, o amigo está recebendo uma série de homenagens, como a edição especial do Jornalistas & Cia., do Eduardo Ribeiro (www.jornalistasecia.com.br), que conta a sua vida em prosa e verso, de trás para frente e de frente para trás, trazendo os depoimentos de muita gente famosa no ofício e fora dele.
Dele já se falou de tudo, menos de um pequeno detalhe com o qual não me conformo: desde os anos 1970, Audálio Dantas está fora do main stream da grande imprensa e nunca mais publicou as grandes reportagens que o tornaram  um dos ícones da profissão.

Por um período, Audálio ficou fora das redações, primeiro ao liderar o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo na denúncia do assassinato do nosso colega Vladimir Herzog e, em seguida, ao ser eleito deputado federal. Em 1982, 30 anos atrás, portanto, quando terminou seu mandato parlamentar e ele não se reelegeu, o velho mestre poderia estar de volta ao mercado, como se costuma dizer.

Suas célebres reportagens nas revistas O Cruzeiro e Realidade, no entanto, algumas delas reunidas no livro que vai lançar no próximo dia 17, no restaurante Jacaré, em São Paulo, não animaram nenhum editor a convidá-lo para voltar às redações. Por esse motivo, talvez, tenha ocupado cargos no serviço público e em conselhos de instituições, fazendo de tudo um pouco para pagar suas contas e sustentar a numerosa família, sem nunca abandonar as lutas coletivas. 

Eleito presidente da Federação Nacional dos Jornalistas  e vice-presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Audálio só voltaria a escrever na grande imprensa entre 1997 e 2001, quando lhe ofereceram uma coluna no jornal Diário Popular, onde também colaborei, na época de Josemar Gimenez na chefia de redação.

Mesmo não sendo enviado especial de nenhum jornal ou revista, Audálio nunca deixou de viajar pelas terras da sua grande paixão: o Brasil. Em alguns destes destinos, eu o encontrei participando de debates sindicais, feiras de livro e eventos vários na longa jornada pela redemocratização do país. Quase sempre, estava acompanhado de sua valente Vanira e, às vezes, das filhas mais novas, Juliana, também jornalista, que trabalha na redação da Record News, e Mariana.

Uma única vez nos encontramos a passeio: foi no Carnaval de Salvador, alguns anos atrás, junto com os inacreditáveis irmãos Alves Pinto (Ziraldo, Zélio e Ziralzi), todos numa farra de adolescentes viajando sem os pais, pulando dia e noite. Além de tudo, Audálio é um grande amigo, um cara leal e animado, que nunca se deixa abater com as dificuldades e está sempre pronto para encarar uma festa.

Só de uma coisa eu sei e gostaria de dizer antes de concluir esta singela homenagem: o jornalismo brasileiro não  pode se dar ao luxo de ficar sem as reportagens e o conhecimento de um sujeito chamado Audálio Dantas.
Com a palavra, os excelentíssimos senhores editores da nossa grande imprensa, que ficaria maior ainda.

sábado, 7 de julho de 2012

Antonio Torres - Amado Jorge


                  Recordo aqui o mestre na arte de fazer amigos, apresentar pessoas umas às outras, de recebê-las em sua bela casa na Rua Alagoinhas, 33, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador da Bahia, e nos seus endereços do Rio de Janeiro e de Paris. Missivista incansável, ele sempre dava um jeito de encontrar tempo para ler e responder as cartas que recebia de todo o mundo, numa disponibilidade impressionante em se tratando de um escritor com dedicação exclusiva ao seu ofício, e ao mesmo tempo figura pública frequentemente envolta em múltiplas solicitações. As mais de cem mil páginas guardadas num acervo isolado na fundação que leva o seu nome, na capital do seu estado natal, comprovam o quanto ele dialogou intensamente por via postal. Não foram poucos os ilustres desconhecidos, promissores ou não, que no início de suas carreiras literárias mereceram dele amáveis palavras de incentivo, a serem guardadas como um troféu pelos destinatários mais discretos, ou divulgadas triunfalmente – pelos mais afoitos. 

O autor destas linhas foi um desses felizardos. E de forma tão surpreendente quanto inesquecível, para um voraz leitor de seus livros, e desde a adolescência, quando um deles lhe caiu às mãos. E que o tinha na conta de uma figura inatingível, já que se tratava do romancista brasileiro mais lido, mais traduzido, mais viajado, mais cortejado, mais popular – sua popularidade jamais fora igualada por qualquer outro escritor brasileiro do seu tempo, ou de antes dele, ainda que a crítica, sobretudo a acadêmica, lhe torcesse o nariz. Portanto, este que agora vos escreve não contava com aquele seu gesto, imprevisível, desprendido, atencioso, melhor dizendo, de uma generosidade inimaginável. 

Eis a história:
                       
Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1972.

Já estava aprontando a mala, para uma rápida viagem a São Paulo. Motivo: o lançamento do meu primeiro livro lá, programado para a inauguração de uma livraria no Largo do Arouche, no centro da cidade.

 O telefone tocou. Ao atendê-lo, reconheci a voz de um amigo paulista, que tinha duas notícias, uma boa e outra ruim.

  Pedi-lhe que começasse pela ruim.

  E ele:

  - Para o seu azar, Jorge Amado vai fazer a noite de autógrafos de Tereza Batista cansada de guerra aqui em São Paulo, hoje, no mesmo horário da sua. Como qualquer lançamento dele dá enchente, o seu pode ficar às moscas.   
                     
    Por essa eu não esperava. A coincidência dos dois lançamentos, no mesmo horário, era mesmo preocupante. Mas, fazer o que, se estava tudo marcado e, àquela hora, não dava mais para propor outra data? 

    - Agora conta a boa...
    - Leia “O Estado de São Paulo” de hoje. 

     Claro que, ao chegar ao aeroporto Santos Dumont, no centro do Rio, corri à livraria para comprar o “Estadão”. E lá estava, na página 10 do primeiro caderno, uma matéria de boníssimo tamanho sobre os dois lançamentos, com as capas dos respectivos livros em destaque, o do baiano universalmente consagrado e o do estreante já devidamente avisado de que se preparasse para ser esmagado pelo peso do nome do seu ilustre conterrâneo. No entanto, ao se encaminhar para o avião, o tal estreante já estava mais otimista, achando que de modo algum aquela seria uma viagem perdida. A julgar pelo espaço que lhe coubera no poderoso “Estadão”, e junto logo de quem, a ganhara por antecipação. Só por isso já se sentia no lucro.                                
                         
       São Paulo, 12 de dezembro de 1972.
       Fim de tarde.

       Chego à livraria alguns minutos antes da hora marcada e me dirijo ao balcão, para me apresentar. Um rapaz me cumprimenta, se desmanchando em mesuras. E logo revela a razão do seu entusiasmo: Jorge Amado acabava de sair dali.

       E aí é que vinha a surpresa. Antes de ir para a livraria onde estaria autografando seu novo romance, dali a pouco, e certamente para uma multidão, Jorge Amado passara naquela outra, na qual comprara o livro do estreante, que deixou com o vendedor, pedindo-lhe para enviá-lo ao hotel em que estava hospedado, devidamente autografado. Como se isso fosse pouco, deixou uma cartinha com simpáticas saudações ao novo autor, e dando-lhe seu endereço e telefone, para que o procurasse, quando fosse à Bahia. Seria isso algo normal no mundo das letras, ou somente em se tratando de um cavalheiro chamado Jorge Amado? A praxe deveria ser outra: o estreante envidar esforços para descobrir como enviar seu livro para o escritor consagrado, escrever para ele para saber se o havia recebido, se tivera tempo de lê-lo, o que achara etc, tentar uma aproximação através de um amigo que tivesse um amigo que por sua vez era amigo... Não era mais ou menos assim a via crucis em busca de reconhecimento, por caminhos mais longos do que no admirável novo mundo-ego inaugurado pela web? Enfim, para o destinatário daquela cartinha escrita de próprio punho em 12 de dezembro de 1972, Jorge Amado parecia haver descido do topo da montanha em que fora colocado pela força da sua obra para dar uma mão a um mocinho sem currículo recém-chegado à planície das letras.

   Ainda ia haver mais.

    Poucos meses depois, o telefone toca, e era ele próprio no outro lado da linha, convidando para dois dedos de prosa em seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro. Perguntou se podia convidar também o artista plástico Calazans Neto, seu grande amigo, capista e ilustrador de alguns dos seus livros. Ora, ora, como não? E lá me fui. Para conhecê-lo pessoalmente, assim como à sua mulher, a escritora Zélia Gattai, e o “mestre Calá”, um conviva espirituoso, encantador, cujo senso de humor preenchia o vazio que ficava na sala toda vez que o telefone tocava e dona Zélia se levantava para atendê-lo. O que acontecia a todo instante. Eram ligações dos jornais, das TVs, dos embaixadores dos mais diversos países. Jorge pedia licença, ia e vinha, se desculpava pelas interrupções à conversa. 

    - Eu queria mesmo era ficar conversando contigo. Mas não me deixam. Vá à Bahia. Quem sabe lá dê para a gente conversar?

     Doce ilusão. Baiano, mas vivendo fora do estado desde cedo, finalmente eu iria ser apresentado a praticamente todo o meio literário local - por Jorge Amado! E isso em torno dos comes e bebes de um almoço de domingo, com os cheiros, cores e sabores carregados da sensualidade que impregnavam as suas páginas. 

      – Chegue cedo, para a gente poder conversar. 

     Só que uma equipe da TV argentina chegou antes, para entrevistá-lo. Sua sala de visitas estava completamente tomada por câmaras, cabos, refletores, que o seguiam por quartos, escritório, cozinha, tudo. E a produção pedia-lhe para trocar de roupa, nas mudanças dos sets de gravação. E ele, tendo nas mãos uma camisa estampada, de cores vivas, bem ao gosto de turista norte-americano no Hawai: - Zélia, esta fica bem?

      Isso não foi tudo: a campainha tocava o tempo todo. E lá ia ele para a porta de casa, para ser fotografado, ora por japoneses, ora por turistas paulistas que chegavam aos bandos, enquanto o convidado que atendera ao seu pedido de chegar cedo se perguntava como ele agüentava esse tranco e ainda era capaz de escrever com tanta regularidade.   

      Voltaria a visitá-lo, na Bahia, no Rio, em Paris. Às vezes – raras vezes - com sorte de encontrá-lo sem o desassossego que o acompanhava em toda parte. E não foram poucas as cartas que recebi dele, enviadas de Salvador, Londres, Lisboa, Martinica... Ou seja, pela vida afora ele acompanhava com interesse o destino do escritor estreante que em São Paulo o levara a fazer um desvio de caminho para comprar o seu livro, naquele fim de tarde de 12 de dezembro de 1972.
        
                                      ***
      Agora recordo a iniciação de um leitor à obra de Jorge Amado. Foi através do Mar morto, no qual navegaria em duas noites, para desembarcar ao raiar de um dia com o mesmo arrebatamento com que já havia lido um célebre vate, e ícone do romantismo no Brasil, o também baiano Antônio de Castro Alves. De tão poético, o romance de Jorge Amado parecia uma versão contemporânea, em prosa, da lira flamejante, libertária, daquele que tanto colocou a sua pena a serviço de um mundo mais justo, comprometida com a construção de uma nova ordem social, e com a causa republicana e abolicionista, quanto também arrebatava os corações como o grande poeta do amor e da melancolia do século XIX. (“Por que Castro Alves e Jorge Amado estão ainda por merecer estudos analíticos mais amplos e mais profundos”? – pergunta o escritor e crítico literário Hélio Pólvora, num ensaio intitulado Jorge Amado e o romance do mar. E responde: “Justamente porque expõem sentimentos comuns, ânsias comuns, esperanças disseminadas. E, sobretudo, porque são eloquentes: exprimem logo o essencial sem o recurso ao debate de ideias, dispensam os mistérios do texto. Dizem verdades essenciais – e isso, como ficou bem dito de Máximo Gorki, é uma arte do coração”). Mar morto seria então uma comprovação disso, embora não tenham sido poucos os críticos que o combateram, chegando-se até a acusá-lo de sentimentalismo quase pueril, amontoado de lugares comuns e banalidades que de modo algum poderiam ser elevadas à categoria de poesia. 

        O leitor aqui recordado ainda não lia os críticos. Era um adolescente mais chegado à poesia do que à prosa. Ainda assim já havia lido com interesse um romance de Machado de Assis, outro de Graciliano Ramos, alguns contos de Monteiro Lobato, e de uma série de antologias intitulada Maravilhas do conto (hispano-americano, russo, norte-americano etc). Mar morto o conquistara definitivamente para a prosa de ficção. Ponto para o poder de sedução da humaníssima fala baiana que Jorge Amado tão bem sabia captar para a linguagem escrita, trazendo à literatura brasileira um colorido encantador, até, ou principalmente, para um leitorzinho baiano como o que aqui se rememora, pois, sendo natural do interior do estado e nele ainda vivendo, desconhecia a vida e as lendas do mar, os cenários míticos amadianos, pintados pelo seu viés sincrético, a retratar uma deslumbrante visão utópica de mundo.

           E a descoberta desse mundo fabuloso deveu-se a um professor – de Geografia! -, que chegara, procedente do Rio de Janeiro, para dar aulas no único ginásio da cidade, surpreendendo os seus alunos com seus vastos conhecimentos de serras, mares, rios, lagos, pontos culminantes, continentes, capitais, países. Aos poucos, ele revelaria outros domínios, que abrangiam da Matemática à Literatura. Esse mestre de nome estranho – chamava-se Carloman, por extenso, Carloman Carlos Borges -, fora das salas de aulas empenhava-se em falar de livros e autores jamais falados naquele estabelecimento de ensino, parado no tempo do Romantismo. Para o professor Carloman, compreenderíamos melhor o país em que vivíamos, se lêssemos a literatura brasileira moderna, muito bem representada pelos romancistas do Nordeste, que, com a cearense Rachel de Queiroz, o alagoano Graciliano Ramos, o paraibano José Lins do Rego e o baiano Jorge Amado haviam inaugurado o mais poderoso ciclo literário nacional, no século XX, o do “romance de 30” – ou seja, da década de 1930. – Para começar a gostar da obra de Jorge Amado, leia este – ele disse, ao me emprestar o Mar morto.  Quando se começa a ler Jorge Amado, não se para mais. 

          Estávamos na segunda metade da década de 1950, numa cidade de 50 mil habitantes, luzes verdes, sonhos dourados, e vida cultural limitada. Nosso imaginário era povoado pelos personagens interpretados pelos astros e estrelas de Hollywood, e nós, os rapazes, ora saíamos do cinema andando como um cowboy que acabava de apear do cavalo, ora  iríamos passar horas e horas diante de um espelho, caprichando num pimpão que nos deixasse parecidos com o Elvis Presley. Nos bailes, porém, só sabíamos dançar mesmo era o bolero. Aquele que ousou os primeiros requebros do rock and roll foi aplaudido de pé, como um herói. Ler Jorge Amado significou descobrir um outro heroísmo. 

           Começando o Mar morto em tom de conversa pessoal, íntima, de pé do ouvido, ele seduz o leitor desde a primeira linha - Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia -, e daí por diante leva-o em ondas, deixando-o completamente envolvido pelas dores das labutas dos seus marinheiros, tanto quanto pelo prazer de um texto amoroso, memorável: Vinde ouvir estas histórias e estas canções. Vinde ouvir a história de Guma e Lívia que é a história da vida e do amor no mar. Uma história de aventura e de liberdade, de mitos oriundos de tradições culturais tão próximas e tão desconhecidas daquele leitorzinho interiorano:
                       
                        Estrela matutina. No cais o velho Francisco balança a cabeça. Uma vez, quando fez o que nenhum mestre de saveiro faria, ele viu Iemanjá, a dona do mar. E não é ela quem vai agora de pé no Paquete Voador? Não é ela? É ela, sim. É Iemanjá quem vai ali. E o velho Francisco grita para outros no cais:
                         - Vejam! Vejam! É Janaína.
                         Olharam e viram. Dona Dulce olhou também da janela da escola. Viu uma mulher forte que lutava. A luta era seu milagre. Começava a se realizar. No cais os marítimos viam Iemanjá, a dos cinco nomes. O velho Francisco gritava, era a segunda vez que ele a via.
                           Assim contam na beira do cais. 

       “De todos os mitos que sustentam os romances amadianos e lhes dão a profunda ressonância da fatalidade, nenhum é tão amplamente utilizado quanto o de Iemanjá que empresta a Mar morto a sua estrutura, o seu sopro poético e a sua força dramática. A história de Guma é, em certas ocasiões, tão comovente quanto a de Édipo. O sistema das relações entre os personagens se reproduz graças à presença mediadora do mito afro-brasileiro, o velho esquema da ficção grega que nada mais é, talvez, do que a expressão das relações inerentes a todos os grupos humanos desde sempre”.
Salah, Jacques. O cenário mítico em Mar morto. In: Colóquio Jorge Amado – 70 anos de Mar morto. Salvador: Casa de Palavras, 2008.
                                                           
                       Fim de uma história. Começo de outra. Com a seguinte epígrafe: Buscaba el amanecer/ y el amanecer no era. Foi a primeira vez que este leitor bateu os olhos no nome de Federico Garcia Lorca, que, descoberto via Jorge Amado, um dia iria lhe inspirar o romance Balada da infância perdida.   
                                                     ***

                       Salve, salve, capitão de longo curso:
                       
             Recordo-o em O país do carnaval: “Fica-se vivendo a tragédia de fazer ironias”. Pois não deixa de ser irônico que o mundo acadêmico, que costumava jogá-lo num saco de gatos, para malhá-lo como a um Judas, esteja fazendo uma reavaliação da sua obra. Chega a parecer que agora você “era o herói” (copyright para Chico Buarque), o herói popular ao qual alguns círculos eruditos fazem justiça, ainda que tardia. Seja como for, não custa recordar que essa virada começou em 2010, quando duas venerandas instituições do ensino superior, uma de São Paulo e a outra da Bahia, realizaram um seminário em torno do seu nome, e com auditórios lotados. Agora se descobre que “ainda há terrenos férteis a serem explorados” em sua obra, como a homossexualidade em alguns de seus romances, e “o grande potencial da literatura amadiana para a pesquisa histórica”, conforme avaliação acadêmica feita em recente edição da bela Revista da Biblioteca Mário de Andrade, também de São Paulo. Era agora que você iria se perguntar: “Mudou a universidade brasileira ou mudei eu”? E são tantos os workshops em torno dos seus livros – e da sua vida - pelo país afora, e tantas as homenagens a você around the world, neste seu centenário, que o espaço aqui ficou pequeno para dar conta de tudo, até porque não poderia encerrar estas mal-traçadas linhas sem repassar um recado da Bahia. Nosso conterrâneo Aleilton Fonseca, doutor em Letras e escritor, manda dizer que na sua obra, Jorge, “somos nós que estamos representados, com a nossa cultura mestiça, nossas marcas étnicas e sociais, e os diversos aspectos da nossa formação”. E que ela revela “a nossa experiência particular do mundo”. Assino embaixo. Saudades eternas, 

    Antônio Torres

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Audálio Dantas na Globo News

Se você é daqueles que passou a vida política em brancas nuvens, eis a oportunidade de entender um pouco o que foi a ditadura militar.