domingo, 17 de fevereiro de 2013

Cadê você, meu amor?!

E eu aqui nessa agonia, sem saber se você vinha, fumei um maço e meio de cigarro Hollywood Kink Size Filter para acalmar a aflição, e você chegou  finalmente, e sorridente, escancarou seu coração de adolescente me deixando em total estado de abandono:

- Eu só vim aqui pra dizer que hoje eu vou num vim!

Dito isso, singelamente, escafedeu-se no labirinto dos pensamentos se escondendo atrás das emoções, me deixando com o maldito vício do cigarro que eu havia deixado vinte anos atrás. 

Cineas Santos - Estação do Inferno



                          
         Em mais de uma oportunidade, afirmei que seu Liberato era um homem exato, um homem sem transbordamentos. Ao longo da vida, nunca o vi correr ou gritar; eufórico ou colérico. Um sertanejo de tristezas brandas e alegrias rasas. Parecia movido por uma noção exata de ritmo, o seu ritmo. Nos eitos dos roçados, às vezes, os trabalhadores competiam entre si para ver quem terminava mais rápido determinada tarefa. Alheio a tais disputas, seu Liberato apenas fazia o seu trabalho. Não fazia versos, não tocava viola, não contava vantagens. Quando lhe sobrava algum tempo, contava causos, alguns muito engraçados. Em matéria de música, conhecida apenas duas que, raramente, cantava com voz suave a afinada: “Cabelo de meu bem tem areia,/tem areia, tem areia, vou tirar;/cabelo de meu bem tem areia, /tem areia, só  tiro se ela mandar”. A outra: “Foi uma jura/ Que fiz de nunca mais amar/ Ai, ai, ai, meu Deus/ Para que jurei?/ Todo mundo sabe/ Quebrei minha jura, quebrei”.

         Seu Liberato prezava muito o silêncio, razão por que não suportava rádio. Quando perdeu a visão, por volta dos  70 anos de idade,passava os dias sentado numa redinha de fibra de caroá, conversando e recontando causos .Acontece que a casa de dona Purcina era o local  de encontro dos estudantes do Ginásio Dom Inocêncio. A velha ganhava a vida vendendo doce à molecada. Quando a algazarra se fazia insuportável, o velho limitava-se a afirmar baixinho: “Isto aqui é a estação da luz”.

         Vai que, um dia, apareceu em nossa casa uma jovem que não desgrudava do rádio nem para dormir. Certa feita, agastado com o barulho daquela “engenhoca rouca”, seu Liberato lhe fez uma recomendação: “Minha filha, deixe esse rádio descansar um bocadinho. De tanto falar, um dia, pode lhe faltar assunto”. A moça sorriu e continuou na dela,com o radinho  a tiracolo. Numa noite qualquer, o velho acordou ao som de uma música de letra maliciosa: “Ô tabaco bom, bom de  se cheirar!/Ô tabaco bom, vamos gente, vem comprar”, na voz de Messias Holanda. Ficou abismado com aquilo. Na manhã seguinte, não se conteve: “Minha filha, seu rádio ontem à noite, estava cantando prosa”. Dias depois, a jovem acordou apavorada no meio da noite, com o rádio “falando uma língua esquisita”. Era o noticiário da BBC de Londres. Meu pai foi taxativo: “Menina, aquilo era a estação do inferno. Convém tomar cuidado”. Assustada, a mocinha nunca mais dormiu com o rádio ligado.

         Lembrei-me dessa história boba, ao ouvir um dos sucessos da “música” fank  no automóvel de uma jovem bem-nascida. A letra é de fazer corar uma estátua de granito. Pensei comigo: feliz de seu Liberato que não viveu o bastante para  testemunhar que, hoje, a estação do inferno não entra acidentalmente no rádio. Agora, os programas de rádio, com honrosas exceções, são transmitidos, ao vivo, diretamente do inferno. O tempora! O mores!

 

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Luís Pimentel - Carnaval, desenganos


     Manhãzinha do sábado de Carnaval/Cena externa/Cinelândia.

     A freirinha de bigodes puxou uma cadeira no boteco da Evaristo da Veiga. O garçom pegou o espírito da coisa e chegou junto:

     – Bom dia, irmã. O que deseja?

     O folião descera de Santa Teresa na véspera, depois de se esbaldar no bloco das Carmelitas. Fizera o caminho via Copacabana, deixando os últimos pedaços no quase-bloco do Bip-Bip. Estava um caco:

     – Me vê um pastel.
     – Queijo, camarão ou carne seca?
     – Qualquer um. É só pra ter o que estômago mandar de volta.
     – Vai no de carne seca. Tem mais volume.
     O marmanjo de hábito e touca negros riu e pediu uma dose dupla.
     – De quê?
     – Qualquer coisa – e abraçou o garçom, que àquela altura já era um amigo de infância:
     – Vou te contar uma história triste.
     – Já sei. Esqueceu a carteira no convento.
     – Pior. Perdi um amor aqui, ano passado, no começo do desfile.
     O garçom puxou a outra cadeira:
     – Conta mais.
  – Linda. Vestido de seda branca, transparente, uma bolinha preta em cada seio, homenageando o Cordão. Olhava nos meus olhos e repetia “lugar quente é na cama...”
     – Vou chorar – gemeu o garçom.
     – Deixa de viadagem.

     O Bola Preta inchava em direção à Araújo Porto Alegre. O garçom pediu um tempo ao patrão e resolveu ajuda-lo na busca. O dono do bar diz que não voltou até hoje.


sábado, 9 de fevereiro de 2013

A minha primeira (e última) comunhão





Nas aulas de catequese para primeira comunhão na Escola Brazilino Viegas, Alagoinhas, Bahia, as catequistas diziam que depois de receber a hóstia sagrada seríamos ungidos com a graça divina e nosso corpo seria abraçado pelo Espírito Santo e flutuaríamos nas nuvens como um Zepelim prateado. Mas, para isso acontecer, teríamos que contar todos os nossos pecados ao padre e nos mostrarmos verdadeiramente arrependidos pelos atos praticados contra Deus.


No dia da confissão... amarelei! Em vez do confessionário, o padre colocou uma cadeira no meio da igreja e nos mandou fazer fila. Encarar o padre tête-à-tête e contar as safadezas que fazia e ainda mostrar arrependimento seria um verdadeiro ato de bravura e coragem. Decididamente não nasci para ser aquele herói que toda mãe católica necessita. Pensei em fugir, mas a professora me segurou pelo braço e me deu um beliscão.


Ao chegar a minha vez de subir no cadafalso, o padre me olhou com ares de sádico e me disse com cara de inquisidor, antegozando o poder da tortura:


- Conte os seus pecados! 

Engasguei com as palavras. Tossi. Olhei para um lado e outro em busca de socorro. Chapolim Colorado não era desse tempo. Vi Jesus querendo soltar os braços da cruz para me dar uns cascudos. Então criei coragem e falei num fio de voz:

- Meus pecados?! Xinguei o meu irmão mais novo, roubei o doce de Carlinhos, roubei laranja do sítio do Major...

- Que mais?

- Mais?! Roubei umas bolas de gude de Dilto e desobedeci à minha mãe...


Que pecado ele esperava encontrar em um garoto de onze anos que mal havia descoberto a masturbação? Por via das dúvidas, soneguei esta informação. Não confiava na discrição do padre e certamente ele iria contar para a minha mãe.


Na hora da comunhão, coração acelerado para receber o corpo de Cristo e ser abduzido pelo Espírito Santo e sair da igreja flutuando, não vi nada acontecer. Vi, sim, a cara de agonia de Crispim. Ele cuspia na mão e ficava olhando, apavorado. Ele me pediu para olhar se havia sangue na sua boca. Não. Não havia. Por quê? A catequista havia lhe dito que se ele mastigasse a hóstia a boca ia ficar cheia de sangue de Jesus Cristo. E ele mastigou.


Depois da comunhão tive a impressão que estava mais pesado, mais lento. Reclamei à professora de catequese, exigindo minha viagem esotérica. Ela encaminhou a minha reclamação ao padre. Ele me chamou à sacristia e, mal me viu, esbravejou:


- Você é um possuído do demônio! Você não se arrependeu dos pecados! Se arrependa, seu moleque, se arrependa, seu cretino! –  me deu um cachação que caí de cara no altar.


As duas semanas que passei internado no hospital não sei se foi por causa disso, se foi pela surra que levei de minha mãe por não me arrepender dos pecados ou se foram os dois juntos.



Sei apenas que só tinha onze anos e ninguém nunca havia me dito que masturbação era pecado.



quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço

Há os que falam da esperteza dos pastores, mas a religião, seja ela qual for, virou mercantilismo. Como vender lasca da cruz em que Cristo foi crucificado não dá mais certo, a Igreja agora resolveu vender água benta. Uma garrafinha de 300ml, como esta da foto, custa a simples bagatela de dois reais. Esta eu comprei na Igreja do Bonfim para mostrar que padres e pastores são todos farinha do mesmo saco. O que eles querem mesmo é fazer negócio com a fé do povo.


domingo, 3 de fevereiro de 2013

Cineas Santos - Nem a dor cala o preconceito



                         
         No último domingo (27/01), fui acordado por meu filho com uma notícia que, além de me estragar o dia, me deixará triste por muito tempo: a tragédia de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Inicialmente, as informações disponíveis sobre, eram truncadas, confusas, imprecisas. Falava-se em 91 pessoas mortas, o que já seria um número assustador. Aos poucos, as coisas foram piorando até chegar à cifra inacreditável: 234 vítimas fatais.

         A grande imprensa, notadamente a televisiva, montou acampamento na cidade gaúcha e, a cada minuto, mostra uma imagem mais chocante que a outra. Gestos de heroísmo, de solidariedade, de desespero, dor. Parece que ainda há mais sofrimento a caminho...

          No rescaldo do incêndio da casa de shows Kiss, sobram culpas, mas parece faltarem culpados. Para dar satisfação à opinião pública, já foram presos dois dos proprietários da boate e dois músicos que, segundo dizem, são apenas “operários” da banda Gurizada Fandangueira. Nada além. Ainda não se falou do descaso da Prefeitura de Santa Maria nem da responsabilidade do Corpo de Bombeiros. O certo é que a casa vem funcionando, desde sua inauguração, com apenas uma porta, o que contraria todas as normas de segurança vigentes no país. A tendência é que se fragmentem as responsabilidades, até reduzi-las a unidades insignificantes. Os mais fracos, naturalmente, ficarão com a parcela maior.

         Mas tudo isso já é sabido e consabido. O que mais me chamou atenção, neste episódio feito de descaso e dor, foi o comportamento de alguns internautas. Como a maior parte das vítimas era constituída de jovens, as redes sociais entraram em ebulição: milhões de mensagens foram postadas nas redes sociais disponíveis. Uma cidadã, que atende pelo nome de Patrícia Aible, postou o seguinte comentário: “Muito triste. Não pode ser verdade... 70 mortos e pode chegar a 90? Meu Rio Grande do Sul não merece isso. Se fosse no AMAZONAS, no PIAUÍ, na BAHIA, no CEARÁ, onde não há vida inteligente, tudo bem... mas no Rio Grande  e logo na cidade do meu falecido pai é de cortar coração. Estou de luto, Diamante do meu Brasil. Não tá morto quem peleia! AVANTE RIO GRANDE, CÉREBRO DA NAÇÃO”. Pode-se argumentar – e com razão – que a mensagem é tão estúpida que não merece comentário. Parafraseando a passagem bíblica, estúpidos e cretinos, sempre os tereis convosco.

         Mas vejamos isso: “Nas duas horas e meia de percurso entre Davos e Zurique, sem internet para ver mais flashes, decretei que não era no Brasil. Só podia ser mais uma tragédia africana ou asiática”. Não se trata de mais um comentário inconsequente de um dos  “desmiolado” da net; trata-se de um fragmento do artigo “Dor Definitiva”, do respeitado jornalista Clóvis Rossi, publicado na Folha do dia 29/01.  Da tragédia, podem-se tirar muitas lições. A mais triste delas é a seguinte: na alegria e na dor, o preconceito acaba se manifestando até onde menos se espera.