O
senhor Joaquim Maria Machado de Assis nos apresenta Miss Dollar e Quincas
Borba. Este é belo, malhado, negro - amado órfão de um filósofo homônimo. Ela é
uma violeta graciosa, rosa mimosa, enfim, uma miss - olhos castanhos e
aveludados. Já Graciliano Ramos, desencantado com a humanidade, nos traz um ser
diferente dos meninos de vidas secas, que nem nome têm - são apenas ‘o mais
novo’ e ‘o mais velho’, ambos desgraçados, humilhados e destroçados, também sem
sonho, entregues que estão ao destino
No
início de seus Contos Fluminenses, Machado faz suspense. Diz que se o leitor é
dado ao gênio melancólico, pode imaginar que a sua miss é uma inglesa sem carne
e sem sangue, de olhos azuis, tranças louras, que sabe poetas de cor e
salteado. Por outro lado, se o leitor não é chegado a tais devaneios, a
personagem em questão pode ser uma americana robusta, sangue na face, olhos
vivos e ardentes, mulher fecunda e ignorante, amiga de copo e mesa, mas que não
compreende a beleza da literatura e prefere comer muito a se ver com leituras.
Na
verdade, devaneios à parte, tanto os dois personagens de Machado como o de
Graciliano Ramos (Baleia) são nada mais nada menos que cães. Cães amáveis por
sinal, transformados em gente, talvez até com mais amor, sentimentos e paixão
que o próprio homem – o homem que é reduzido a objeto de si mesmo
(coisificação, reificação). “Cheio de profundo desgosto pelos homens, achou que
era de boa guerra adorar os cães [...] No espírito dele, o cão pesava tanto
como o amor, segundo uma expressão célebre: tirai do mundo o cão, e o mundo
será um ermo...”
Se
na publicidade os cães aparecem num significativo número de peças e filmes, na
literatura há também presença marcante de cachorros nas tramas, enredos e
títulos. O baiano Antônio Torres, por exemplo, tem romances intitulados Um cão
uivando para a lua e O cachorro e o lobo – embora o cachorro aí tenha uma
conotação metafórica para definir o narrador-personagem, em sentido alegórico,
figurado. O cachorro é o filho sumido, que depois de 20 anos, volta para rever
o pai (o lobo).
A
morte de uma cadela foi o mote d’O auto da compadecida, do mestre paraibano
Ariano Suassuna. Na definição de auto, no Aurélio, o próprio espelho da peça:
“3. composição dramática originária da Idade Média, com personagens geralmente
alegóricas, e que se caracteriza pela simplicidade da construção e
caracterizações exacerbadas, podendo, também, comportar elementos cômicos e
jocosos”.
Em O
melhor amigo, de Fernando Sabino, uma criança acha um cão na rua e o toma pra
si, mas logo se depara com a rejeição da mãe, que não quer saber de animal em
casa. “Vamos, leve esse cachorro embora”, ela ordenou. Depois de choramingar, o
menino saiu para dar um destino ao cão.
Meia hora depois, ele volta, radiante. “Pronto, mãe”, disse, mostrando
uma nota de vinte e uma de dez. Vendeu o ‘melhor amigo’ por trinta dinheiros. E
ainda pensou: “Eu devia ter pedido cinqüenta, tenho certeza de que ele
dava”.
Tão
ou mais irônico que Sabino, Stanislaw Ponte Preta descreve o seu cão na
divertida crônica Prova falsa: “Era um chato, desses cachorrinhos de raça,
cheios de nhém-nhém-nhém, que comem comidinha especial, precisam de muitos
cuidados, enfim, um chato de galocha. Vivia de rabo abanando para todo mundo,
mas, quando eu entrava na casa, vinha logo com aquele latido fininho e
antipático de cachorro de francesa. Num rápido balanço: o cão comeu oito meias
suas, roeu a manga de um paletó, rasgara diversos livros, não podia ver um pé
de sapato que arrastava...”
Em
dois autores paranaenses, Dalton Trevisan e Domingos Pellegrini, os cães
figuram envoltos em ternura e crueldade. Trevisan, que tem contos dramáticos e
sombrios, surpreende com a cadela Fifi – que é personagem de duas histórias:
ora ela recebe ternura, ora é vítima de crueldade. Em Pellegrini, o cão é
atropelado na estrada, depois é sacrificado com dois tiros de revólver: “O
homem arrasta o filhote pela pata até um pé de erva-cidreira. Afasta e, de
costas, tapa a visão do menino – aí dá dois tiros”. Título do conto: Herói.
Se
em Sabino era a mãe do menino que rejeitava a idéia de o filho ter um cão, em
Corisco, (que não era o amigo de Lampião, mas uma cria do mineiro Luiz Vilela),
era o pai que “não gostava de cachorro porque cachorro é bicho velhaco, só
serve para dar amolação e pra comer a comida da gente, e enquanto ele fosse
dono da fazenda, ali nunca haveria de entrar cachorro, e se entrasse um, ele
pegava a espingarda e sapecava fogo sem um tiquinho de dó”.
O
tempo passou, o cachorro já havia morrido, a mãe do menino na vida de cozinhar,
o pai na plantação e ‘era como se Corisco nunca tivesse existido’. Numa noite
em que se descobriu que mais uma galinha tinha sido roubada na fazenda, a mãe
falou que se o cão tivesse vivo... Então, o pai disse zangado que não era para
se falar mais em cão naquela casa, ‘pois cachorro é bicho velhaco...` e foi lá
para a janela olhar o céu. O desfecho do
conto: “Mamãe me cutucou a perna e eu olhei pra ele e vi ele enxugando uma
lágrima”.
Com
tantos cães em casa e na rua, uivando para o céu e para a lua, a verdade é uma,
nua e crua: o cachorro é o melhor amigo de muitos contistas, cronistas e
romancistas. Tirai do mundo o cão, e o mundo será um ermo. É mesmo: eles são
heróis poéticos, agentes da vida e da morte sofrida. Ladram para o azar e
farejam a sorte, são ‘bons moços’, uivam para o céu, ‘gente’ de carne e osso.
De osso e papel.
Texto
publicado no Correio Braziliense, em 21.03.2003, e no Jornal Rascunho, em junho
de 2003.