sábado, 14 de setembro de 2013

Cineas Santos - Viagem à poesia via cordel



Eu teria uns seis anos de idade quando a poesia pousou no meu terreiro. É escusado dizer que eu não sabia que  “aquilo”era poesia, mas depois de ouvir a tia Odete cantar (isso mesmo) a história de uma onça, impiedosamente caçada nas caatingas do nordeste, afirmei emocionado: quando crescer, quero fazer isso. Desasnado por dona Purcina, aos 8 anos, eu já estava acompanhando as peripécias do valente Zé Garcia no folheto de João Melquídeas. Como, em matéria de livros, só dispúnhamos dos folhetos de cordel, li todos os que me caíram às mãos. Aos doze anos, instigado pelo irmão mais velho, resolvi escrever um folheto de sacanagem denominado “O namoro de hoje em dia”. Uma obra a quatro mãos: ele entrava com o conteúdo, cabendo a mim cuidar da forma. O folheto não chegou a ser publicado, mas me rendeu uma surra conversada. Dona Purcina não deixava para depois o que podia fazer na hora. Comecei bem a minha carreira literária...

            Na terceira série do curso ginasial, paguei o maior mico da minha vida: a professora de português me surpreendeu lendo “A chegada de Lampião no inferno”. Pegou o folheto e, depois de exibi-lo  com uma pontinha de asco, afirmou: “Custa crer que um aluno de terceira série perca tempo lendo isso. O que temos aqui? Linguagem vulgar, erros grosseiros, bobagens”. Sem hesitar, jogou o meu folheto pela janela. À época, os professores podiam tudo...

            Já em Teresina, abri o Dicionário Escolar do Silveira Bueno e me deparei com essa joia de verbete: “Literatura de  cordel - aquela de pouco ou nenhum valor literário, vendida nas feiras do nordeste”. Bem, uma coisa era a opinião de uma professorinha de São Raimundo Nonato; outra, bem diferente, a de um filólogo de nomeada. Parei com a leitura de folhetos. Parei por pouco tempo: quando li “Morte e vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. Não me contive:  isso é  um cordel áspero com rimas toantes. Bem mais tarde, li “Descoberta da Literatura”, onde o poeta, a seu jeito, confessa que descobriu a literatura lendo folhetos para os trabalhadores dos engenhos da família. Pensei comigo: se o severo e competente João pode, por que eu não poderia?

            Em 1976, publiquei, com o pseudônimo de João José Piripiri, o folheto “Vida de Nordestino” que, ainda hoje, me agrada. Em 1983, lancei “ABC da Ecologia”, tentativa de disseminar entre meus alunos noções de preservação ambiental. O folheto criou asas, voou, foi editado pelo IBAMA, pela Secretaria de Educação de Pernambuco, pela Prefeitura de Teresina. 30 anos depois de sua primeira edição, o ABC, com roupa de gala, com o selo da Editora IMEPH, está de volta ao mercado. Entre outras novidades, o livro traz verbetes com animais ameaçados de extinção.

            Acho que está mais do que na hora de agradecer à velha Odete a oportunidade que me propiciou de penetrar no mundo mágico da poesia por meio da literatura de cordel.
           

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

AULA DE ANATOMIA

A médica foi clara e objetiva ao me explicar onde ficavam o fígado e o baço. Com as pontas dos dedos pressionou o lado direito do meu abdome e falou;
-  Aqui, fígado.
Pressionou o lado esquerdo e falou de maneira tão singela e inocente que quase não resisto à tentação de lhe dar um beijo:
- Cá, baço.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Antonio Brasileiro - Teatrinho



Não quero ser Chapeuzinho Vermelho mais não.
Por que, filhinha?
Não gosto que o Lobo Mau me coma.
Mas o Caçador não vai matar o Lobo?
Vai...
E não vai tirar você e a Vovozinha da barriga do Lobo?
Não gosto.
Mas é só um teatrinho, filha.
Não.
Você decorou tão bem o seu papel.
Aninha vai.
Ah, Aninha vai então substituir você.
Mas eu vou dizer uma coisa a ela.
O que assim?
Aninha, não fale nada com o Lobo Mau, viu?
Mas ela tem que falar com o Lobo Mau. Na história verdadeira ela conversa com ele.
Mas ela não vai falar nada!
Tudo bem, tudo bem. E como é que a história vai prosseguir?
Não sei.
O Lobo Mau vai ficar lá, parecendo um pateta: “Aninha, fale, o que é que você tem?” É isso?
Mãe, você é tão engraçada.
E o que é que Aninha vai dizer?
Aninha? “Ah, seu bobão, você pensa que vou lhe dizer onde a Vovó mora?”
“Não vai não? Então eu vou lhe comer.”
Mãe não come filha.
“Eu não sou mãe. Eu sou Lobo!”
“Ai! Eu falo.”
“Muito bem. Como é seu nome, menina?”
“Chapeuzinho Vermelho.”
Está vendo? Você interpreta tão bem.
“Lobo Mau, você está querendo é me enganar.”
Eu, filha?

(Antonio Brasileiro – Do livro “O menino no guarda-roupa”)

Não confundam Antonio Brasileiro com Antonio, o Brasileiro, ou com seu xará famoso, Tom, o Jobim, também conhecido por Antonio Brasileiro. Este de que vos falo, agora, é mais competente do que os outros, embora a mídia não divulgue, porque, além de poeta, é nordestino legítimo. Quando Sarney era presidente e ia pro rádio e tevê falar "Brasileeeeiroooo!", ele levantava o braço e gritava feliz para a turma que assistia novela na Praça Senhor dos Passos: "O presidente tá falando di mim!"

Tal qual meu bróder Luís Pimentel, também nasceu num lugar que ninguém sabe onde fica, chamado de Matas do Orobó, e acabou sendo criado nas ruas de Feira de Santana. Só não sei dizer se também foi gandula do Fluminense de Feira, o famoso Touro do Sertão.

Romancista, contista, poeta, artista plástico, membro da Academia de Letras da Bahia, bom de prosa, excelente camarada, ainda encontra tempo em seus contratempos para ser professor, fodido e mal pago, como se diz no linguajar pop da gurizada de Feira de Santana e Alagoinhas.

No mais, é só gozar do prazer de seus textos. Entre numa livraria qualquer e compre um ou dois, ou três, dos seus mais de quinhentos livros. Os livros dele, apesar de não ser da linha editorial da autoajuda, também funcionam assim. Um cidadão no interior do Ceará, descrente da vida, da religião, de Padre Cícero e da política, resolveu se suicidar. Na hora de pôr a termo o gesto fatal, alguém leu pra ele este poema:

CÁLICE

A vida não tem roteiros,
só velas que nos acenam
do mar.
Escuta, amiga,
o desfiar das horas:
elas te dirão é tua
é tua a vida.
Toma-a (como se toma
um cálice de rosas)
na mão.

O suicida deu dois passos atrás e desistiu de morrer. Hoje é um dos maiores leitores do poeta desse lugar chamado Matas do Orobó.

 

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A velha Salvador do Jereré do Macedo, do Toalha da Saudade e do Zanzibar



Dessas visões que de vez em quando somos acometidos quando vemos uma pessoa e que despertam uma imagem adormecida nas lembranças:

– Já fez seu pedido, senhor? – tirou-me das divagações o garçom.
– Gostaria de lhe perguntar uma coisa: de onde lhe conheço?
– Daqui.
– Não. Algo martela meu juízo de que lhe conheço de outras eras.
– Deve ser do outro bar que trabalhei, o Ipaneminha.
– Não. Tenho certeza de que não é dos bares daqui de Maceió.
– Fora daqui de Alagoas, trabalhei em Salvador.
– Isso! – quase gritei de euforia – Trabalhou onde em Salvador?
– No Jereré de Macedo.
– Sabia!!! Eu morava no Rio Vermelho e costumava ver o sol nascer sobre as águas de Amaralina, lá do Jereré.

Nos anos 1970 e início dos anos 1980 os bares fechavam à meia-noite em Salvador. No circuito da orla, somente o Jereré (ou jererê, conforme se pronunciava na Bahia) era aberto vinte e quatro horas durante os sete dias da semana. Não era um bar muito grande. Não havia luxo, mas a cerveja era bem gelada e o tira-gosto de primeira. E os garçons eram simpáticos, como o Castor, o que acabara de encontrar em um bar perto de casa, em Maceió. O movimento maior se dava depois da meia-noite, quando os outros bares fechavam, e permanecia cheio até o sol nascer.

Na Cidade Alta havia o Zanzibar, no Garcia, perto do Campo Grande, que também funcionava a noite toda. Era um reduto gay e naquela época não havia a onda do simpatizante não. O cidadão era ou não era.

Nos Aflitos o saudoso Batatinha recebia seus amigos e clientes no Toalha da Saudade, nome de uma música sua que fez sucesso na voz de Maria Bethânia, mas só ficava aberto até o último bêbado sair. Não era confiável. Se acontecesse de meia-noite não ter ninguém, o bar era fechado.

Quando me separei, fui morar na Graça e ficou inviável frequentar o Jereré. Então descobri o caminho do Toalha. Eu e o meu compadre José Bahiana, que passou a trabalhar no mesmo turno que eu, no polo petroquímico de Camaçari. Quando a gente largava o serviço à meia-noite, eu ia para a casa dele, no Largo de Santo Antonio Além do Carmo, ele pegava o velho fusquinha e íamos diretamente nos enxugar no Toalha da Saudade.

Uma noite demos com os burros n’água. O bar estava fechado. E tínhamos saído do trabalho sentindo o gostinho da cevada. A cidade era um deserto. O Jereré havia virado depósito de material de construção. O que fazer então?

– Vamos para o Zanzibar – falei.
– Tá doido?! A bicharada vai nos massacrar!
– Não se a gente entrar de mãos dadas. Eles vão achar que somos um casal gay e não vão mexer conosco.

Assim fizemos. E sequer olharam para nós com olhares lascivos. Só o meu compadre é que não gostou quando soube que a rapaziada alegre achava ser ele o agente passivo. E nunca mais quis repetir a dose. Preferiu deixar sua geladeira sempre abastecida de cerveja para as emergências desse tipo.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Quem é seu herói de hoje?



Nós não precisamos de heróis. Precisamos, sim, de homens públicos que trabalhem para e pela coletividade.

A nossa colonização não foi lá das melhores. Nem pra se dizer “dá pro gasto” e se contentar com o pouco. Nosso primitivismo europeu não passou da escória portuguesa, ladrões, deletérios, proxenetas, vigaristas e até mesmo assassinos condenados ao degredo na colônia. A elite que veio nas esquadras colonizadoras foi a elite sanguessuga, preguiçosa, escravocrata, assentada no bem-bom do litoral brasileiro. Somente os traficantes de índios e capitães do mato adentravam o interior. Os sertões, então, nem se fala. Povoado de índios expulsos do litoral pelos tupis, somente os negros fujões e os brancos foragidos da justiça se arriscavam caatinga adentro. E os jesuítas, em busca da escravidão sem rebeldia em suas reduções catequéticas.

Já no Brasil Império, quando o brasileiro firmava o conceito de pátria em seu caráter, D. Pedro II resolveu dar ares aristocráticos ao interior brasileiro importando a elite falida e caloteira de Portugal. Se a nossa colonização já não foi lá essa Coca-Cola toda, a elitização do interior não foi nenhuma Brastemp.

Bom, como dizem que o homem é produto do meio, não podemos reclamar do nosso aleijão de caráter, em alguns mais, em outros, menos, mas sempre tendemos e torcemos pelos escrotos. É isso que acontece quando passamos a mão na cabeça dos mensaleiros, petistas ou tucanos, e votamos maciçamente em candidatos corruptos baseado no axioma da ladinice “rouba, mas faz”.

Depois de tornar Paulo Maluf o deputado mais votado do Brasil, uma amiga paulista me ligou para perguntar se a gente, os alagoanos, não tinha vergonha de eleger Collor. Um roto falando do mal vestido. Um sujo falando do mal lavado. E com a desculpa de que o errado é sempre o outro, conscientemente enchemos um dos três poderes da República de ratos.

Os pseudos justiceiros da moralidade de plantão lançaram um Batman paraguaio para Presidente da República, um cidadão com síndrome de Narciso e que, pelo que se viu na semana passada, a vaidade não o deixa olhar além do próprio umbigo. Felizmente o Coringa tirou a máscara do nosso herói e os eleitores da Gotham City descobriram que o homem-rato não passava de um reles ratinho de esgoto e que facilmente seria apanhado por qualquer gato modorrento.

Pois bem, no velho Junco, a minha terra, certo alcaide encasquetou com a profecia de Antonio Conselheiro de que o Sertão ia virar mar. Canalizou rios de dinheiro para transformar um velho açude em praia, embora grande parte da população nunca tenha visto um rio de verdade. O açude, construído pelo Governo Federal em priscas eras, perdeu sua principal função: amenizar a sede do gado em período de seca. Enquanto isso, a população se via desassistida de Saúde, Segurança e Educação, mas não reclamava porque os puxa-sacos do prefeito – e o mesmo – diziam que a praia ia ser mais frequentada do que Copacabana, com lindos bumbuns de fio dental a banhar-se em suas águas barrentas. Mas quis o destino que, antes de se concluir a grande obra, a seca assolasse os sertões e o povo descobriu que o rei estava nu quando ficou sem sua praia e o gado sem poder matar a sede. Por azar do alcaide, era ano de eleição e o povo se vingou votando no candidato da oposição, elegendo um franco-atirador de plantão, um candidato que, no início da campanha, só tinha meia dúzia de votos e ninguém dava nada por ele.

E foi esse cidadão, que começou sua campanha batendo de porta em porta montado em um jeguinho, que está revolucionando a maneira de administrar a cidade. Na semana passada ele inaugurou o primeiro hospital municipal da região, construído com recursos próprios, equipado para atendimento de urgência e emergência. Só não sei dizer de quantos leitos dispõe, se tem unidade de terapia intensiva, quantos profissionais de saúde prestam serviço e nem quanto custou.

Liguei várias vezes e em vários dias para o pessoal que poderia me dar essas informações, mas, infelizmente, ninguém atendeu as ligações. Oxalá seja apenas um defeito nas comunicações.

Mas, com obra de tamanha envergadura, quem vai querer saber de simples detalhes, né, mesmo?



quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Anita Cruz - Pequeno diálogo amoroso

- Saudades...
- Sabe por que eu estava pensando em você agora?
- Deve ser porque me ama muito!
- Porque penso em você o tempo todo. E por isso perco o rumo das coisas o tempo todo. E por isso até perco a hora das coisas o tempo todo. E por isso só não perco a cabeça porque já não a tenho mais.