sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Ignácio de Loyola Brandão - Carta a um amigo que realizou o sonho



Caro Antônio Torres. Você não imagina o que vi há poucos dias na periferia de São Paulo, em São Miguel Paulista. Ali há uma grande praça chamada Morumbizinho. Cheia de árvores. Dessas árvores pendiam cordões, e na extremidade de cada um, um livro. E na extremidade de cada livro uma pessoa. Como se fosse um fio terra. As árvores, símbolos da vida, mantinham os livros, igualmente símbolos de vida à sua maneira. Intrigou-me a cena. Inácio Neto, um dos coordenadores da Semana Literária de São Miguel explicou: pela manhã, em um ritual, os livros são pendurados nas árvores. Cedo as pessoas se juntam à espera, correm e tomam "posse" de seu livro. Às vezes, ficam ali por horas, com breves momentos de repouso, vigilantes. A certa altura, vem a liberação, cada qual puxa seu livro e parte, amanhã haverá outro ritual. E depois, e depois.

Numa semana em que tivemos imagens repulsivas, aterradoras, melancólicas, como a da criança catando latinhas num lixão fedorento ou a reportagem de total perplexidade sobre o "rei do camarote", a cena das pessoas agarradas aos livros que desciam das árvores me emocionou. Há um Brasil diferente. Há um país desconhecido e há pessoas trabalhando para mudá-lo, caríssimo Torres. Esse Brasil você conheceu em centenas de viagens. Pena que a mídia ignore a existência da Semana Literária de São Miguel Paulista. Numa região de 400 mil habitantes, acontecem centenas de encontros, palestras, oficinas, exposições, teatro, canto. São Miguel é o lado oculto da periferia, ansiosa, criativa, querendo e oferecendo coisas. A gerir isso uma organização como a Fundação Tide Setubal. Esta imagem do ritual da colheita dos livros é que deveria ser expandida pela rede social, para as primeira páginas dos jornais: os livros tirados das árvores.

Você, Torres, eleito para a Academia Brasileira de Letras com votação quase unânime, ficaria feliz ao ver o que vi. Aos 73 anos e com 18 livros publicados, você, nascido no Junco, Bahia, chegou lá. O Junco mudou de nome, agora é Sátiro Dias. A Academia era um sonho e você conseguiu. Perdeu duas vezes, foi paciente. Perder faz parte do jogo, de todos os jogos. Agora está lá ao lado de Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, João Ubaldo Ribeiro com quem viajou muito por esse Brasil, de bibocas remotas às capitais. Pena, Moacyr Scliar se foi, era de nossa geração. Estivesse vivo, João Antonio estaria feliz, ainda que, na sua encarnação limabarretiana, virasse a cara.

Falei em João Antonio porque ele, você e eu sempre fomos unidos, fizemos infindáveis viagens por este Brasil. Os três vindos de famílias humildes. Gostaria de ver João se meter em um smoking para ir à sua posse, o que é de praxe. Ou ele chegaria de chinelão à Academia e seria impedido de entrar? Fiquei feliz por você, companheiro do jornal Última Hora nos anos 60. Quantos daquela época estão vivos para comemorar?

Garotões, escondíamos nossas ambições, desejos secretos, tínhamos medo de ser ridicularizados. Por inibição, medo de sermos gozados, ficávamos em silêncio. Você foi para a publicidade, mudou-se para o Rio. Anos mais tarde, em 1972, espantei-me, quando nos encontramos no Center Três, em São Paulo, e você que me mostrou um livro, Um Cão Uivando Para a Lua. Não vi o autor, perguntei:

- É bom? Acabou de comprar?

- Não, acabei de escrever e publicar.

Surpresa, então você tinha se calado todos aqueles anos? Logo depois, nos juntaríamos a João Antonio, formando o trio que percorreu o País após a polêmica Semana Contra a Censura realizada no Teatro Casa Grande no Rio de Janeiro em 1975. Numa dessas viagens, passamos por Araraquara e meu pai te elegeu amigo. "Um grande escritor," dizia o velho Brandão. "Tem cheiro de terra." Ele prenunciava o Essa Terra, enorme sucesso? Comovido, meu pai ouviu a história de como você, dos raros alfabetizados do Junco, escrevia cartas para os que não sabiam ler nem escrever. E como lia as respostas que chegavam. "Assim ele aprendeu, assim se aprende." Meu pai, estivesse vivo, teria me ligado para comemorar a sua eleição. Você, meu amigo, tinha muita ternura por ele, assim como teve para com o próprio pai, retratado em um livro, Adeus, Velho.

Publicado em dezenas de países, agora você é acadêmico. Na cadeira de Machado de Assis e de Jorge Amado. E o que me vem neste momento é uma fala sua no encontro do Paiol Literário de Curitiba, promovido pelo jornal Rascunho: "Por que é que a gente escreve? Deve haver uma falha dentro de nós. Por que o homem cria? Primeiro, porque ele não é capaz de carregar um ser humano dentro dele. De gerar um ser humano dentro dele. As mulheres não, elas não deixam de criar por causa disso, mas acho que, no homem, há esse componente, essa diferença, essa falta. Ele não gera uma criação dentro dele, então cria outras coisas. Tem um buraco dentro dele que é preciso preencher. Tem que criar, inventar coisas e se entreter com isso. E, de outra parte, você vê o seguinte: a literatura serve muito, muito mesmo, para a gente se centrar. Enquanto você a está fazendo, está filtrando, sendo a esponja de uma atmosfera que não é necessariamente saudável. E aí é que entra o escritor como alguém incomodado, alguém desconfortável dentro do seu tempo. Todo escritor mostrou o desconforto que sente durante seu tempo. Vá ver Proust e Dostoievski, e tantos outros. Há um desconforto ali, terrível. Diante da sociedade, diante de tudo".

Publicado no ESTADÃO, em 15 de novembro de 2013.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Luís Pimentel - Monsueto



      Alma do samba e do espírito carioca, o homenageado desse crônica (faria aniversário no dia 4) é o cantor, compositor, instrumentista e “figuraça” Monsueto Campos de Menezes (1924-1973). Contam que autor dos clássicos Mora na filosofia (“Eu vou lhe dar a decisão:/Botei na balança, você não pesou/Botei na peneira, você não passou”) e A fonte secou (“Eu não sou água, para me tratares assim/Só na hora da sede é que procuras por mim”) foi procurar o humorista, comediante e escritor Chico Anysio, que sempre teve fama de não medir esforços para ajudar os amigos em dificuldades.

     – Chico, preciso de ajuda. Estou há um tempão sem gravar nem fazer shows. Numa dureza de dar dó. Veja aí o que você pode fazer por mim.

     Logo, logo Chico Anysio criou um personagem para ser interpretado por Monsueto, em seu programa humorístico de televisão. Conseguiu aprovar o personagem junto à direção da emissora e o procurou:

     – Agora é só ir lá, Negão, e negociar o salário para a gente começar a gravar.

     Monsueto ficou eufórico:

     – E quanto eu peço, Chico? Quanto eu peço de grana?

     Chico Anysio disse que não interferia nas negociações salariais entre os artistas e a Globo, que ele fosse lá e visse o quanto poderia conseguir. Imediatamente Monsueto fez uma pesquisa junto a vários colegas, ouvindo de todas a “informação” de que a TV Globo pagava rios de dinheiro. Já foi falar com o responsável pela parte financeira imbuído desse espírito, quando se deu o seguinte diálogo:

     – O senhor está pensando em pedir quanto de salário? – perguntou o executivo.

     – Oitocentos! – respondeu Monsueto, na bucha.

     Depois de folhear alguns papéis e fazer alguns cálculos, usando uma maquininha, o representante da grana e da empresa informou:

    – O máximo a que podemos chegar é a 20.

     E o grande Monsueto, sem pestanejar:

     – Topo!

     O primeiro sucesso de Monsueto como compositor foi Me deixa em paz, gravado por Linda Batista. Foi ainda ator de cinema, show-man, cômico de televisão e diretor de bateria e harmonia de várias escolas de samba. Compôs umas 150 músicas e foi gravado por grandes intérpretes da MPB. Viveu e morou na filosofia, na melhor delas.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Associação criminosa para cometer crimes, segundo os visionários novelísticos

O Ouro, a Prata, o Cobre e o Níquel se associaram ao crime organizado, sequestraram o Oxigênio e ameaçaram destruir a família Ferroso lançando bombas letais de O2. Desbaratada a quadrilha metaleira numa fantástica ação batizada de “Operação Ferrugem” pela PF, sob o comando da delegada federal Helô e investigação conduzida pelos repórteres do Fantástico, o único elemento a ser preso sem direito a sursis nem à Lei Fleury foi o famigerado Carbono, que não fazia parte do Grupo e tampouco se inseria na história. Motivo alegado para a prisão: foi o único preto que a diligente delegada encontrou na Tabela Periódica.

sábado, 12 de outubro de 2013

Cineas Santos - Das sutilezas semânticas

                                 Para o meu gosto, das árvores floríferas da Chapada do Corisco, o ipê-branco (Tabebuia roseo-alba) é  a mais nobre e  a mais bela. Infelizmente, apesar dos esforços do João Freitas Filho, ainda é inexpressiva a quantidade dessa espécie em Teresina. Como não existem árvores velhas, tudo faz crer que este variedade de ipê ainda está em fase de adaptação. Ao contrário do amarelo, perfeitamente aclimatado à aridez da Chapada, o ipê-branco tem se revelado frágil e vulnerável. No ano passado, pelos menos cinco ipês morreram sem que se saiba exatamente a causa. Dos que plantei, dois não vingaram. Um “especialista” explicou que ocorreu um “estresse climático”. Falta-me autoridade para  confirmar ou contestar.

            Este ano, para alegria dos olhos mais atentos, no final de setembro, um ipê-branco, plantado pelo Dr. Anfrísio Neto no jardim do edifício onde mora, explodiu em flores. Um dilúvio de beleza,  diria um poeta medíocre. Uma senhora que passava pelo local, não se conteve: “Meu Deus, um pé de árvore de Natal!”. Sem uma folha, o ipê vestiu-se de branco durante uns três dias. Avisado por uma amiga, fiz uma dezena de fotos e publiquei-as onde pude.

            Finda a florada, tentei falar com o jardineiro do edifício para saber como garantir alguma das preciosas sementes. Não consegui. Só me restou uma opção: “botar sentido” na árvore à espera das sementes. Por oportuno, vale lembrar: os ipês-brancos são meio sovinas. Para minha surpresa, houve também uma explosão de sementes que foram lançadas prodigamente ao vento. Munido de um saco plástico, plantei-me na calçada e comecei a garimpagem das sementes que o vento levava para longe. Em cada semente colhida, eu vislumbrava um ipê embelezando uma nesga da nossa sofrida cidade. As pessoas passavam, olhavam para se certificar e, como naquela música do Chico, uns sorrindo faziam  pouco, outros me tomavam por louco... Indiferente ao rugir dos automóveis, eu catava as sementes com uma indescritível alegria.

            Lá pelas tantas, passou um conhecido, cidadão de fino trato.  Ao me ver agachado na calçada, parou o automóvel e disparou: “Procurando o quê, professor?”.  Sementes de ipê, respondi. A resposta não lhe pareceu satisfatória: “O que o senhor vai fazer com elas?”, quis saber. Vou plantá-las. O cidadão voltou à carga: “Professor, me desculpe a curiosidade, mas o que o senhor ganha com isso?”. Resolvi bancar o sabido:  eu e a cidade ganharemos a possibilidade de fruir,anualmente, a nossa efêmera ração de beleza. O cidadão sorriu, balançou a cabeça negativamente e afirmou: “O senhor é um poeta, professor”. Levantou o vidro do carro e seguiu em frente. Sei não, mas pela forma como ele pronunciou a palavra “poeta”,  tive a impressão de que não era exatamente um elogio...



           


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Luís Pimentel - O gandula que comeu a bola



Mais de meia hora de jogo, e a bola não saíra, uma vez sequer, pela linha de fundos. Tinha escapado inúmeras vezes pelas laterais, o que já estava irritando aquele gandula que trabalhava atrás do gol. Logo naquele dia, coitado, que o irmão mais velho assistia ao jogo da geral, só para vê-lo atuar mais de perto.
Por isso o menino gritava com os atacantes que chutavam daquele lado, toda vez que a bola rondava a área:
– Chuta aqui, seu pereba! Chuta logo essa porcaria!
Esbravejava com os zagueiros quando evitavam as finalizações do adversário, e xingava o goleiro, toda vez que este fazia uma defesa:
– Bota pra escanteio! Bota pra escanteio!
           Finalmente a bola desviou em alguém e escapuliu pela linha de fundos, quase no final do primeiro tempo. O menino correu até o fosso em volta do campo, pegou a bola com as duas mãos, abraçou, alisou e rolou com ela pela grama.
O gandula estava visivelmente se exibindo para o irmão, alheio aos gritos dos torcedores, dos jogadores e até do juiz. Todos esperavam apenas que o gandula fizesse o seu trabalho, para que o jogo pudesse recomeçar.
– Devolve essa bola, moleque insolente! – berrou o dirigente do time que estava
perdendo o jogo.
– Vem até aqui pegar! – desafiou o menino, correndo de um lado para o outro com a bola debaixo do braço.
O dirigente chamou os auxiliares e os seguranças. Veio também a polícia, para engrossar a perseguição, diante dos gritos da torcida que, a essa altura, torcia pelo gandula, rindo e aplaudindo a sua aventura.
Quando se viu finalmente acuado em um canto, espremido entre o pau da bandeira e o muro do fosso de proteção, o gandula tirou um pequeno canivete do bolso e começou a cortar a bola, gomo após gomo, colocando de um em um na boca como se fossem bifes bem finos.
Mastigando, engolindo e dando boas gargalhadas diante de seus perseguidores.

Do livro de contos “O gandula que comeu a bola”, no prelo da Editora Dimensão

sábado, 5 de outubro de 2013

De baiano para acreano

- Marina Silva culpa os baianos pela não aceitação do seu partido pelo TSE?
- Por quê?
- Os ministros do Superior Tribunal Eleitoral entenderam que haveria perto de cem por cento de abstenção na Bahia nas próximas eleições.
- Não entendi...
- É que os baianos iriam ficar na Rede.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Dias de Santo Pobre e de Riqueza Explícita




“Senhor, dai-me força para mudar o que pode ser mudado,
Resignação para aceitar o que não pode ser mudado,
E sabedoria para distinguir uma coisa da outra.”
São Francisco de Assis

Hoje, o mundo cristão comemora o dia de São Francisco de Assis, o primeiro ecologista do mundo, padroeiro dos animais e do meio ambiente.

Nascido Giovanni di Pietro di Bernardone na cidade italiana de Assis, criou-se na malandragem e no mau costume da burguesia. Antes de ser tocado pela luz do Divino, tentou ser soldado, foi à guerra, lutou, matou, foi preso, depois tentou ser comerciante, desistiu, vendeu algumas mercadorias do pai a preço de banana e o dinheiro arrecadado usou na reconstrução da igreja de São Damião. Acusado pelo pai de dissipador de sua fortuna, tirou sua roupa e jogou aos pés do mesmo, renunciou à sua fortuna e saiu nu mundo afora para trabalhar de pedreiro em reconstrução das igrejas.

Em 1208, relendo os Evangelhos, renunciou a vida de devoto e abraçou a de missionário, fundando a Ordem Mendicante dos Frades Menores, os hoje Franciscanos.

A primeira Regra para a fundação de sua Ordem, chamada Regra Primitiva, pregava a pobreza absoluta dos monges e da Ordem. Deviam viver conforme viveram Jesus e seus apóstolos. Mas os construtores da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, em Salvador, Bahia, Brasil, parece-me, que eles de nada sabiam da vida de pobre do santo. Construíram uma igreja de manifesta riqueza, com suas paredes folheadas a ouro, mais para o palácio de um sultão do que para servir aos propósitos de Cristo e do seu próprio patrono, que mereceu até indicação para uma das 7 Maravilhas do Mundo. Os serviços oferecidos em nada lembram os votos de pobreza dessa Ordem. Cobram preços exorbitantes por qualquer dá cá aquela missa ou batizado. Casamento? Somente para a Real Sociedade Soteropolitana.   

Enquanto isso, o padroeiro de Salvador, o xará São Francisco Xavier, é totalmente humilhado numa capelinha espremida pela opulência de outros santos maiores nas redondezas do Terreiro de Jesus, e quase ninguém sabe onde fica.

Se você é baiano ou turista devoto de São Francisco de Assis, procure outra igreja do santo franciscano para rezar. Em Salvador existem varias, devidamente dentro dos parâmetros econômicos e sociais da Ordem Primitiva. Rezar na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco é perder tempo e jogar oração fora.

São Francisco de Assis se encontra em qualquer canto, menos naquele monumento de agressiva ostentação.