Era Maria das
Dores de batismo, porém a vida encampou Das Dores em abreviado epíteto de
padecimento. Era Maria de nascer; Das Dores do viver. Maria de chorar; Das
Dores por degradar. Maria de descrer; Das Dores por sofrer. Maria por esmola; Das
Dores por escola. Maria da abnegação, Das Dores por devoção.
Nascera na
pobreza tirana da caatinga sertaneja, sob o auspicioso canto da acauã em
agouros de boas vindas. Crescera sentindo o hálito quente da fome e do
desespero causado pela ausência do exercício dos músculos da boca quando os
dentes esbarram em um obstáculo alimentar e o estômago regurgita em festa.
Ficou órfã aos
dez anos de idade. Lembrava-se vagamente do pai. Ele não era muito de festejar
os filhos e passava a maior parte do dia fora de casa em labuta de trabalho
braçal nas empreitadas dos outros. Morrera de uma queda de cavalo quando
apartava o gado do patrão. Não havia muita gente no velório. Só o capataz e
alguns vaqueiros. E uns parentes da mãe, chorando em desespero, abraçada ao
caixão. O patrão nunca procurou a família do infausto empregado para saber se
ela necessitava de alguma providência.
Depois do enterro se mudaram para a casa da avó, na
vila do Saem, um lugarejo mais parecido com o fim do mundo do que com um
aglomerado urbano. A miséria era a mesma, porém a casa era caiada, o chão de
cimento varrido e o fogão a gás. Não havia crianças na sua idade para brincar,
só na escola, quando as das roças apareciam para a aula. Eram crianças assim
como ela: raquíticas e tristes.
Aos doze anos
um acontecimento que iria marcar toda a sua vida: a menstruação. Aconteceu
assim: estavam todos na igreja para o casamento da sua mãe com um pequeno
agricultor, também viúvo. O padre era da paróquia de Riachão, cidade vizinha,
um moço bonito e bem falante, que deixou as mocinhas do Saem com vontade de
pecar. As beatas se desmanchavam em obséquios e orações, lamentando ser um
desperdício rapaz tão garboso não estar à disposição das moças casadoiras.
Iniciada a
cerimônia, dito todos os ritos e discursos, na hora do “diga agora ou então se cale
para sempre”, o silêncio comum desse instante fora interrompido por um grito:
– Socorro,
mãe! Estou sagrando! Eu vou morrer!
Era Maria das Dores, desesperada com o sangue que
jorrava entre suas pernas. Correu e abraçou a mãe, interrompendo a cerimônia,
impregnando de sangue o vestido da noiva.
Durante anos
não se falava outra coisa no vilarejo. Ela levou uma monumental surra do
padrasto, o que serviu de motivos para outras e outras, até perder a conta e a dignidade
de uma mocinha em desabrochamento.
A sua mãe foi
morar com o marido na propriedade deste, e ela foi obrigada a ir junto. Nas
primeiras semanas não aconteceu nada, afora a surra que levou no dia do
casamento da mãe. Um mês depois veio uma notícia arrepiante: teria que deixar a
escola, por ordem do padrasto. Ele alegou que a escola era o caminho para a
perdição e que moça de família não podia se misturar com menino. Protestou
junto à mãe e por causa disso levou uma surra de relho que a deixou com o corpo
cheio de hematomas e cicatrizes.
Os meses
seguintes foram o seu inferno astral. Além de apanhar de relho por motivo
nenhum, era obrigada a dar conta das tarefas diárias e, à noite, tinha que
fazer cafuné no pestilento do padrasto, senão dormiria com fome. O carinho era
a paga da comida, o objeto de barganha para forrar o estômago. Era o assédio
moral escancarado em seu lado mais cruel, contando com a cumplicidade de sua
mãe.
Um dia soube
que o filho de uma amiga da mãe estava em idade de casar e ela, furtivamente,
lhe escreveu um bilhete propondo casamento. Não sabia o que significava
casamento, mas era a sua tábua da salvação. Também não conhecia o futuro
consorte, o que só veio acontecer no dia em que ele esteve em sua casa para
conversar com sua mãe.
Casamento
aceito, marcado, vieram as ameaças veladas do seu padrasto em cometer
assassinato na igreja caso ela não desistisse do intento. Morreriam ela e o
noivo. Que se cuidasse. No dia da cerimônia sua alegria só não foi maior do que
seu medo por que o casamento lhe era uma incógnita. Mesmo assim disfarçou sua
aflição e o seu olhar se dividia entre o padre e as atitudes do seu padrasto,
que, no último momento, resolvera lhe deixar em paz e seguir o seu novo rumo.
A noite de
núpcias não foi bem uma noite de núpcias. Foi uma noite de terror. Seu marido,
com hálito quente de cachaça, insistia para ela abrir as pernas e se deixar
penetrar por um membro duro e viril. Ora, aquilo era o cúmulo da profanação.
Seu sexo era sagrado e ser nenhum a penetraria, mesmo sendo marido. Então
casamento era aquilo?
No dia
seguinte ele saiu de casa e a amarrou em um esteio. Era a vingança pela noite
frustrante. Ela não entendia tanta raiva e os impropérios proferidos. Ninguém
havia lhe dito que seria obrigada a fazer sexo, cujo nome e proceder
desconhecia. De vez em quando via os animais fazendo aquilo, mas achava que era
coisa somente dos animais, que não temiam a Deus.
Quando ele
chegou, na boquinha da noite, desamarrou-a, deu-lhe água e a mandou preparar a
janta. Ela foi com o coração na mão, tropeçando pelos cantos, de cansaço e de
letargia espiritual. Sentiu uma tontura provocada pela imobilidade das amarras.
Na cama, nova
investida, nova luta, nova recusa. Mais um dia amarrada ao esteio central da
casa. Era uma verdadeira tortura. No quinto dia suas forças lhe faltaram e ele
a amarrou na cama e a penetrou com violência, arrancando um lancinante grito de
dor e de vergonha. Era o suprassumo da humilhação, a dor moral muito mais doída
do que a dor física. O hímen rompido não jorrava sangue de seus vasos
sanguíneos interrompidos, mas um fluido ectoplásmico, materializando o seu
espírito covardemente violentado.
Passou a noite
encolhida na cama, soluçando de vergonha e de dor. Ele dormia com a felicidade
estampada na cara, roncando feito porco no chiqueiro, com a consciência
enterrada na lama. Quando o dia amanheceu, ele amarrou-a novamente na cama e
mais uma sessão de estupro aconteceu. De nada adiantou implorar piedade e pedir
misericórdia. O instinto animal falava mais alto. Ela desconjurou o dia que
nasceu e amaldiçoou o marido pela humilhação daquele momento. Olhou para uma
fenda no telhado, olhos aterrorizados, vendo uma réstia de luz da manhã clarear
o quarto.
Pela primeira
vez, desde o casamento, passou o dia desamarrada, zanzando de um lado para
outro, sentindo o peso da vergonha e do rebaixamento moral. Ele só voltaria à
noite, como das outras vezes. Escondeu-se em um quartinho de guardar
ferramentas para poder chorar sua desdita. Horas depois se acalmou, enxugou as
lágrimas, e divisou uma caixa ainda lacrada de formicida. Uma idéia macabra se
formou em sua mente. Foi à cozinha, pegou o açucareiro, jogou metade do açúcar
fora e completou com o veneno. Misturou bem e colocou na mesa, ao lado do bule
de café. Ele costumava tomar várias xícaras de café, antes de ir para a cama, e
essa noite não haveria de ser diferente. Se fosse, haveria o dia seguinte. E
nada melhor do que um dia seguinte com uma noite no meio.
Depois de
ouvir o réquiem encomendando a alma para a eternidade e abraçar um rosário de
pessoas lamentando o suicídio, fez questão de ser a primeira a jogar a pá de
terra sobre o caixão. Após certificar-se de que ele estava bem enterrado, virou
as costas para o túmulo e dirigiu-se à saída do cemitério. Pela primeira vez na
vida o seu rosto se expandiu em um largo sorriso de gosto e satisfação e sonhou
com um possível mundo feito especialmente para as Marias das Graças, dos Risos
e dos Prazeres.