Onde eu nasci, a Gramática desfilava no lombo de jegue. Eram meus
bisavós que vieram importados de Portugal pelo Imperador Pedro II para
elitizar o sertão. A elite falida portuguesa que tinha o sertão
nordestino como opção para não apodrecer nas masmorras del-rey. Não
trouxeram mulheres e, aqui chegando, se acasalaram com as índias, todas
elas por livre e espontânea vontade do invasor.
Em tempos que não
havia anticoncepcional, camisa de vênus e a Igreja não concebia o sexo
com as índias um pecado carnal, a prole se tornou grande. Tão grande que
faltou índia para os herdeiros e o cruzamento passou a ser entre
primos, tios e sobrinhos.
Assim, se é que veio alguma gramática
normativa com os aborígenes, essa perdeu-se no meio da caatinga onde
brancos e índios conjugavam o Verbo Amar.
A comunidade cresceu.
Virou arraial. Depois distrito. Abriram-se estradas e o povo descobriu
outro povo além do horizonte. Um povo que lia livros, lia histórias, e
mandava seus filhos para a escola. Sabia fazer conta de somar e dividir
sem precisar usar pedrinhas ou os dedos. Seriam eles uns alienígenas?
Depois dessa descoberta a cidade nunca mais foi a mesma. Os filhos
questionavam os pais, que questionavam o prefeito, que questionava a
mulher e, esta, muito católica e devota de Nossa Senhora, perguntava ao
padre, que ia lá de mês em mês rezar uma missa e extorquir os dízimos.
“O que somos? de onde viemos? Para onde Vamos? E o padre respondia: “Há
mais mistério entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”. E
todos se ajoelhavam e diziam “amém!” Em seguida faziam fila para dar
dinheiro ao padre e depois beijar suas mãos sagradas.
O meu avô,
cujo pai exibia sua gramática normatiza num lombo de um jegue, era o
chefe político do lugar e ficou matutando como resolver aquele dilema.
Pensou dois anos e três meses e finalmente estalou uma ideia nos miolos:
“Vou contratar um professor!”
Contratou um professor chamado
Laudelino Mendonça, que ficou conhecido como “Professor Lau”,
especialista em Gramática e doutor em tortura por palmatória. Sentia um
prazer imenso ouvir os gritos de dor da molecada. E ai de quem
gaguejasse na hora de conjugar o verbo sofrer!
Depois chegou a
professora Tereza. Veio a Professora Serafina. Exigente feito o diabo,
mas só usava a violência da palmatória como último recurso didático. E nos colocava
pra ler. Ler, ler e ler. Aos seis anos de idade eu sabia Castro Alves
de cor e salteado. Todas as fábulas de Esopo, Andersen, Irmãos Grimm e
outros mais. Não nos ensinou Gramática normativa, mas lemos tanto que
aprendemos a pôr os pontos nos is.
No ano seguinte nos mudamos para
uma cidade maior. Estranhamento total. Parecia que o povo falava outra
língua. Fui estudar em uma escola que ficava no fundo da igreja do
bairro. Duas semanas depois a professora chamou a minha mãe para uma
conversa muito séria:
- O que foi que esse moleque andou aprontando? – não esperou nem a resposta e já me deu um cachação.
- Calma, dona Durvalice, ele não fez nada! Chamei a senhora aqui porque
seu filho está muito adiantado e vai ser transferido para outra escola.
A minha mãe me olhou penalizada, arrependida, e sussurrou
carinhosamente no meu ouvido: “Se não fez nada desta vez, mais tarde
fará. Me lembre pra descontar esse cachação”.
Fui estudar numa
escola bem maior, mais bonita, e cheia de meninas de cabelos cacheados,
arrumadinhas, e usavam perfume vagabundo. Foi amor à primeira vista.
Nessa escola aprendi que Deus era substantivo abstrato e o que vinha
depois era o verbo. Morfologia. Quem jia é sapo e a rã caminha. O que
você disse? Vou mandar um bilhete pra sua mãe! Eu disse que estou
sentindo falta do professor Lau.
Sintaticamente falando, eu era um
sujeito simples perdido no meio de um mundo composto de bacanas. Se
era táxi, por que não dizer “sintáxi”? Porque o nome dessa coisa é
“sintache” e vou mandar outro bilhete para a sua mãe!
Nessa época
os linguistas brasileiros ainda não eram nascidos e o que a professora
dizia era lei. Quando a gente questionava alguma coisa, ela respondia
“que era assim que estava na Gramática e vou mandar um bilhete pra sua
mãe”. Ainda bem que não mandava pro meu pai.
Fui para o ginásio
depois de passar por uma maratona de exames de admissão ao ginásio. No
primeiro ano a professora de Português nos ensinou que o melhor caminho
para se aprender o português era a leitura. Leiam! Leiam! Leiam!, dizia
um tanto alucinada. “Leiam bula de remédio, leiam carteira de cigarro,
leiam a Bíblia, leiam até o catecismo de Zéfiro!” Louca. O catecismo de
Zéfiro era um gibi de sacanagem.
No quarto ano, pegamos um professor
de Português rigoroso com a língua culta e bela, conforme Bilac. Pastor
evangélico, não admitia um mas-mas. Errar a Gramática era o pior dos
pecados. As provas que ele fazia eram sui generis. No quarto trimestre,
depois de passarmos duas semanas suando a camisa no estudo dos verbos
para fazermos a prova final, ele pegou o giz, foi ao quadro e escreveu:
“Se você vê Ednilda, diga-lhe que enviei lembranças”. Em seguida falou:
“Anotem essa oração, vão pra casa e amanhã vocês me dizem onde está o
erro”.
Décadas depois, Dom Evaristo Arns soube desse caso e criou o
movimento Tortura Nunca Mais. Escrever aqui que ninguém passou, é mera
redundância. Todo mundo em recuperação. Ninguém, em tempo algum, ouviu
alguém falar “se você vir”. E se falasse, seria chamado de burro,
ignorante, metido a falar difícil sem saber. São as armadilhas da gramática normativa que nos põem em conflito com a sociedade falante que
se acha dona dos saberes da linguagem, pois é ela quem gera e quem cria
seus próprios caminhos de comunicação.
Passado esse dia fatídico, o
professor nos deu uma semana para estudarmos todos os assuntos
ministrados por ele no nosso quase um ano de convivência. Quem perdesse,
iria fazer re-recuperação das quatro unidades. No dia aprazado,
entramos na sala com o ânimo de quem se dá ao carrasco. O professor, que
não passava de um metro e sessenta, nesse dia entrou na sala do tamanho
de Golias. Nosso olhar era de terror e medo. Ele se acomodou na sua
cadeira, nos mandou abrir o livro de leitura na página 131, e disse do
jeito especial de quem tem o poder de mandar:
- Façam uma cópia desse texto! É a prova de hoje. Se errarem uma vírgula, um ponto, uma exclamação, uma cedilha, não esperem complacência de minha parte. Não há conserto para quem erra uma cópia.