segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O RECOMEÇO

De comboio


Estacionou na margem da linha férrea, desligou o motor do carro, retirou a chave da ignição e desceu. Andou displicente até os trilhos, olhou para ambos os lados, colou o ouvido na barra de ferro e ouviu barulho de passos vindos por uma vereda entre o mato crescido ao longo dos dormentes. Levantou-se sem jeito, como se apanhado em flagrante traquinagem. Eram marisqueiros dirigindo-se à lagoa, duzentos metros adiante. Caminhavam apressados, cestos na cabeça.

– Bom dia, amigos! A que horas o trem passa por aqui?

– Bom dia! O próximo passa às dez horas, vindo de Maceió.

– Obrigado.

Dez horas. Conferiu o Rolex: os ponteiros acusavam nove e vinte. “Há tempo de sobra”, pensou. Retornou ao carro. Apanhou a agenda no porta-luvas e conferiu as anotações. Havia um lembrete em cada página e, grampeada a ela, certa quantia em dinheiro. Não podia se esquecer de nenhum detalhe. Suspirou fundo e devolveu a agenda ao seu lugar. Junto, colocou também o relógio e a carteira. Em seguida descalçou os sapatos e as meias, colocando-os no piso do carona. Desceu, pegou um graveto e esvaziou os pneus traseiros do carro. Travou as portas, sentou-se na capota do motor e aguardou.

Era uma manhã quente de Primavera e havia um estranho silêncio no ar, quebrado apenas por vozes ao longe, dos pescadores na lagoa. Maldisse-se por não ter estacionado à sombra de uma árvore. Calculava faltar ainda uns quinze minutos e, sob aquele sol abrasador, cada segundo parecia uma eternidade. A camisa estava encharcada de suor e a cabeça fervia ao léu. Será que o Tempo havia parado?

Lembrou-se do dia anterior e da discussão que tivera em casa. Era a primeira após dez anos de casado. Temia ser apenas o início de uma lengalenga irritante e despropositada. Tudo vai bem quando se está bem. Um passo errado na vida é o suficiente para fazer desmoronar os castelos dos sonhos. Fogem os amigos, os parentes somem e dissolve-se a família como bolha de sabão. De herói, passa-se a vilão.

A vida é um jogo e ele foi imprudente ao arriscar todas as fichas num único lance. Deu preto, 17. Perdera tudo, até mesmo a chance de reconstruir um novo império. Um recomeço, nas atuais circunstâncias, descortinava-se totalmente inviável em face do descrédito que ficara. E o principal entrave chamava-se “família”. Pelo visto, para ele não cabia a máxima “infeliz no jogo, sorte no amor”.

Recordou-se dos tempos em que era tratado com deferência pelos amigos e paparicado pela família, principalmente pelos parentes da mulher. Tardiamente constatou que o gostar é volátil e o afeto é efêmero. O vil metal é que é a mola propulsora dos chamados sentimentos nobres, a essência sedutora do amor, o agente aglutinante da instituição família. Tudo por dinheiro. Velhacos!


Sentiu uma doce e estranha saudade dos seus tempos de menino, livre do peso das responsabilidades e das constatações doridas. Parava naquele mesmo lugar, à espera do trem para pegar um bigú até o centro da cidade. Era perto, podia pagar a passagem, mas o gostoso era a aventura de enganar o picotador, um homem bruto e cruel. Ameaçava atirar fora do trem em velocidade aquele que se recusasse a pagar pelo transporte. Uma vez deu um vacilo, entrou num vagão cujos bilhetes ainda não tinham sidos picotados. Nesse dia ficara sem o sorvete extra.

Depois de tantos anos, será que ainda conseguiria pegar um bigú? Acertaria o vagão já conferido pelo picotador? E até onde iriam os trens de hoje? Não importava. Nas atuais circunstâncias, o que menos queria saber era em qual lugar iria parar. Quanto mais longe fosse o fim de linha, melhor seria. Planejara o seu recomeço de forma inédita e radical, sem lenço, sem documento, sem dinheiro no bolso ou parentes importantes.

Seus pensamentos foram interrompidos pelo apito longo e rouco do trem. Parecia um angustioso lamento. Aproximava-se em velocidade acima da praticada em seus tempos de garoto, estremecendo o entorno da linha. Temeu não conseguir seu intento. Lembrou-se que, no antigamente, pegava bigú indo para o Centro, e os comboios passavam diminuindo a velocidade. Aquele fazia o sentido inverso, acelerando. Se não errara nos cálculos, a locomotiva puxava sete vagões.

Desceu do capô, flexionou o corpo em posição de corrida, e aguardou. Viu passar a locomotiva. O maquinista acenou com a cabeça e apitou em saudação. Adivinhara suas intenções? Passou o primeiro vagão rangendo suas rodas metálicas no ferro dos trilhos. Balançava como barco à deriva. Divisou o picotador discutindo com alguém no terceiro vagão. Estava de costa para os fundos, sinal de que começara pelo último. Os outros estavam livres. Recuou uns metros. Fez o sinal da cruz, respirou fundo e correu em direção ao quarto vagão, precipitando-se, de mergulho, entre as rodas limadas do quinto e demais comboios.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

OS PLAGIADORES NOSSOS DE CADA DIA


O leitor eventual ou contumaz dos sites literários que proliferam Internet afora, e que com eles não mantém nenhum vínculo ou cumplicidade literária, sequer imagina que, por trás da frieza translúcida do monitor de vídeo, existe um mundo à parte, cheio de intrigas, fofocas, vaidades, amor, traição, ódio, e que muitos casamentos podem ser feitos ou desfeitos na mesma velocidade em que o raciocínio acompanha as letras opacas dos textos. Amizades se constroem e amigos se destroem no mais leve toque de tecla nos chamados e-groups e sites literários, muito mais rápido do que no acionamento da tecla “delete”.

Para alguns desses escritores de sites e e-groups, a maior invenção do mundo foram os atalhos de teclado “control+c” e “control+v”. Copiar e colar. Copia-se de tudo. Cola-se tudo, sem o menor pudor e escrúpulo. Há até comentário copiado e colado em autores diversos sem que o colador sinta o menor constrangimento em ser flagrado em sua deslealdade ponderativa.

Que se esperar de um autor incapaz de rabiscar umas linhas em atenção a um texto e que usa comentário padrão na visita aos seus pares? Um escritor inapto na leitura, inapto no escrever um comentário, deve ser também incapaz de produzir seus próprios textos. Usa deliberadamente o “copiar-colar”, troca algumas palavras, inverte a posição de outras, assina embaixo e se diz dono da criação alheia.

Uma vez recebi um comunicado de um site que um determinado texto meu estava concorrendo a um prêmio. Fiz uma visita para conferir e constatei que o segundo colocado era um plágio grosseiro de um causo contado no livro “Alexandre e Outros Heróis”. Imediatamente denunciei o meliante aos responsáveis e descobri que eles também eram um bando de copiadores.

O plágio é um furto de propriedade intelectual devidamente qualificado no Código Civil. Uma imoralidade criminosa, embora muita gente famosa ande plagiando a torto e a direito. Pantaleão, personagem criado por Chico Anísio nos anos 70 para o programa Chico City, foi um plágio de “Alexandre e Outros Heróis”, do mestre Graciliano Ramos. Roberto Carlos foi condenado por plágio em dois processos. W. Bush, o filho, plagiou os grandes conquistadores.

Gêmeos não são cópia nem clone. Lula garante que não é cópia de FHC e nos últimos dias esperneia para provar que não é plágio de Fernandinho da Casa da Dinda, o ex-marido da Rosane; esta, um plágio defeituoso da boneca Barbie. O PFL, agora DEM, plagia o PT de antigamente que plagia o PSDB. Zé Dirceu tinha convicção de que era Mussolini.

Fernando Henrique Cardoso plagiou John Lennon na hora de passar a faixa presidencial:

- O sonho acabou! – sussurrou ao ouvido de Lula. Ninguém até hoje sabe se ele se referia à globalização do seu governo ou ao fim do encantamento utópico na era PT.

Já Enéas era um plágio mal feito de Monga, a mulher-macaco.

ACM era um plagiador insatisfeito. Um dia, acordou de mau humor e se achou o próprio Diabo. Depois de reinar por muitos anos segurando o tridente, descobriu que o Diabo não tinha esses poderes todos. Reuniu seus secretários de Estado, os puxa-sacos e cabos eleitorais, e anunciou em rede local de rádio, jornal e televisão:

- Agora sou Deus! – e a Rede Globo acreditou.

Maiakovski saiu do seu túmulo para plagiar um brasileiro, embora sequer tivesse escrito o tal plágio. Creditava-se a ele o poema “No caminho com Maiakovski”, do poeta fluminense Eduardo Alves da Costa, que, por muitos anos, algumas estrofes foram o mote revolucionário da nossa Esquerda.

Certa vez a minha amiga Maria Helena Bandeira, cuja filha é militante dos movimentos de proteção aos animais, me enviou um texto querendo ajuda para descobrir o autor, pois sua filha queria usá-lo em seu blog. Por coincidência, era um texto de minha autoria, escrito para um site especializado na questão felina, e tinha como título “Porque não devemos atirar o pau no gato”. Apesar de, no site, estar devidamente identificado, o texto rolava mundo afora sem nenhuma autoria.

Como se vê (ou se lê), original mesmo só o Homem de Neanderthal.

Mas voltemos aos sites, onde a generosidade dos deuses da Literatura nos brinda com seus escritos sem cobrar cachê ou direitos autorais. Mas devo alertá-lo, caro leitor, que enquanto você está lendo este texto, centenas de outros estão sendo plagiados por pessoas inescrupulosas, parasitas intelectuais que se nutrem da criação alheia. É bem capaz de que, mesmo antes de você chegar ao parágrafo final, este texto já tenha sido plagiado por umas dez pessoas.

Conheço várias mentes profícuas que despejam toneladas de poesias diariamente nos sites e grupos literários que pululam neste vasto mundo virtual, como se não fizessem mais nada na vida a não ser comer, beber e respirar poesia. Ante a constatação de que os grandes poetas levavam anos para escrever um livro, começo a achar que havia alguma coisa errada com eles. João Cabral de Melo Neto levou aproximadamente três anos para escrever Morte e Vida Severina. Igual tempo gastou Nietzsche em “Assim Falou Zaratustra”.

Castro Alves, o Príncipe dos Poetas, em toda sua vida escreveu apenas um livro. Como ele, centenas de outros bons autores. Então, de onde vem toda essa proficiência intelectual dos nossos poetas das mil e uma obras diárias? Não sei. Se não copiam ou se copiam, acharam a pedra filosofal das Letras. Tudo que toca, vira literatura.

Ou então, nossos grandes escritores não eram tão grandes assim.


domingo, 4 de outubro de 2009

Eu quero te namorar!



Por Leila Barros



Eu quero te namorar!

Como adolescente, quero ficar, fazer rolo e sentir teu abraço e teu amasso.

Quero esperar teu telefonema à noite e rir, escutar tua risada e ter sonhos azuis.

Desejo desejar, sentir paixão e sentir calma, ficar confusa e me sentir uma pluma.

Quero namorar sem pressa, vendo filmes e comendo pipoca.

Anseio ser chamada de namorada, de amada e ver o contorno de seu sorriso quando fala marotamente assim.

Quero velejar nos sentimentos, andar no parque de diversões, comer algodão doce e te esperar descer da roda-gigante...

Quero namoro e amizade, quero tudo e maçã-do-amor na praça do interior.

Quero te namorar sem que eu mesma saiba e sem ausências e nem cercados.

Desejo a tua presença e também a tua ausência segura, como uma pétala invisível guardada no livro de poemas...

Quero comer milho cozido e cachorro quente no meio da rua e rir quando nos olharem como dois insanos.

Desejo tomar chuva e caminhar na areia morna, ver vários tipos de pôr-de-sol e ver a lua roída aparecendo de mansinho.

Quero ficar meio sóbria e meio serotonina, mas sempre com pelo menos um pé no chão, aquele pé de valsa.

Quero tuas poesias e os meus textos, quero as descobertas infinitas e rotineiras, quero a chama e o luar inteiro.

Ah! Como eu quero te namorar!




PIRATARIA DE PSEUDÔNIMO


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Passeando por alguns sítios de literatura dei de cara com uma inusitada pergunta de um cidadão: ele queria saber dos internautas se havia algum tipo de proibição para pirataria de pseudônimo. Colocava-se ele na condição de usurpado, pois aparecera outro autor assinando com igual onomatópose naquele site.
Existem as leis de direito de propriedade, a tal patente, e as leis de direito intelectual, ou direitos autorais. Em que lei se enquadra o pseudônimo? No Capítulo II, Art. 19, Dos Direitos à Personalidade, do nosso Código Civil, lógico. Sendo uma designação patronímica, personalista, toda e qualquer pessoa tem o direito irrenunciável de usar o nome que lhe bem convier, independente de quantos existam por aí, desde que não se fira o direito de alguém. Ressalve-se, porém, que isso não significa que devamos nos passar por outra pessoa em proveito próprio ou com fim de prejudicar o homônimo. Neste caso, o Código Civil explicita em seu Art. 12. “Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.”
Não confundamos, também, alônimos com “marca registrada”. Isso só vale para brecar a concorrência, espionagem ou fraude comercial ou industrial. A Mercedes Benz pode proibir qualquer marca comercial ou industrial com esse nome, mas não pode impedir ninguém de colocar esse nome em seu filho. Ninguém pode usar o nome “Pelé” com outro fim, a não ser o de designação pessoal. Nada me impede de usar um pseudônimo “Coca-cola”, apesar de ser uma das marcas registradas mais poderosas do planeta.
Xuxa é uma marca registrada. Ela descobriu que havia uma birosca no Rio de Janeiro que se chamava “Bar do Xuxa”. Entrou na justiça querendo indenização. O tiro saiu pela culatra: perdeu a causa e ainda teve que indenizar o cidadão, que se chamava Xuxa. Neste caso, por ser um estabelecimento comercial, valeu o princípio da anterioridade.
Não sei se por cisma, sofisma ou numerologia, quando nasci, a minha mãe sentenciou com a máxima sabedoria de mãe:
– Esse menino tem a cara de Tonho de Lisboa! Vai se chamar Tonho de Lisboa!
– Esse nome não, mamãe! - protestou meu irmão mais velho. Jornalista conceituado no sul maravilha, não ficava bem ser irmão de um Tonho de Lisboa.
– Vai se chamar Ronaldo. Ele tem um ar misterioso. Além disso homenageio um amigo meu, médico lá em São Paulo.
– Mas... e a promessa que fiz pra Santotonho de Lisboa?!
– Nesse caso, bote Ronaldo Antonio, pra não contrariar o santo. E chamemo-lo de Toninho.
A minha mãe aceitou os argumentos do seu primogênito. Disse que realmente eu tinha um ar enigmático. Altivamente dissimulado, como deveria ser um “Ronaldo”, que quer dizer, “o que governa com mistério”. E assim foi feito. Cresci com esse nome e com ele escreverão meu epitáfio. Mas, apesar de devidamente registrado no livro gigante do cartório de registro civil e assinado por Maricas Coxeba, a qual deu fé, não me sinto proprietário desse nome. Já me deparei com centenas deles por aí. Gente séria, gente honesta, gente esculhambada. Velhos proxenetas. Escritores até. Ainda não soube de ninguém reclamando da coincidência nominal. Ou que tenha se sentido prejudicado.
Nossas produções intelectuais são personalíssimas e cada um tente se identificar pelo fio da escrita, preocupando-se mais com o estilo e estética literária do que com nomes e pseudônimos. Sejamos homônimos paronímicos, com vertente para a paronomásia, onde nem tudo que parece, é. Ou, como diz o ditado: parecer não é ser. Afinal, mais vale o homem pela sua arte do que pelo nome que carrega. O Tempo, senhor e dono da razão, haverá de imortalizar a obra, e não o autor.


quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Anotações sobre a crônica



Por Antônio Torres



Sua origem é antiqüíssima.


Vem de Cronos, deus da mitologia grega cujo nome significa “o Tempo”.


Daí que nos seus primórdios a crônica era uma narração de fatos históricos em ordem cronológica. Começou a desvincular-se da História com o avanço do jornal como veículo de informação e entretenimento. No seu livro Crônico – Uma aventura diária, o jornalista gaúcho Luís Peazê registra que foi o semanário inglês The Tattler (O Fofoqueiro ou O Tagarela), fundado em 1709 pelos escritores ingleses Joseph Addison e Richard Steele, o introdutor da crônica na imprensa, por publicar somente textos curtos, em artigos literários e políticos com reflexões morais. O sucesso foi tão estrondoso que os dois autores lançaram novos semanários congêneres na Inglaterra, enquanto outros países europeus aderiam à novidade. Cem anos após o lançamento do The Tattler, o Journal des Débats, de Paris, iniciaria a publicação da crônica diária em sua primeira página, abaixo de uma linha que a destacava das notícias. Peazê acrescenta que foi nesse jornal que Foucault publicou as primeiras impressões sobre a teoria que ficou conhecida como o Pêndulo de Foucault. Ele prendeu um pêndulo de 67 metros na cúpula do Panthéon, com um peso de 28 quilos, para comprovar o movimento diurno da Terra, ou seja, de que era isso que fazia o mundo girar. A crônica francesa estendeu-se além de suas fronteiras quando Emile Girardin fundou o popular La presse. E outros vieram na sua esteira. Também na Áustria e na Itália os jornais atraíram os melhores escritores para suas páginas. Então crônica e jornalismo passaram a ser indissociáveis, através dos tempos.


No Brasil, foi implantada definitivamente na imprensa carioca a partir do ano de 1850, já voltada para a descrição maliciosa da vida mundana e os fatos políticos do Rio de Janeiro. A partir da segunda metade do século 20, chegaria a se tornar o mais jornalístico dos gêneros literários e o mais literário dos gêneros jornalísticos, passando a parecer uma invenção brasileira. Mas naveguemos de volta ao seu remoto passado.


Na Idade Média era escrita em latim e dizia respeito à historiografia. E chegou ao apogeu na era dos Descobrimentos, como registro e informação das novas terras e de sua gente nelas encontradas, de que são bons exemplos as cartas de Cristóvão Colombo, Pedro Álvares Cabral e Américo Vespúcio. E também os relatos do alemão Hans Staden, dos franceses André Thevet e Jean de Léry, estes, os primeiros viajantes a descreverem a região onde hoje fica o estado do Rio de Janeiro como o paraíso terrestre habitado pelo povo expulso do Gênesis, além de relatarem as aventuras e desventuras dos europeus nessas paragens, no século 16, ou seja, ao tempo dos canibais tupinambás.


Tais descrições fizeram a Europa delirar. Como se estivesse lendo os contos mais fantásticos do mundo, desde O livro das maravilhas, de Marco Pólo.


A mais antiga crônica escrita em língua portuguesa data de 1429. Trata-se de um resumo histórico dos reis de Portugal até D. Dinis. E é exatamente nessa língua que iria se expressar um dos mais admiráveis cronistas de todos os tempos. Seu nome: Joaquim Maria Machado de Assis, o que deu à crônica um perene status literário, pelas suas notas amenas, bem humoradas, com os toques de ironia que lhe eram tão peculiares. Basta ler dele O nascimento da crônica. Ou ouvi-la em CD, na voz de Othon Bastos.


As crônicas do Novo Mundo


No ano de 1557 era publicado na Alemanha um relato que instantaneamente causou um grande estardalhaço. Título: Descrição verdadeira de um país de selvagens nus, ferozes e canibais, situado no novo mundo América, desconhecido na terra de Hessen antes e depois do nascimento de Cristo, até que há dois anos, Hans Staden de Homberg, em Hessen, por sua própria experiência, os conheceu e agora publica, aumentada e melhorada diligentemente pela segunda vez. Logo, o autor fazia na capa do livro um resumo da obra, assombrosa, para os padrões da época. Foi mesmo um assombro, comparável ao que Hans Staden presenciou ao ver o grande guerreiro Cunhambebe comandar uma batalha dos tupinambás contra os tupiniquins, concluindo que caíra nas mãos de um gênio militar. E o chamou de “chefe supremo”. Foi sua salvação. Naquele ano de 1554, o mais temido, o mais respeitado, o mais odiado dos morubixabas andava com a vaidade à flor da pele, por ter sido escolhido unanimemente para chefiar a Confederação dos Tamoios, que uniu várias tribos amigas e inimigas num só exército, de Cabo Frio a São Vicente. Por que Confederação dos Tamoios? Porque significava a união dos mais velhos da terra (tamoio quer dizer isso), que viria a dar combates sem tréguas aos invasores dos territórios indígenas, que amarelavam quando o grito de guerra de Cunhambebe fazia a terra tremer: PERÓS! Maneira de ele dizer: Ferozes. Era o que achava dos portugueses, que também chamava de traiçoeiros e covardes. Vingava-se esfregando as mãos diante de um pedaço de português pronto para ser degustado, de preferência um braço e os dedos das mãos.


Quando foi apanhado, Hans Staden lutava com os tupiniquins, aliados dos portugueses, portanto, inimigos dos tupinambás e de todos os confederados. Cunhambebe pensou que ele fosse português, o que o condenava à execução. O alemão insistia em dizer que era francês, pois sabia que os franceses eram aliados de Cunhambebe, contra os portugueses. Tenha sido pelo exercício da dúvida, ou pela lisonja, o certo é que Hans Staden escapou de ser devorado, sendo dado de presente a um cacique de uma aldeia amiga, o que não significou o fim do seu apavoramento. Ele rezava o tempo todo. Conforme narrou em seu livro, Deus ouvia suas preces e o socorria, detendo tempestades, que tanto amedrontavam os índios. Por suas graças recebidas dos céus, ia tendo o seu sacrifício protelado, ele imaginava. Acabou escapando de ser o protagonista de um ritual antropofágico, para contar a história. O episódio de seu embarque num navio francês, envolvendo artimanha, diplomacia e sangue-frio, é simplesmente eletrizante.


Mesmo sendo considerada fantasiosa demais, essa história provocou pesadelos nos seus leitores, que se viam digeridos por seres demoníacos, a lhes chuparem os ossos até os tutanos. Nas peripécias de Hans Staden não faltavam ação, suspense, perigo, exotismo, azares, golpes da sorte e... milagres! Foi, portanto, com essa infalível receita de best-seller que surgiu numa pequena cidade chamada Marpurgo a primeira edição do primeiro livro sobre o Brasil, país cuja existência, conforme se lia no próprio título, os alemães desconheciam, ainda que a cobiça por novos mundos já tivesse tomado conta da Europa, sob a capa da sedução da aventura nos mares (“nunca dantes navegados”), que levavam às riquezas desconhecidas em ilhas e terras distantes. Tal avidez havia se intensificado já nos inícios das grandes navegações, a partir de uma carta do navegante florentino Américo Vespúcio, publicado em Paris como um folheto, em fins de 1503 ou inícios de 1504. Nessa carta, endereçada ao financista de Florença Lorenzo di Pierfrancesco dei Médici, seu patrão e amigo, a quem chamava de “magnífico”, Vespúcio relatava a viagem que fizera em 1501-1502 às “novas regiões que – por mando desse sereníssimo rei de Portugal, às suas custas e com sua frota – procuramos e encontramos, às quais é lícito chamar de Novo Mundo, porque nenhuma delas era conhecida dos maiores: porque é coisa novíssima para todos que ouviram [falar] delas...” Fechemos as aspas para lembrar que ele estava a reportar-se à expedição lusitana às costas brasileiras no ano seguinte à de Pedro Álvares Cabral, numa longa jornada comandada por Gonçalo Coelho, que resultou no batismo do Cabo de São Roque, no Rio Grande do Norte, Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, Baía de Todos os Santos, Rio de Janeiro, Angra dos Reis, Santos e São Vicente, dali seguindo até a Patagônia.


O Novo Mundo descrito por Américo Vespúcio dava asas à imaginação do velho continente: era sem rei nem lei, com uma população imensa, impressionável pela sua total liberdade de costumes – social e moral -, pois desconhecia o pecado; todos viviam como saíam do ventre materno, em despudorada libidinagem, entregando-se perdidamente aos excessos amorosos; doença era raridade – e facilmente curável, com ervas; vivia-se 150 anos, caso não se morresse antes nas guerras tribais; os homens eram fisicamente perfeitos e as mulheres formosíssimas, inclusive “nas partes que honestamente não podem ser nomeadas”; além disso, os homens podiam possuir quantas mulheres desejassem; e elas, em sua luxúria que excedia a imaginação humana, inventavam artifícios que tornavam o ato do amor mais excitante. Acrescentemos a isso as referências aos rituais canibalísticos e imaginemos o impacto causado aos corações e mentes do Velho Mundo.


Lida avidamente, a carta de Vespúcio contabilizou em pouco tempo 25 edições em latim, italiano, alemão, holandês e tcheco. Esse sucesso retumbante foi esquentado por uma edição em Veneza, quando apareceu na capa, pela primeira vez, o título Novus Mundus. A sua repercussão se tornou mais espetacular ainda quando um editor de Augsburgo, em uma cartada genial, inseriu ilustrações que deram mais interesse ainda pelo documento. E depois vieram outras cartas, algumas tidas como falsas, o que pouco importava. Àquela altura Américo Vespúcio já tinha se tornado a figura mais lendária dos Descobrimentos.


Para além do alcance popular, os seus relatos viriam a ter influência na construção teórica do estado natural do homem, iniciada pelo humanismo filosófico do século 16. Foram lidos por Michel de Montaigne, Erasmo de Roterddam, Thomas Morus, Rabelais, Nicolau Maquiavel – e também por Leonardo da Vinci e Boticelli. E empanaram a aura heróica de Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral. Tanto quanto o brilho do escrivão da frota de Cabral, Pero Vaz de Caminha, autor da carta a el-rey dom Manuel, datada de 1º. de maio de 1500, que o tempo consagraria como a certidão de nascimento do Brasil, e também como uma crônica cheia de observações fabulosas sobre a terra, que lhe pareceu bela e rica, e seus habitantes, que os descreveu como se os pintasse: “A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar as vergonhas; e nisto têm tanta inocência quanto em mostrar o rosto”, Caminha escreveu, de Porto Seguro, Bahia. Com tanta agudeza de percepções, por que sua carta, e a de Cristóvão Colombo, não repercutiram tanto quanto a de Américo Vespúcio?


No caso de Colombo, presumivelmente por ele não haver localizado de forma correta as Antilhas caribenhas aonde os ventos o levaram. Situou-as no Oriente, ou seja, na cobiçada Índia, chamando os seus habitantes de índios, designação que se tornaria comum a todos os povos do continente. Mesmo tendo garantido haver entre eles homens que nasciam providos de rabo, como os macacos, a carta de Colombo não produziu uma fascinação comparável às aventuras de Marco Pólo, no século 13, nem às do seu contemporâneo Américo Vespúcio.


Quanto à carta de Caminha, passou em branco. Nem sequer foi aberta por D. Manuel I, que a largou sobre um móvel, onde não despertou a curiosidade de ninguém, durante muito tempo. Deveu-se isto à política de sigilo de Portugal, em decorrência de sua rivalidade com a Espanha, que vigiava todos os seus projetos marítimos através de um bem montado serviço de espionagem. Mas, pelo visto, Américo Vespúcio não se via obrigado a silenciar sobre suas idas e vindas pelos caminhos marítimos dos portugueses, os quais seguira menos a mando de D. Manuel I e mais a convite de um banqueiro seu compatriota chamado Bartolomeu Marchionni, que vivia em Lisboa. Personalista, sedento de fama, nada o deteria em sua busca de notoriedade. Tanto que passou por cima de Colombo, Cabral, Caminha e Gonçalo Coelho – de quem era comandado e ao qual jamais fez a menor referência –, e acabou patenteando para si próprio o que chamou de “a quarta parte do mundo”, que a partir de então, e pelos séculos afora, passaria a ser a América do Américo, apenas por ele haver escrito uma carta na qual batizou um continente, e com ela, e mais algumas outras prováveis ou improváveis, se tornou o mais lido cronista dos Descobrimentos, deixando a Europa aturdida ao ver que havia no mundo um outro rosto além do seu. Um rosto selvagem, porém belo, com uma boca que comia carne humana, para se refazer das energias despendidas nas batalhas. Pois assim vivia o velho povo do Novo Mundo: em festa ou em guerra.


Quanto a Hans Staden, que pegou o barco quando as grandes navegações já haviam avançado em mais de 40 anos, não se destinava à lenda dos navegantes epopéicos. Era um anônimo em busca de horizontes fora do limitado Velho Mundo. Entre as aventuras transatlânticas e as desventuras de um naufrágio e da vida de prisioneiro sob a ameaça de ser devorado pelos temíveis canibais, ele sentiu na pele o que os outros escritores viajantes viram apenas de passagem. Por isso Staden fez o relato mais impressionante daquela época, que teve numerosas edições em alemão, flamengo, latim, inglês e francês. Mas só apareceria em língua portuguesa no finzinho do século 19, no quarto volume da revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.


Essa volta no tempo nos levará às esquinas do Rio de Janeiro entre as últimas décadas do século 19 e as primeiras do século 20. Era ali que se postavam sumidades como José de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac e João do Rio, para observar a alma encantadora de suas ruas. Depois desses, surgiria outra geração de cronistas que fariam o gênero crescer e aparecer com uma força extraordinária. Foram eles: Rubem Braga, Fernando Sabino, Rachel de Queirós, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, Antônio Maria, José Carlos Oliveira, Carlos Heitor Cony – este ainda em ação, admiravelmente –, que por sua vez viriam a ter os seus seguidores. Alguns nomes: Luís Fernando Veríssimo, Ignácio de Loyola Brandão, João Ubaldo Ribeiro, Moacyr Scliar, Marina Colasanti, Affonso Romano de Sant’Anna, Alcione Araújo.


E estes são apenas alguns dos nomes que fizeram e fazem a crônica parecer coisa nossa, com marca de origem e carimbo de autenticidade nacional.