sábado, 14 de novembro de 2009

Berro Novo é Jessier Quirino de novo, novamente...



Por Edna Lopes







De Edna e Jessier Quirino na Bienal 2009 - Maceió - AL



A primeira vez que ouvi falar de Jessier Quirino foi no programa Manhãs Brasileiras do saudoso radialista e amigo Edécio Lopes. Aliás, não só falar dele como ouvir do próprio um pouco de sua trajetória, de seu trabalho. De um jeito muito peculiar, durante a entrevista, Jessier recitou poemas, contou saborosos causos, antecipando o show que faria à noite.

Fiquei fã de seu trabalho tão especial, pois me lembrou dos programas de rádio das manhãs e tardes sertanejas que ouvia na infância, sempre dedicados ao homem do campo, onde ouvia a música brejeira e as esquetes do “Coroné Ludugero e Otrópe”, a poesia matuta do paraibano Zé da Luz, de Patativa do Assaré e de Catulo da Paixão Cearense.

Encantava-me aquele jeito especial do dizer das coisas mais simples, dos temas tão nossos, os nascidos na roça, nos “arruados”, nas cidadezinhas tão singelas quanto desimportantes, para os muito modernos moradores desta aldeia global.

Ler e ou ouvir Jessier Quirino envolve-me num sentimento de nordestinidade, de pertencimento de um lugar muito especial. Ver e ouvir Jessier num dos seus recitais, recuperando a memória afetiva dos falares, a ingênua curiosidade, o humor maliciosamente, docemente incrustado no viver do matuto é uma experiência única porque reconheço, como se fossemos velhos amigos, cada um de seus personagens.

Não dá para não me emocionar. É meu universo de menina da roça que está lá na sua poesia, na sua prosa tão bem humorada quanto delicada e amorosa com seu povo. Em minha opinião, sua mais poética publicação, seu novo livro - BERRO NOVO - é um deleite. Já na orelha Bráulio Tavares, outro poeta ímpar, arremata: “A poesia matuta, como eu a entendo, é tão variada quanto a poesia urbana. É a mesma orquestra sinfônica, só que com outros instrumentos.”

E assim é. Nas duas últimas Bienais alagoanas do Livro (2007 e 2009) esse poeta plural lançou livro e CDs e, generosamente, brindou com parte de seus recitais seu publico cada vez mais crescente, mais consciente e orgulhoso de suas raízes, de seus sotaques e falares, de sua cultura e seu jeito de ser. Berro Novo – Poesia dita, escrita e musicada, é mais uma publicação da Editora Bagaço que traz de brinde um CD com músicas, causos e declamações. E outro brinde: as participações mais do que especiais de Dominguinhos, Josildo Sá, Maestro Spock (da Orquestra Spock Frevo) e Xangai, artistas também nordestinos da melhor estirpe.

Querendo saber mais do artista vale a pena uma visita no seu endereço eletrônico http://www.jessierquirino.com.br/ para ver os vídeos, as fotos e um “Mini currículo” do qual retiro este fragmento: “(...) Apesar de muitos considerá-lo um humorista, opta pela denominação de poeta, onde procura mostrar o bom humor e a esperteza do matuto sertanejo, sem, no entanto fugir ao lirismo poético e literário.”

Sobre Jessier, disse o poeta e ensaísta Alberto da Cunha Melo: “... talvez prevendo uma profunda transformação no mundo rural, em virtude da força homogeneizadora dos meios de comunicação e das novas tecnologias, Jessier Quirino, desde seu primeiro livro, vem fazendo uma espécie de etnografia poética dos valores, hábitos, utensílios e linguagem do agreste e do sertão nordestinos... Sua obra, não tenho dúvidas, além do valor estético cada dia mais comprovado, vai futuramente servir como documento e testemunho de um mundo já então engolido pela voragem tecnológica."

Ouso dizer que a poesia e a prosa de Jessier Quirino é, atualmente, nossa “Bandeira Nordestina” (título de um dos seus livros). Mas bandeira de quem se orgulha, de quem não nega suas origens e berra aos quatro ventos o valor da alma poética e guerreira de um povo que, mesmo vítima da ignorância e do preconceito, não se rende.




Da Série “Sobre Pessoas” inspirada na publicação do escritor também nordestino Antônio Torres.


sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Sobre Pessoas 3

(Hoje vos apresento a terceira crônica do livro "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres)


Um modo de ser campeão do mundo


De Garrincha - Sobre pessoas 3



Tudo voltou ao normal na redação da Última Hora de São Paulo, assim que, naquele ano de 1962, a sua tropa de repórteres e fotógrafos regressou do Chile, bafejada pela glória de ter sido testemunha ocular da segunda conquista brasileira em uma Copa do Mundo. Na retaguarda, ficaram os que de fato iam fazer o jornal circular, até em edições extras, que esgotavam rapidamente nas bancas. Três deles – entre os quais se incluía o autor destas linhas – ganharam um prêmio de consolação. Uma viagem ao Rio de Janeiro, aonde chegariam ao amanhecer de um dia em que as musas deviam estar despertando para inspirar poetas como Antônio Maria, o de Manhã de Carnaval e Valsa de uma cidade.

Bem, cá estava eu, crente que ia ter tempo para pegar um bronze em Copacabana. E para perder a respiração no Corcovado e no Pão de Açúcar, que só conhecia de cinema ou através dos cartões postais. Para descobrir os templos da bossa nova e do samba do morro. Para cair na gandaia. E eis que, de repente, uma notinha do Jornal dos Sports, o cor-de-rosa, fez cessar tudo que a antiga musa cantava. Não era que Mané Garrincha ia dar uma festa? E sabe onde? Em Pau Grande, lá na Raiz da Serra, em que havia nascido e ainda vivia.

Corri para a Praça da Bandeira, pois a redação da Última Hora carioca ficava naquelas bandas. E, ofegante, cheguei à sala do seu editor de Esportes, um francês gordo e afável – um modo de ser gordo é ser bonachão -, chamado Albert Laurent. Esperava que ele já soubesse que o anjo das pernas tortas, bicampeão mundial, o “Demasiado Garrincha” que tanto fascinava o mundo, a alegria do povo etc, agora ia combater à sombra, longe dos holofotes e do glamour do Rio. Não, ele, o chefe Albert, não sabia de nada. Mas tratou logo de escalar carro e fotógrafo (um outro iria participar da expedição, voluntariamente), para a cobertura do evento, no dia seguinte, um domingo.

Então nós fomos, atingindo o nosso objetivo por volta das 11 horas da manhã, quando descemos de uma Kombi na praça principal de uma vila operária, que gravitava entre um morro e uma indústria de tecidos, a América Fabril. Garrincha morava numa casinha daquela praça, igual a todas as outras. Não foi difícil descobri-la. Era a de maior entra-e-sai da vizinhança, ajudando nas providências do almoço, a ser servido num abrigo, o ponto de encontro da comunidade.

Entregue ao afã de carregar engradados de cerveja e refrigerantes, enquanto as mulheres se encarregavam de copos, pratos e talheres, de vez em quando ele embocava pela casa adentro, para dar uma olhada no leitão que estava assando em sua cozinha, e cujo cheiro sentia-se da porta. Concentrado numa lida que ia do seu espaço privado ao público, ele dava a impressão de não querer perder tempo com conversa, muito menos com quem nem estava convidado. Para todos os efeitos, o ágape fora planejado apenas para os íntimos, ou seja, os da sua tribo e ninguém mais. Apesar disso, ele não se recusou a posar para uma foto, ao lado da mulher, dona Nair, e tendo as sete filhas do casal formando uma espécie de escadinha, da mais velha à última, bem pequenininha. Claro está que bastava esta para pagar a viagem. Na manhã seguinte, tal foto dominaria a primeira página do jornal, tanto na edição de São Paulo quanto na do Rio.

Não tardou a chegar mais um carro, este do Jornal do Brasil, trazendo o Oldemário Toguinhó - um repórter que fez escola e história -, também com um fotógrafo a tiracolo. Concorrência na parada. E mais estranhos no ninho do Garrincha, que continuava de bico calado. Até ver que a mesona posta no abrigo estava totalmente preparada. Então ele olhou em volta e disse: “Chegou a hora”. Não, não era a de avançar sobre o leitão assado. Mas a de subir o morro e bater uma bola, para abrir o apetite. Lá em cima havia um campinho de futebol, onde ele fora descoberto por um olheiro do Botafogo. Era lá que Mané Garrincha ia fazer a sua primeira partida, depois da Copa do Mundo, no Chile. E no mesmo time de outros tempos - com os seus inseparáveis amigos Suíngue e Pincel -, que perdeu de 1 x 0 para o outro, de todos os outros do lugar. E este resultado virou manchete, que a UH noticiou como “furo” nacional, pois naquele tempo o JB não circulava às segundas-feiras.

E assim se conta também, e por tabela, um modo de ser repórter brasileiro.

Ele era a alegria do povo, o anjo torto, a cujos pés se curvava o mundo em duas Copas. A da Suécia, em 1958, e a do Chile, em 1962.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

HORA DA REAÇÃO


Por Cineas Santos



De Hora da reação - Cineas Santos


Dia desses, remexendo um velho baú de “inutensílios”, garimpei uma pepita rara: um CD do Dick Farney com 14 pérolas da MPB. Entre as joias, figuram: “Copacabana”, “Não tem solução”, “Marina” e “Apelo”. Não bastasse isso, Dick dialoga com Lúcio Alves na faixa “Tereza da praia”, de Jobim e Billy Blanco, coisa de tirar o fôlego. Meus três leitores sabem quem foi Dick Farney e o que representa para a música brasileira. Para os mais jovens, uma dica de Ruy Castro: "Poder-se-ia dizer que Dick Farney foi uma espécie de S. João Batista da bossa nova – seu apóstolo e anunciador, o homem que primeiro congregou os fiéis para anunciar-lhes a boa nova e, ele próprio, um pregador suave, mas eloquente”. Para usar a linguagem da galera, na década de 50, Dick Farney era “o cara”.

Feliz como um garoto que acaba de ganhar a primeira bola de futebol, pus o CD no som do carro e deixei que o velho Dick me acariciasse os tímpanos por horas a fio. Parado no semáforo, ouvia “Aconteceu um novo amor/que não podia acontecer/não era hora de amar/ agora o que vou fazer?”, quando senti um abalo sísmico. Meu carro tremia como se sacudido por um terremoto. Nonada, como diria Guimarães Rosa, era apenas uma Hilux, preta azeviche, parada ao meu lado. A caçamba da caminhonete transportava um som capaz de curar a surdez pétrea do velho Beethoven. A música, digo, a laúza era, para variar, um desses “forrós” made in Ceará. No volante daquele bólido de 160 cavalos, um potro saradão, cabelos recobertos de gel, camiseta regata e ar petulante. Por um segundo, pensei em perguntar-lhe: – Moço, meu Dick está incomodando você? Mas, em boa hora, lembrei-me de que esses bem-nascidos desconhecem o sentido da palavra limite e não têm o menor respeito por ninguém, menos ainda por velhos. Limitei-me a levantar os vidros e esperar, aflito, que o semáforo me libertasse daquela tortura. Sinal verde: o moço se foi com seu cometa ruidoso. Naquela noite, a sorte não pegara carona no meu carro. Parei no outro semáforo, Dick sussurrando: “Eu, você, nós dois/ aqui nesse terraço à beira-mar/o sol já vai caindo...”, a terra voltou a tremer, minto, a vibrar. Ao meu lado, num carro médio, duas jovens esbaldavam-se ao som, digo, ao ruído de uma banda de forró, made in Ceará... Não seria a mesma do carro do rapaz? Impossível saber: são todas tão parecidas que, no meio das “músicas”, tem sempre alguém gritando o nome da banda para que se possa distingui-la das outras...

Incomodado, me perguntei: será essa merdalhada toda apenas uma jogada comercial bolada por um "gênio" ou terá algo mais grave por trás disso? Não será parte de um processo de imbecilização posto em prática pela indústria da maldade? Como ainda não encontrei a resposta, resolvi assumir parte da culpa. Explico: alguém já lhe feriu os tímpanos com boa música? Duvido! Quem gosta de música é sovina: ouve baixinho, curte sossegadamente, não divide com ninguém a não ser com a pessoa amada... Pois proponho aqui uma reação em cadeia: vamos botar Gil, Tom, Caetano, Milton, Chico, Elis, Ney, Marisa e até o sussurrante João no volume máximo, a toda brida. Vamos incomodar, com música de qualidade, os viciados em lixo ruidoso. Uma advertência: poderemos ser presos em flagrante por grave atentado ao despudor reinante.



terça-feira, 10 de novembro de 2009

Aos Mestres Com Carinho






Dentre os motivos que se deve ir a uma bienal do livro, destaco as palestras. Mesmo as ruins, são boas.

Numa bienal do livro há palestras e oficinas para todos os gostos, credos e ideologias. Pode-se encontrar padre falando de Padim Ciço Romão Batista, o Padre Cícero de Juazeiro, ou a Maitê Proença negando sua vocação a atriz, decerto, decepcionada com sua performance no vídeo feito em Portugal e que quase gera uma crise diplomática.

Alguns palestrantes decepcionam, principalmente os de autoajuda (essas palavras compostas que perderam o hífen é um saco!), pois geralmente o ouvinte que adentra a esse tipo de palestra vai em busca de aconselhamentos para vencer na vida sem fazer muito esforço. Sai desnorteado com a enxurrada de propaganda do livro do palestrante. Quem quiser saber como ficar rico, primeiro terá que empobrecer na banca do vendedor de livro.

Os palestrantes globais são os mais concorridos. A prova disso foi o que aconteceu na palestra da Maitê Proença: o público quase põe abaixo o auditório onde ela ia conversar abobrinha com o povão. E tiveram que arranjar um espaço maior. Pra variar, ela atrasou quarenta minutos e o zé-povim não reclamou. Só o meu exército revolucionário de dois soldados e eu, perfilado no fundo do auditório, protestamos a favor da igualdade de direitos: se os outros palestrantes tinham que obedecer horário, a Maitê também tinha. Como nossas palavras de ordem passaram a ter ressonância no auditório, uma moça simpática e gentil nos arranjou onde sentar, bem à frente da mesa. E, por causa de três míseras cadeiras, deixamos calar a nossa voz. Mas a Maitê entrou em seguida, de saia justa, quebrando o protocolo, antecipando sua fala à apresentação protocolar de praxe.

Assim, reconsiderei os argumentos dos portugueses quando a chamaram de burra: ela não é burra; é grossa mesmo. Em protesto, fomos para a palestra do Salgado Maranhão (mas nós íamos de qualquer jeito. Estávamos lá só fazendo hora).

Os escritores midiáticos só perdem mesmo numa bienal nordestina para o ícone paraibano da poesia matuta Jessier Quirino. Esse é demais. Na palestra-show do mesmo havia gente vazando pelo ladrão. Em seguida à palestra, formou-se uma fila imensa no stand da Editora Bagaço para comprar (e autografar) seu livro, que vem com um cd de brinde.

Os organizadores da bienal insistem em manter palestras paralelas quando há determinadas atrações populares, como foi o caso do Jessier e da Maitê. Com gente subindo pelas paredes no auditório no dia da apresentação desses dois, sobrou espaço na sala de palestras, que, coincidentemente, eram os meus amigos Maurício Melo Júnior e Salgado Maranhão. É uma pena, pois eles foram ótimos. E no dia do Salgado Maranhão havia também outros poetas não menos competentes: Geraldo Carneiro e esposa.

A do Ignácio de Loyola foi antológica. Vinícius, meu filho de doze anos, saiu maravilhado. Se o Ignácio, que ao longo de sua vida só escreveu para adulto, consegue encantar uma criança numa palestra para gente grande, então está explicado o sucesso do seu livro infantil.



Um agradecimento. Aliás, quatro.
A Maurício Melo Júnior e aos professores Gerson Guimarães e Gorete Amorim e ao meu vizinho Ivânio Cunha por servirem de motorista por conta de minha habilitação estar vencida.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

História, o enredo gosta é de briga - Raimundo Carrero




De Chuva - A história e o enredo - Raimundo Carrero


Narrativa e conflito têm conceitos diferentes embora gerados no mesmo ventre.

Quase sempre a história é confundida com enredo. Ou sempre. Mas são manifestações artísticas bem diferentes. O escritor – iniciante ou não – deve distinguir isso muito bem, de forma a conquistar um aliado técnico, tanto na estrutura interna da intriga, quando na escolha dos capítulos, cenas e cenários. E, é claro, até mesmo nos diálogos. Sempre com muita atenção. As diversas formas de diálogo têm função e efeito.

Uma história não aprofunda os questionamentos nem tem conflitos. Lembra muito o argumento. Alguns autores chegam mesmo a chamá-la de argumento, o que quase não fazemos, porque não acreditamos neles. De cara, entramos nos textos que já queremos definitivos. Não é bem assim. Uma história ajuda a criar enredos, estes, sim, possuidores de confrontos, conflitos, questionamentos, estranhamento, cenas e cenários. Na maioria das vezes significam intriga.

Então podemos dizer, com certeza que:

a) História é uma narrativa linear, sem conflitos, ou sem aprofundamentos de conflitos e confrontos; às vezes com divergências.

b) Enredo é uma narrativa em que os personagens estão sempre em oposição, o que gera conflitos, confrontos, questionamentos.

Exemplo de história:

a) Naquela noite, Maria foi ao cinema mesmo enfrentando uma chuva forte. Podia deixar para outro dia, é claro, mas gostava do barulho da água no teto – ainda era um daqueles antigos e resistentes cinemas de bairro - e por isso saiu decidida. Além disso, sentia-se bem vestindo um pulôver, o que nem sempre fazia, porque morava numa cidade quente. Imitava as heroínas que andavam nos bairros românticos, com os braços cruzados, sonhadoras, quem sabe não surgia na esquina, na próxima esquina, o primeiro namorado? Não havia filas para a compra de ingressos e ela aproveitou para comprar batatinhas. Como estava no intervalo, escolheu, sem pressa, uma cadeira em lugar privilegiado. O ar deixava a sala ainda mais fria. Cochilando, nem percebeu quando o antigo namorada se sentou a seu lado. Tanto que gostaria de beijos e abraços, como nas outras vezes. Levantou-se e saiu. Se ele a acompanhasse, quem sabe, não é? Ainda olhou para trás e não ninguém. Só a rua quieta, solitária.

Exemplo de enredo:

b) Naquela noite, Maria teve que discutir com a mãe, a ponto de chamá-la de velhota retardada, para ir ao cinema, mas a mulher temia um resfriado ou, dramática: até mesmo uma pneumonia, e que a levaria, quem sabe, ao leito de um hospital. Tudo por causa da chuva. Não, não podia ir outro dia e era até bom ouvir o barulho da água no teto, aproveitando o cinema antigo, ultrapassado, um raro exemplo de resistência. Uma sombrinha? Uma sombrinha nada, a chuva ainda era pouca, bastava um pulôver, que era charmoso e quase nunca usava-o, por causa do calor da cidade interiorana. De braços cruzados, viu quando o primeiro namorado cruzou a esquina, talvez pudesse encontrá-lo no cinema, para aquecer um pouco a sala fria. Depois de comprar o ingresso e a batatinha, escolheu um lugar bem discreto, onde eles se sentavam nos bons tempos. Nem percebeu quando o rapaz se sentou ao seu lado. Amor, ouviu, a palavra e pensou que fosse um sonho. Mas não deixou de sentir a mão que passava sobre seu ombro. Acordou no meio da fita. Percebeu que estava sendo amada, aos beijos e abraços. Não faça isso, ela disse. Bobagem, sempre foi assim. Ela se levantou. E saiu. Em casa, reconheceu que a mãe tinha razão. Não por causa da chuva. O perigo estava nas mãos sem luvas. Bateu na porta várias vezes. A mãe não parecia disposta a abri-la. Será? Já na sala, a mãe riu e foi dormir. Incrível: cheia de rancores. Mas não deixou de acrescentar que ela devia se comportar melhor da próxima vez.

No Brasil é fácil encontra “Uma vida em segredo”, de Autran Dourado. Ou no filme de Suzana Amaral. Aliás, Autran tem muita preocupação com isso. Ele diz que enquanto o leitor está distraído com o enredo, o autor lhe bate a carteira. Pensam também na relação entre Charles e Madame Bovary – entre os dois não acontece nada, nenhum conflito Mesmo quando Emma desdenha da imagem de Charles. Entre os dois só há história. E, às vezes, nem isso.

Percebe-se, claramente, a diferença. O motivo da narrativa é o mesmo, mas a história cedeu espaço ao enredo. Quem não sabe que o enredo gosta mesmo é de briga? É preciso que apareçam os conflitos, os confrontos, a oposição entre personagens. “Um coração simples”, de Flaubert, tem história mas não tem enredo, mesmo quando Felicidade sofre uma decepção. Por quê? Porque a decepção é apenas um incidente rápido, não alcança o nível de conflito, ou de confronto, sobretudo do conflito dramático. É, quando muito, um problema – algo que perde a importância logo depois. Aparecem fatos, muitos fatos, que se sucedem e não complicam. Podemos apontar até mesmo esses incidentes, que se revelam banais na estrutura da história. Alguns deles são:

a) O esforço de Felicidade no trabalho;
b) A força de Teodoro e a tentativa de estupro;
c) A fuga de Teodoro;
d) Os filhos da dona da casa;
e) A morte do papagaio, etc.

Por isso, não raras vezes, Flaubert era acusado de ser apenas um autor da epopéia dos comuns. Basta dar uma olhada no ensaio que Henry James escreveu sobre ele. E “A morte de Ivan Illich”, de Tolstoi, é história ou enredo. História, com certeza. Porque o enredo some, restava a situação dramática do personagem. E só. Acontece o mesmo com “O Velho e o Mar”, de Hemingway. É possível dizer o mesmo de “Abril Despedaçado”, de Kadaré? A vida de Gjorg é um intenso drama cheio de conflitos mentais e reais. É brilhante a abertura do romance com o ser ou não ser, preparando a morte do inimigo. Ainda que ocorra uma aproximação com Shakeaspeare.

Não quer dizer, jamais, que uma história é menor ou superior ao enredo. Nem que o enredo é superior à história. De forma alguma. Trata-se, apenas, de uma técnica que o escritor escolhe sobretudo para se exercitar. Isso, para se exercitar. Um escritor precisa se exercitar sempre e nunca esmorecer. Devemos nos lembrar da velha frase de Flaubert, em carta a Louise Collet, depois de trabalhar muito e não conseguir os efeitos desejados: “Hoje sofri muitas decepções comigo mesmo”. Algumas pessoas deixam de escrever porque se decepcionam com o que narram. Logo perdem o ânimo. A coragem. A determinação.

Mas sem nunca esquecer: história revela-se pela linearidade; enredo só quer briga, com várias linhas narrativas, curvas, e sinuosidade.

É claro que tudo isso pode ser mudado. Pode ser alterado. Enfim, o autor tem completa liberdade para escrever a sua obra, ainda que não considere as técnicas. Sempre e sempre: a intuição está sempre em primeiro lugar, depois é que vêm as técnicas. Às vezes, a técnica intuitiva.
Cada autor com sua liberdade e sua ousadia. Mas custa estudar, custa?

sábado, 7 de novembro de 2009

Sobre Pessoas - 2



Atendendo a pedidos, adianto mais uma crônica do livro Sobre Pessoas, de Antonio Torres.

Para este fim de semana, nada melhor que esta entrevista com o imortal cineasta Glaubér Rocha.


De Sobre Pessoas 2 - Glauber Rocha

Dois encontros com Glauber

Gênio ou doido? Agora que o transformaram em personagem mitológico, recordo que o vi de perto (e por duas vezes) e ele se comportou como uma pessoa normal. Foi em São Paulo, no lançamento lá de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Ano: 1964.

Confesso, porém, que quando o ator Geraldo Del Rey me disse que Glauber Rocha havia marcado a entrevista para as 8 da manhã (e de um sábado!), achei que a sua fama de doido tinha algum fundamento. Madruguei para chegar pontualmente à casa do Geraldo, onde ele estava hospedado. Nem acreditava que Glauber, a figura mais discutida daquele momento (um crítico carioca chegara a escrever 25 dias seguidos sobre o seu filme), tão endeusado quanto detratado, e assim atingindo todas as colunas da glória, fosse receber um dos editores (o outro era o Franco Paulino) de uma revisteca chamada Finesse, que lembrava uma marca de papel higiênico. E que ainda por cima fora herdada de um colunista social falido, pelo gerente do hotel em que ele morava, como pagamento da sua hospedagem.

Uma sucessão de acasos fez com que fôssemos convocados por um repórter - de O Cruzeiro -, e poeta que admirávamos, o gaúcho de Rosário do Sul Carlos de Freitas, para tocá-la adiante. O nome da revista era ruim, ele disse, mas podíamos fazer do legado do mosquito de bunda de grã-fino uma folha de rosto da cidade. O hotel garantia os custos da gráfica, pelo direito a um anúncio permanente na quarta capa. O resto era conosco. Mas sem salário. Tudo pela arte.

Topamos.

E fizemos com que a Finesse passasse a circular no eixo boêmio entre o Teatro Oficina, de José Celso Martinez Correia, ao Arena, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri – estendendo-se um pouco mais dali até o Juão Sebastião Bar, de Paulo Cotrim, que comprava uma centena de cada edição, para oferecer a seus clientes mais ilustrados. A tiragem, porém, era modestíssima: mil exemplares. O que isso poderia interessar a um Glauber Rocha, cuja carreira subia como um rojão de São João, em todas as páginas?

Pois acredite. Glauber já estava de pé às 8 horas da manhã daquele sábado. E, pelo visto, era a única pessoa acordada naquele prédio da Rua Santo Antônio, logo ao final, à direita, do Viaduto Maria Paula, e bem próximo do Ferro´s Bar, onde Geraldo Del Rey e sua bela Tânia deviam ter varado a madrugada. Com certeza ainda estavam em sono profundo. Eles e toda a vizinhança. Sinais de gente ali só os das minhas pisadas ao deixar o elevador e me encaminhar à porta do apartamento. E os passos de Glauber Rocha atrás dela. O silêncio permitia perceber que ele rondava na sala, à espera do toque da campainha. Recebeu-me com um formal aperto de mão. E não fez qualquer menção para nos sentarmos. Vai ver uma conversa ali iria acordar os donos da casa, pensei. Então puxei do bolso duas laudas com as perguntas que pretendia lhe fazer.

- Posso deixar isto, para você responder depois? – perguntei-lhe, falando baixo. Ele tinha 25 anos, apenas um a mais do que eu. Daí não chamá-lo de senhor.

Com um gesto de assentimento, acompanhado de um “Hum-hum”, deu uma olhada rápida no questionário datilografado, colocou-o sobre um móvel ao nosso lado, logo à entrada do apartamento, e me convidou para tomar um café com pão e manteiga, no botequim da esquina. Seu mal era a fome, voltei a pensar. Se não, o que havia sido feito da voz daquele cabra que tinha fama de ser falador como o cão? Às 8 horas da manhã, Glauber Rocha não combinava com a lenda noturna a seu respeito, que circulava nos bares de São Paulo. Nem parecia o autor de um texto exuberante – Memórias de Deus e do Diabo em terras de Monte Santo e Cocorobó -, que me provocara um impacto tão forte quanto um conto de João Antônio, o Malagueta, Perus e Bacanaço, publicado na mesma revista, a Senhor, que era editada no Rio, e que todo paulistano “por dentro” lia. Hoje, traduz-se esse “por dentro” como cult, ai! Meus sais!

Mas ora! Ele ia se dar ao luxo de sentar-se diante de uma máquina de escrever para trabalhar de graça para uma revista nanica! E ainda tendo de pagar do próprio bolso o desjejum do seu entrevistador! Era pouco ou queria mais?

Sim, ia ter mais.

De pé, mal-ajambrado nas vestes matinais, a barba por fazer, o cabelo desgrenhado e o umbigo no balcão do botequim, já matando quem o matava, Glauber soltou o verbo. E disse que havia lido todo o último número da tal revistinha. Elogiou o projeto gráfico (também, era de Valdi Ercolani, um diretor de arte top – meus sais de novo! – de linha). Quanto ao conteúdo editorial, tinha críticas a fazer, com um pedido de desculpa por estar se metendo em meu trabalho. “Tenho alguma experiência em jornalismo”, ele disse, modestamente. “Editei cadernos culturais na imprensa baiana e agora colaboro regularmente com a revista Senhor, que é muito bem feita, como você deve saber”. Sim, sabia. Agradeci-lhe pelo interesse, leitura de tudo, comentários que quisesse fazer. Aí ele se sentiu à vontade para criticar os textos da revista, deixando-me embasbacado com sua capacidade de citar de memória trechos e mais trechos deles, não poupando os que considerava bobos.

- Veja se isso é lá uma boa maneira de começar uma frase: “Em sã consciência...” Você devia ter copidescado essa bobagem!

Expliquei-lhe que o autor era uma estrela da imprensa paulista, assim como os demais, todos grandes nomes do jornalismo, das letras e do teatro, que escreviam de graça. A revista era apenas uma curtição, para quem escrevia nela. Nós, os editores, Franco Paulino e eu, não nos sentíamos no direito de mexer nos textos de uma turma com tanto espírito de colaboração.

Foi aí que ele disse:

- Sendo assim, o negócio fica complicado. Mas como paulista escreve mal, hein? Você não acha?

Não. Não achava. Mas o jeito que ele falou isso foi engraçado. Encerramos o nosso café da manhã com pão e manteiga e uma boa risada. De pé. Será que ele nunca se sentava?

Na despedida, Glauber prometeu entregar a entrevista na segunda-feira seguinte, à noite, na porta do cinema, onde me enfiaria para a estréia paulistana de Deus e o Diabo na Terra do Sol.


O segundo encontro

Cheguei lá à hora combinada. E lá estava ele, de barba feita, banhado, escovado e vestido com um paletó azul. E a entrevista num bolso. Fez a entrega dela, em mãos. E me empurrou para dentro cinema.

Vi o seu filme com os pés em suspenso, sem conseguir mantê-los no chão. Grande filho da mãe. Como havia chegado a tanto, mais ou menos na minha idade? Quando os aplausos cessaram, um homem começou a discursar, com a voz inflamada, no mais altissonante estilo revolucionário. Saio. E reencontro o Glauber, andando de um lado para o outro, na ante-sala do cinema. Parece que ele nunca se cansa de ficar de pé, pensei.

Ao me ver, parou. E perguntou:

- O que você achou?

- É o seu filme definitivo.

- Não diga isso. Ainda vou fazer muitos.

Ali fora, dava para se ouvir uma nova saraivada de palmas, em meio a assovios e apupos. Glauber balançou a cabeça de um lado para outro, visivelmente contrariado. Disse:

- Estou preocupado com essa assembléia aí dentro. Pode dar encrenca com os militares.

Então me contou que, naquele ano do golpe militar, ele fora obrigado a exibir o Deus e o Diabo na Terra do Sol para um grupo de oficiais do Exército, para obter a liberação da fita. Numa fala do “capitão” Corisco, interpretada por Othon Bastos – “Homem, nessa terra, só tem validade quando pega nas armas para mudar o destino. Não é com rosário, não, Satanás! É no rifle e no punhal!” -, ele sentiu uma mão bater-lhe no ombro. Apavorado, olhou para trás. E viu um major alagoano, que lhe disse: “Pode botar esse filme nos cinemas, cabra. É um filme de macho!”

Nunca mais o vi, em pessoa. Nunca mais ele teve 25 anos e eu 24. Nunca mais foi tão fácil chegar perto de um homem tão talentoso, já a caminho de tornar-se uma celebridade internacional, com tanta atenção para um qualquer, que tomava o seu tempo a troco de nada, sem que ele se sentisse assim. Glauber Rocha me entregou, numa segunda-feira, as respostas ao questionário que lhe passei, no sábado anterior. E isso num momento em que ele estava envolvido com o lançamento do seu célebre filme, ou seja, em que estava no centro das atenções. Visto isso agora, em retrospectiva, me impressiona tanto a disposição dele em responder a todas as minhas perguntas, quanto a epígrafe que escreveu para a entrevista, que vai abaixo, do jeito que ele fez, entre parêntesis e em letras minúsculas:

(se eu morrê nasce outro,
porque ninguém nunca pode
matar são jorge, santo do
povo – capitão corisco, plano
265, seqüência 446, de um fil-
me rodado em monte santo
e cocorobó, sertão brabo)


Epílogo

A entrevista de Glauber foi endeusada e detratada, como era previsível. Um sucesso! Mas, depois da sua publicação, a revisteca iria ficar com os seus dias contados. Só teve mais uma edição, com destaque para uma reportagem de Eurico Andrade, intitulada “Chapéu de Couro, o Cangaceiro Bossa Nova”.

A última reunião com o patrocinador:

– Um leitor da revista esteve aqui e me fez muitas perguntas - disse o gerente do hotel que bancava as faturas da gráfica. – E nenhum elogio ao trabalho de vocês.

Era um coronel.

Mesmo tendo o seu nome no expediente como diretor-proprietário, aquele gerente (chamava-se Pio) nunca se metera no que estávamos fazendo ou deixando de fazer. Agora estava se metendo, de uma vez por todas. Por medo, o mais humano dos sentimentos, já o disse o sábio Millôr Fernandes.

E assunto encerrado.


A entrevista de Glauber Rocha, aos 25 anos

(Com os devidos agradecimentos ao cineasta Eduardo Escorel, que a guardou, e a Anabela Paiva, que selecionou os trechos que vão aqui, republicados por ela e Regina Zappa, na capa do Caderno B do Jornal do Brasil, em 27 de dezembro de 1997. Não menos: a Franco Paulino).


“Eu esnobo a técnica: não sei mexer em moviola, não manjo nada de som. E acho que câmera tem alma”.

Sobre Deus e o Diabo na Terra do Sol:

“Não tem nada de novo. Desde a criação do mundo que Deus anda de mãos dadas com o diabo. Apenas o velho fica sempre esquecido e por isso quando é redescoberto aparece com ar de novidade. O filme é tão novo como as baladas romanescas da Idade Média, como o Apocalipse, como a tragédia, como o latifúndio que só é novidade (mesmo) no nosso sertão”.

Técnica

“Segundo Alberto Cavalcanti, a técnica esconde o lixo. Eu esnobo a técnica. Pra seu governo, não sei pegar em fotômetro, não sei mexer em moviola, conheço mal o jogo de lentes, não manjo nada de som. Mas sei que a melhor técnica é aquela que expõe aquilo que a gente quer dizer. Assim, eu e o meu parceiro de fotografia, Waldemar Lima, estamos sempre em expectativa, observando os atores, a paisagem, a luz, buscando o clima. O clima vem quando a câmera fica mágica. Câmera tem alma. O negócio é fazer mandinga e esperar o santo descer. Aí então a gente é bem capaz de fazer um take de quatro minutos, na mão, entre luz e sombra, entre foco e fora de foco, balançando ou não. Será possível ir aos infernos de outra maneira?”

Repercussão no exterior

“Esse negócio de repercussão na Europa é conversa típica de gente subdesenvolvida e colonizada. Pra mim, fama na Europa não significa nada. É verdade, falando sério. A crítica francesa, falando bem ou mal, não muda nada. Eu não topo aqueles caras dos Cahiers - um bando de literatos, que vive na superestrutura, falando bobagem. Os italianos são melhores, mas são radicais, historicistas demais. Os ingleses são quadrados e frios. Assim, pouco me interessa o que me digam. Falaram bem de Deus e o diabo mas se tivessem falado mal eu juro que não me abalaria. A única opinião válida para mim é a da juventude e do público. A juventude gostou pra valer, e o público gostou e desgostou. Assim eu acho que vinguei 75% e isto já é muito, e isto me enche de vontade pra jogar pra frente e botar pra jambrar na próxima fita”.

O que Glauber quer?

“Fazer onda. Abrir bate-papo sobre assuntos sagrados. Demolir os figurões, os produtores boçais, os diretores comerciais, os exibidores ladrões. Discutir e achar que o cinema novo, o cinema de autor, é o que vale. Tudo o que digo pode não ter importância um mês depois, mas na hora funciona. Sempre. É por isso que eu tenho muitos inimigos. Mas tem colegas que compreendem e continuam meus amigos. Veja o (Walter Hugo) Khoury, por exemplo. É um autor, um artista sério, pesquisador, firme nos seus propósitos. Eu discordo do cinema dele, mas apenas no plano das idéias. E no fundo admiro a obsessão de um cineasta que procura um objeto difícil mas que, hoje acredito, será alcançado. Digo isso para esclarecer a quem pensa que eu combato o Khoury”.

Arte brasileira

“Não existe ainda a verdadeira arte brasileira. Estamos procurando. O Tom (Jobim) na música, o (Jorge) Mautner no romance, o (Lindolfo) Bell na poesia, o (Gianfrancesco) Guarnieri no teatro e muitos outros – todo mundo procurando, cavando a terra e a angústia, cavando a alma e o sistema social, cavando a estética e a linguagem. Todo mundo está atrás, trabalhando em várias veredas – como no sertão. Acho que a arte brasileira está nascendo desde o teatro de Anchieta – é um processo que vai levar mais 600 anos. A raça, a terra, a natureza – o nacionalismo vem desde aquele horroroso Basílio da Gama. José de Alencar, Lima Barreto, os poetas românticos, Augusto dos Anjos, Machado de Assis, Raul Pompéia, Nepomuceno, Mário de Andrade, Portinari, Volpi, Villa-Lobos, Niemeyer, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, o poeta Vinicíus, Nelson Pereira dos Santos e Zé Kéti – estão todos na jogada. É preciso ter abertura, abertura mesmo, porque todo grande artista é um revolucionário. Arte e liberdade é um corpo só, cangaceiro de duas cabeças, como dizia o capitão Cristino, vulgo Corisco”.

O sertão

“Eu sou do sertão. No sertão tem muitas veredas, como diz o mestre Guima. No sertão, afinal de contas, a gente bebe uma selvagem metafísica. Aliás, sou do sertão, modéstia à parte, como também o mestre Villa-Lobos. Esta é a mistura – o resto é coisa do cão, do demo, do sol, do amor. Está por dentro?”

Público

“O povo entende na medida do possível. Não entendo direito de público. Acho que o negócio é não ser quadrado, isto é, dar chance para todos pensarem. Ser intelectual ou não ser é besteira. Intelectual, pra mim, é um camarada que fica falando em mesa de bar e pichando todo mundo”.

Influências

“Faulkner, Buñuel, Eistein e Joyce, Graciliano Ramos e bate-papo de esquina, a Bíblia e sobretudo Villa-Lobos, Kurosawa e os westerns americanos, Rosselini e Paulo Saraceni, a Bahia e a luz atlântica, o amor, o meu poeta Vinícius, Guimarães Rosa e música do Nordeste e Carlos Drummond, São Jorge, Sebastião, Parsifal, Visconti, Romeu e Julieta, Aquiles e Salomão, Didi, Pelé e Garrincha – sem os quais é difícil fazer com classe, eficiência dramática e malícia improvisadora que destrói os esquemas e transforma a tela em projeção da vida. Eu sou produto da minha vida mesmo e da minha razão que tenta emergir do caos, caos com K, se é que o Mautner aceita”.

Resistência cultural

“Acho que o melhor negócio agora é resistência cultural. O povo precisa de resistência cultural. Muita coisa está errada, os artistas pensavam mas não estavam com o povo. Só deve existir a estrutura pessoal, libertária, rebelde, incomodativa, revolucionária e transformadora do artista falando numa linguagem tão profundamente humana que todos entendam. Se não tivermos resistência intelectual vamos cair na mais negra miséria, vamos cair no fascismo, vamos ver a democracia ser apenas um rótulo demagógico. Quando um povo começa a ser amordaçado, o artista deve abrir a boca bem alto e falar tudo, denunciar. O inimigo da política é a Arte. Você veja na Espanha, veja na Rússia, veja nos Estados Unidos. Quando os caras engrossam de um lado, os artistas engrossam do outro”.

Gênio ou doido?

“Não sou nada disso. Talvez eu seja apenas inconseqüente. Deixa a maturidade chegar para eu ver direito. O que eu acho, como diz o poeta Vinícius, meu irmão mais velho, é que quem de dentro de si não sai entra direto pelos canos. O negócio é câmara na mão e idéia na cabeça”.

Entrevistas

“A gente deve falar pouco, porém firme. Agora, se é para falar mesmo, tem que ser como mestre Villa: os violoncelos tudo doido, as trompas tudo alucinada, os tambores tudo correndo, os travelling, tudo montado sem continuidade. Geraldo Del Rey e (Antônio) Pitanga gritando, Waldemar no rodopio, o mar atlântico rebolando – de uma forma que quando a razão recusa o coração aceita e perdoa. Não é assim no amor?”



sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Leituras inesquecíveis V:

A literatura de lazer e o papel das bibliotecas em minha vida

Por Edna Lopes

De Escritor Aleilton Fonseca Visita Biblioteca Pública Antonio Torres






“Tudo é mentira. Ao mesmo tempo, tudo é verdade, tanto que após a viagem, que alguns chamam leitura, o leitor, se tiver sorte, pode ficar compreendendo um pouco melhor sua própria vida, as outras pessoas e as coisas do mundo." Ricardo Azevedo


Desde que me lembro, convivo com um problema comum, mas não muito confortável para um ser humano: a insônia. Invejo, de verdade, quem tem um sono fácil, quem mal escurece já procura um canto e dorme.

Ao final da adolescência, quando o problema se agravou, um sábio médico, ao observar o que lia, proibiu-me terminantemente de ler “coisas sérias antes de dormir" e foi aí que entraram em minha vida os ícones da chamada “Literatura cor-de-rosa”, as SABRINAS, JÚLIAS, BIANCAS e afins, como também os romances de amor de Sidney Sheldon, de Danielle Steel, de espionagem e, vez ou outra, a literatura de terror, especialmente os clássicos, Mary Shelley, Bram Stoker, Stephen King.

No universo dessa “literatura de lazer ou literatura de massa”, destaco o gênero policial, especialmente Agatha Christie, minha autora favorita. Ao final dos anos oitenta já não tinha mais paciência para a “literatura para moças” e seus personagens maravilhosos encheram minhas noites de alegria. Hercule Poirot, Miss Marple eram meus bons companheiros de aventura e eu devorei toda a estante da biblioteca do SESC de Maceió dedicada à autora.

Somos acusados, não sem razão, de sermos um país de poucos leitores. O per capita de leitura do Brasil é de, em média 4,7 livros por habitante (os dados anteriores eram de 1.8), o dos EUA fica entre 05 e 07, o da Europa entre 08 e 10 e de Cuba, 13.5. Pergunto-me se, em suas atividades cotidianas, os autores, os educadores como agentes de letramento, articulam algum tipo de estratégia para que mais crianças e jovens, mais adultos, mais comunidades tenham acesso a leitura, especialmente ao livro.

Há bons acervos literários nas escolas públicas desse país e a escola tem papel fundamental na difusão do livro. Está mais do que provado que milhões entram em contato com alguma prática de leitura através dela e não devemos negligenciar isso. Fico muito triste quando constato o desinteresse pela leitura de muitos colegas professores. Como incentivar o que não é prática em suas vidas?

Quando algum deles retruca que ganha mal, que livro é caro, eu pergunto se conhecem o acervo da escola, se frequentam bibliotecas, se acessam internet e conhecem as bibliotecas digitais. Nem preciso repetir aqui as respostas.

É bom comprar livros, mas há também boas bibliotecas públicas nesse país. Sou frequentadora, sempre que possível, dos espaços das bibliotecas especialmente, na aquisição da literatura de lazer, além da troca entre amigos e visita aos sebos. Numa revisão rápida, não consigo imaginar que, se não fosse através da escola e das bibliotecas eu teria acesso a tudo que li desde a infância até a vida adulta.

A leitura em minha vida tem um papel determinante. Seguramente não seria quem sou sem o auxílio luxuoso de cada livro que li, de cada autor ou autora com quem entrei em contato através das minhas inesquecíveis leituras.

DENTRO DO LIVRO

Tem partida,
tem viagem,
tem estrada,
tem caminho,
tem procura,
tem destino,
lá dentro do livro

Tem princesa,
tem herói,
tem fada,
tem feiticeira,
tem gigante,
tem bandido,
lá dentro do livro.

Quanto mito,
quanta lenda,
quanta saga,
quanto dito,
quanto caso,
quanto conto
lá dentro do livro.

Tem tragédia,
tem comédia,
tem teatro,
tem poesia,
tem romance,
tem suspense
lá dentro do livro.

Tem passado,
tem presente,
tem futuro,
tem moderno,
tem velho,
tem o novo
lá dentro do livro

Tem verdade,
tem mentira,
tem juízo,
tem loucura,
tem ciência,
tem bobagem
lá dentro do livro.

Tem estudo,
tem ensino,
tem lição,
tem exercício,
tem pergunta,
tem resposta
lá dentro do livro.

Quanta regra,
quanta norma,
quanta ordem,
e quanta lei,
quanta moral,
quanto exemplo
lá dentro do livro

Tem imagem,
tem pintura,
tem desenho,
tem gravura,
tem estampa,
tem figura
lá dentro do livro

Tem desejo,
tem vontade,
tem projeto,
tem trabalho,
tem fracasso,
tem sucesso
lá dentro do livro

Quanta gente,
quanto sonho,
quanta história,
quanto invento,
quanta arte,
quanta vida
há dentro de um livro.

Ricardo Azevedo, escritor e ilustrador paulista, é autor de mais cem livros para crianças e jovens.

*Parte dos dados é da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil encomendada pelo Instituto Pró-Livro ao Ibope Inteligência, em 2008.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Notícias do fim do mundo



Por Cineas Santos


De Apocalipse - Notícias do Fim do Mundo - Cineas Santos


Viver, sentenciava G. Rosa pela boca de Riobaldo, é negócio perigoso. A despeito disso, vive-se e, nalguns casos, até mais do que o desejável. Estatísticas dão conta de que 6 bilhões de seres humanos navegam nessa frágil casca de noz rumo ao desconhecido. É muita gente gastando perdulariamente o que não ganhou. Mas, segundo o sábio Patrick Geryl , essa farra desenfreada tem data marcada para terminar: 21 de dezembro de 2012. Nesse dia, céus e terra se fundirão, e o Armagedom sairá do mundo das profecias para materializar-se. Poucos, só os escolhidos, sobreviverão para contar a história. Quando tudo serenar, a Terra, ou melhor, o que restar dela respirará aliviada: estará praticamente extirpado “o câncer da natureza”: a espécie humana.

Antes dessa data fatídica, profetas, embusteiros e espertalhões faturam alto publicando livros com teses apocalípticas ou filmes aterrorizantes. Até onde se sabe, só os seres humanos são capazes da proeza de pagarem para sofrer. Quanto a mim, sem queixas ou mágoas, saio de cena como entrei: nu e desarmado.

A primeira vez que ouvi falar do fim do mundo, eu era praticamente virgem de pecados, a não ser do tal “pecado original”, que já trazemos embutido em nossas almas. Eu teria uns dez anos de idade, se tanto. Num início de noite, ouvi no rádio do padre Nestor Lima a trombeta do anjo vingador: “O mundo acabará em 1970”. A voz cavernosa do locutor invisível deixou-me petrificado. Aterrorizado, fiz as contas: a partir daquele instante, eu teria uns doze anos, no máximo, para realizar alguns desejos acalentados desde sempre: comprar uma bicicleta Monark, uma sanfona Scandalli, um relógio Lanco, um rádio Philco, uma espingarda Rossi, uma lanterna de três elementos, uma chuteira feita pelo Raimundo do Pedro e um frasco de English Lavander. Tudo isso, na verdade, tinha um único fito: conduzir-me ao coração de Cleonice, com quem eu teria de me casar. Para levantar a dinheirama necessária para comprar tudo isso, eu teria de ir a São Paulo onde, segundo atestava o baião de seu Luiz, “corria ouro pelo chão”. Fiz as contas e vi que não daria tempo. Sofri como um condenado...

Em 1970, eu já desistira da sanfona, do rádio, da espingarda, ou seja, da Cleonice... À época, meu coração bandoleiro errava por uma fulaninha, mais acesa que farol de milha... Conclusão: a despeito da ditadura que prendia, torturava e matava, nunca fomos tão felizes: “noventa milhões em ação” e a inesquecível conquista do Tri... Marcou-se uma nova data para o fim do mundo: o ano 2000. Voltei a fazer as contas e vi que já estava no lucro...

Manquitolando, cheguei até aqui. Como na canção de P. César Pinheiro & Baden Power, “Não fui feliz nem infeliz/ só fui na vida um aprendiz/daquilo que eu não quis”. Quanto ao fim do mundo, 21 de dezembro de 2012 ainda está longe... Até lá, a minha Estrela-guia certamente já me terá mostrado o portal do paraíso. Assim sendo, que venha o dilúvio!

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Sobre Pessoas - 1




Semanalmente publicarei uma crônica do livro "Sobre Pessoas", de Antonio Torres.



Por Antonio Torres


De Sobre Pessoas - Antonio Torres



Crônica 1


Para começar

(E para Ziraldo – por falar em pessoas)

Quereria um começo com a delicadeza de Fernando Sabino, em A última crônica, que cada vez que releio mais me encanta. E agora a ela retorno, em busca de ensinamentos. Algo assim como fez Henry Miller, quando decidiu tornar-se um escritor. Sem saber como começar, ele passou a andar pelas ruas de Nova York, indo parar diante da estátua de Shakespeare. Persignou-se diante dela, igual a um penitente que roga salvação para sua alma. Repetiu a peregrinação por dias e dias. Martírios do ofício, nas voltas tortuosas até se chegar à primeira frase. O que faz pensar na angústia do goleiro diante do pênalti. Ou na do seu batedor.

Foi em tais circunstâncias, a confabular consigo mesmo pelas ruas do Rio, que Fernando Sabino acabou por nos legar uma pequena obra-prima. Começa assim:

“A caminho de casa, entro num botequim da Gávea, para tomar um café junto do balcão. Na realidade, estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório, no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida”. E por aí vai ele, até sair de suas ruminações e bater os olhos num casal de negros e sua filhinha com um laço de fita na cabeça, ao fundo do boteco. Esse olhar o fez captar uma jóia de rara beleza, ainda a servir de espelho para principiantes.

Este aqui de vez em quando batia perna ao lado do mestre, nos calçadões à beira-mar, Copacabana-Ipanema-Leblon. Numa dessas vezes, ele perguntou:

- Você já leu o meu livro sobre a Zélia?

Por essa eu não esperava. Uma pedra no meio do caminho. Sinuca de bico. Cul-de-sac.

Persignando-me mentalmente diante da imagem de Nossa Senhora do Amparo, a padroeira do Junco, onde nasci, e dizendo-me “Nas horas de Deus e da Virgem Maria, amém”, criei coragem e respondi que Zélia, uma paixão era o único livro dele que eu jamais leria.

- Por quê? Por preconceito?

O papo foi longe. Voltei para casa contrariado, achando que o havia deixado com mais uma pedrinha no tênis. Sabia que, depois do linchamento que ele recebera na imprensa por causa daquele livro, passara a evitar a exposição pública, temendo ter de responder a perguntas maliciosas ou a se desvencilhar de ofensas, como a de mercenário, por tê-lo escrito apenas para faturar uma fortuna. Nada mais injusto. Fernando Sabino doara os direitos autorais do seu polêmico best-seller a uma instituição assistencial de menores carentes, sem se vangloriar disso.

Como bom mineiro, ficou em silêncio, remoendo a sua falha trágica ao declarar: “Zélia sou eu”. No calor da hora, a sua brincadeira não teve graça. Levaram-na a sério demais. Como se ele acreditasse, verdadeiramente, que a personagem que causara um terremoto na economia dos cidadãos, na era Collor, tivesse o mesmo status literário da heroína de Gustav Flaubert, Madame Bovary.

Mas por que, e para que o chatear ainda mais, quando privava de sua camaradagem, durante uma caminhada para desenferrujar as pernas, desanuviar a mente, e suar todas as tristezas? – eu me perguntava. Ora, ora, quem mandou Fernando Sabino tocar no assunto? Pensei que ele ia ficar zangado, a ponto de cortar a nossa relação, para sempre.

Numa manhã de domingo o telefone tocou e era o próprio, de viva voz. Disse:

- Acordei hoje com vontade de ligar para o Mário de Andrade, o Rubem Braga, o Paulo Mendes Campos, o Oto Lara Resende e o Hélio Pellegrino. Como nenhum deles pode atender...

Foi um começo de conversa e tanto. Ao final, convidou-me para um drinque em sua casa.

- Que tal amanhã? – perguntei-lhe.

- Ih! Amanhã não dá. Ao descobrirem que fiz oitenta anos, me empurraram para os exames médicos. Assim que me livrar dessas chateações, telefono para combinar.

Não telefonou mais. Só iria voltar a vê-lo já embalado para a última viagem, no cemitério São João Batista.

Ah, Fernando. Para começar, que falta que você faz.







segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A POETISA E O JEGUE BAIANO



Há dia que a gente acorda assim, com aquele gosto de sabão na boca, sem tino matutino e desorientado completamente sobre os rumos da vida. Bota um som na vitrola para espantar os fantasmas da noite e, em vez de exorcismo, se envolve nos acordes ressonantes e se descobre um espectro vagando entre outros espectros cuja origem remonta a tempos passados e imaginados perdidos ou, talvez, esquecidos ao longo do Tempo.

Há dia que a gente acorda assim, pensando nos que se foram e em quanto tempo ainda falta para a nossa insólita viagem. Hoje? Amanhã? Depois de amanhã? Não importa. Compramos esse bilhete de passagem com data aberta no nosso primeiro choro. Nesse trem chamado Vida, quando menos se espera, o picotador aparece para carimbar nosso passaporte, em cuja capa está impresso um botão de rosa ao qual nunca demos importância aos seus detalhes:

“Nos recôncavos da vida
Jaz a morte.
Germinando no silêncio.
Floresce
Como um girassol no escuro.
De repente vai se abrir.
No meio da vida, a morte
Jaz profundamente viva.”
(Botão de Rosa - Thiago de Mello)

Para aprofundar o cenário mórbido, hoje é dia de finados e a melancolia tem um tom fúnebre de missa de sétimo dia, embora não se conheça o defunto pranteado. Seria um morto vestido da sua importância caso não houvesse mais lugar para se sentar na igreja e os parentes chorar inconsoláveis com a perda, embora a maioria finja sua invisível dor; seria um pobre indigente se apenas o padre, o sacristão e uma viúva chorosa maldizendo a miserável vida ocuparem todo o espaço da igreja. Em ambos os casos, a importância de cada um estará ironicamente nivelada na pirâmide social dos vermes.

À revelia do meu querer, busco espairecer as idéias navegando pelos recantos em busca de um encanto para o meu dia, mas me desencanto na primeira parada quando alguém fala de falocracia sem saber direito o que é isso, misturando alho com bugalhos em arabesco literário. Tento recompor meu alento nas divas da poesia e da prosa num site chamado Recanto das Letras, mas a mão do Destino me guiou pelo caminho errado e fui jogado ao encontro do velho preconceito enraizado na alma brasileira camuflado em sutileza incubada em versos toscos que prima pela indecência da segregação regional, cuja autora lamenta profundamente não poder transformar um desafeto baiano em jumento, certamente para suprir alguma carência afetiva ou amorosa.

Em certos lugares, o jumento foi e ainda é um meio de transporte eficaz, haja vista as condições das estradas e a agudeza dos acidentes geográficos que mapeiam o lugar. O fim do mundo não fica muito longe, bastando que se tenha querer e disposição para se chegar até lá montado no lombo de um jumento, claro.

Dizia Luiz Gonzaga que o jumento era nosso irmão. Animal sagrado, por ter carregado o Menino Jesus, dizem que a cruz que tem no costado é o lugar onde Cristo fez xixi. Mas, sagrado ou não, é um animal de falo grande, descomunal, e que enrijece sem o menor pudor ao encontrar uma jumenta no cio. No arraial do Junco houve um jumento que ficou famoso pelas suas peripécias. Chamado de Jegue Barroso, foi, deveras, o jegue mais famoso de toda a história da região. Fama adquirida pela sua sanha devassa e insaciabilidade sexual. A légua de distância, ele sentia o cheiro da fêmea no cio e não sossegava enquanto não consumasse seu intento. Pulava cerca de macambira, se rasgava no arame farpado e atacava as jegas, mesmo que estivessem devidamente montadas, colocando o montador em risco de se machucar com as investidas vigorosas e insistentes do jumento. Não adiantava gritar, ameaçar ou bater. Seu instinto animal era mais forte que a dor.

Era um verdadeiro deus-nos-acuda quando surgia uma jega no cio. Ou um espetáculo para os moleques e devassos; uma vergonha para as moças de família.

- Deus nos acuda! - gritou o padre, interrompendo o cântico.

Nessa ocasião o Junco vivia um prenúncio de estiagem. O vento nordeste soprava seu hálito quente, seco, levantando redemoinho de poeira que vinha da Rua da Bomba até a Praça do Tamarindeiro. A água do Tanque Velho há muito que secara e o Tanque do Município, também chamado de Tanque Novo, fornecia suas últimas gotas. A seca rondava o sertão e os roceiros, apreensivos e angustiados, andavam em procissão, chapéu na mão, pedindo proteção ao Senhor. O padre puxava os cânticos, acompanhado por centenas de vozes graves e agudas.

Avééé, avéé; avemariiiaa! – cantavam em louvor a Nossa Senhora do Amparo, a padroeira, próximo à escadaria da igreja, quando se ouviu um relincho, dois relinchos, três relinchos, tropel de jegue a galope descendo a rua. De repente surgiu uma jega em desabalada carreira em direção ao povo, seguida do jegue Barroso, que tentava montá-la em desespero de causa, ocasionando um verdadeiro alvoroço entre os devotos. O padre, após pronunciar o apelo já citado acima, segurou a barra da batina e subiu as escadas em desespero, se enrolando no cordão batinal, se estatelando no chão. O povo, em pânico, se espremia na porta da igreja, cada um querendo a preferência e não entrando ninguém. O padre, recomposto da queda, excomungou o jegue e todos os seus ascendentes e descendentes. De quebra, amaldiçoou também o seu dono.
Uma hora depois os milicianos conseguiram demover o jegue Barroso de suas intenções libidinosas, afastando sua pretendente para bem longe. O dono do ditoso teve que arcar com o prejuízo de uma multa imposta pelo delegado e por uma penitência de cem pais-nossos e trezentas ave-marias.
Mas isso aconteceu nos tempos que se bebia Grapete e as noites eram iluminadas por lampiões de querosene. O velho arraial vestiu roupa nova e ganhou nome novo e um moderno sistema de transporte. Seca não é mais problema, pois existe um complexo sistema de irrigação e abastecimento d’água. Não é mais aquela terra que candeeiro dava choque. E se lá, hoje em dia, o jumento é peça de museu, por que uma poetisa sulista quer um baiano como jeguinho de estimação?


domingo, 1 de novembro de 2009

OS OLHOS VERDES DE MARY

De Olhos verdes


Os olhos verdes de Mary suspiram por outro mundo além da Ladeira Grande. Seus pensamentos cavalgam sobre as nuvens brancas que pincelam o infinito azul em vã tentativa de fazer seu corpo levitar e flutuar ao sabor do vento e desaparecer na linha do horizonte e pousar silente tal qual uma estrela cadente rasgando o céu, extasiando-se em terras alhures, onde piscam luzes de neon como uma galáxia em festa.

Em tempos passados a mesmice do lugar não era contundente porque não havia outras referências, mesmo sendo a solidão um estado de espírito permanente. A televisão, que fora considerada por alguns intelectuais como a máquina de fazer doido, passou a ser a máquina de fazer sonhos. O Tempo é real e mostra, ao vivo, outro mundo, onde as coisas acontecem e as pessoas não se limitam apenas a acordar para ver o dia passar e depois dormir com as galinhas para sufocar suas angústias e desejos.

Resignada, lembrou-se do terceiro capítulo de Eclesiastes: “Há tempo de nascer e tempo de morrer. Há tempo de plantar e tempo de se arrancar o que plantou. (...) Há tempo de chorar e tempo de rir. Há tempo de afligir e tempo de dançar”.

O Tempo, sempre ele, senhor e dono absoluto dos nossos anseios e angústias, timoneiro interativo do barco do nosso Destino. Quando seria o seu tempo de rir e de dançar?

Ventos do norte sopram, ao seu ouvido, versos do poeta americano Thomas S. Eliot, transportando-a para quatro quartetos, em outra áurea dimensional, surrupiando-lhe o alento dos versículos bíblicos:

“(...) O gênero humano
Não pode suportar tanta realidade,
O tempo passado e o tempo futuro.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente”.

Em outra estrofe, a contundência aguda dos versos é como um balde de água gelada jogado sobre seu espírito ávido por mudanças:

“No imóvel ponto do mundo que gira. Nem só carne nem sem carne.
Nem de nem para; no imóvel ponto onde se move a dança,
Mas nem pausa nem movimento. E não se chame a isso fixidez,
Pois passado e futuro aí se enlaçam. Nem ida nem vinda,
Nem ascensão nem queda. Exceto por este ponto, o imóvel ponto,
Não haveria dança e tudo é apenas dança”.

Seria esse lugar em que vive e mora o “imóvel ponto do mundo que gira”? Se aqui, passado e futuro se enlaçam, que é do seu presente? Uma negação ou uma abnegação? Nada faz sentido quando afloram os sentimentos compulsivos de liberdade. Em suas divagações interiores incorpora a certeza de que veio ao mundo para ser protagonista e não para fazer figuração; nasceu para brilhar, e não para se ofuscar na clausura forçada das necessidades. Por causa desta constatação, aumentam a sua aflição e o seu temor de que a realidade seja mais pesada do que sua quimera e esmague sua plantação de sonhos como ervas daninhas em um campo abandonado pelo seu dono.

E os seus olhos marejam suspiros de resignada tristeza, evaporando no ar tal qual o orvalho da manhã sobre as folhas verdes da relva refletidas em sua retina.

sábado, 31 de outubro de 2009

Convenção das Fadas



Por Leila Barros




Enquanto alguns paulistanos desvairados decoravam seus locais de trabalho e – pasmem – seus lares também, com toda aquela parafernália bruxolística, longe de tudo isso, em um sítio perto da represa de Guarapiranga algumas fadas se reuniam para iniciar a 1ª Convenção das Fadas Brasileiras, um movimento puramente anti-Halloween.


– Ângelus, cânticos celestiais, perfume de lavanda, cores de arco-íris, fadas, querubins e seres afins, unamo-nos contra essa festa sacana e tipicamente americana! Viva as fadas da floresta amazônica, os vaga-lumes, as selvas tropicais, as vitórias-régias encantadas, o folclore nacional!


E nesse ínterim, as fadinhas se preparavam para o evento:


– Esse negócio de Halloween já encheu os... ops! Desculpe-me essa linguagem imprópria, mas é que não aguento mais ver bruxas estilizadas, vampiros, fantasmas, esqueletos e morcegos pendurados aqui no escritório!

– Calma Vica! Estamos em pleno mês de Outubro! Isso é normal em todos os escritórios da cidade!

– Você acha normal furar uma abóbora que fica com uma cara de Dona Doida para enfeitar uma festa? E depois, Arlene, nós precisamos agir depressa, ou no ano que vem teremos novamente esse conglomerado de esquisitices que nada tem a ver com nossos costumes e tradições. Acho que vou roubar uma abóbora dessas e cozinhar com jabá!

– Não faça isso, Vica! Vamos logo para o local do encontro que no caminho eu faço uma recarga no celular e ligo para todas as outras fadas!

– Caramba Arlene! Vamos ter de ir de trem até bem próximo da represa, pois está um trânsito terrível!

– Em todos os outros países as fadas podem voar! Aqui no Brasil a gente tem de andar de trem! Que fiasco!

– Não dá para pegarmos uma vassoura emprestada, Arlene?


“Às vezes eu acho que essa fada pagodeira está se passando para o lado dos aficionados pelo Halloween!” Arlene pensou e quase deixou escapar!


– Vamos Vica! Hoje é trinta de outubro e temos que iniciar o projeto exatamente às 18:00 horas!


Sem vassouras, sem truques e sem morcegos, as fadas brasileiras iniciaram sua convenção.


Saudações iniciais foram feitas por todas as fadas: celtas, belgas, inglesas, suecas, etc.


Obviamente elas discursaram em inglês. Mas havia legenda.


Saudações das fadas brasileiras:


“Saúdo-vos Fauna e Flora do Brasil, golfinhos, vitórias-régias, ninfeáceas, araras e jabuticabeiras em flor. Acolham nossas saudações e aclamem como o Dia das Fadas todo dia 30 de outubro... Transformem-nos nesse dia em borboletas brancas para que possamos neutralizar os efeitos do Halloween em cada um dos desatinados brasileiros que não sabem nem pronunciar Réloin...”


E assim foi feito... A partir de então, todo dia 30 de outubro um panapaná de borboletas brancas segue voando por todo o Brasil, encantando pessoas e neutralizando nelas aquele olhar vidrado, meio abóbora, meio perdido.


Bailam corujas e pirilampos, entre os sacis e as fadas...