segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A POETISA E O JEGUE BAIANO



Há dia que a gente acorda assim, com aquele gosto de sabão na boca, sem tino matutino e desorientado completamente sobre os rumos da vida. Bota um som na vitrola para espantar os fantasmas da noite e, em vez de exorcismo, se envolve nos acordes ressonantes e se descobre um espectro vagando entre outros espectros cuja origem remonta a tempos passados e imaginados perdidos ou, talvez, esquecidos ao longo do Tempo.

Há dia que a gente acorda assim, pensando nos que se foram e em quanto tempo ainda falta para a nossa insólita viagem. Hoje? Amanhã? Depois de amanhã? Não importa. Compramos esse bilhete de passagem com data aberta no nosso primeiro choro. Nesse trem chamado Vida, quando menos se espera, o picotador aparece para carimbar nosso passaporte, em cuja capa está impresso um botão de rosa ao qual nunca demos importância aos seus detalhes:

“Nos recôncavos da vida
Jaz a morte.
Germinando no silêncio.
Floresce
Como um girassol no escuro.
De repente vai se abrir.
No meio da vida, a morte
Jaz profundamente viva.”
(Botão de Rosa - Thiago de Mello)

Para aprofundar o cenário mórbido, hoje é dia de finados e a melancolia tem um tom fúnebre de missa de sétimo dia, embora não se conheça o defunto pranteado. Seria um morto vestido da sua importância caso não houvesse mais lugar para se sentar na igreja e os parentes chorar inconsoláveis com a perda, embora a maioria finja sua invisível dor; seria um pobre indigente se apenas o padre, o sacristão e uma viúva chorosa maldizendo a miserável vida ocuparem todo o espaço da igreja. Em ambos os casos, a importância de cada um estará ironicamente nivelada na pirâmide social dos vermes.

À revelia do meu querer, busco espairecer as idéias navegando pelos recantos em busca de um encanto para o meu dia, mas me desencanto na primeira parada quando alguém fala de falocracia sem saber direito o que é isso, misturando alho com bugalhos em arabesco literário. Tento recompor meu alento nas divas da poesia e da prosa num site chamado Recanto das Letras, mas a mão do Destino me guiou pelo caminho errado e fui jogado ao encontro do velho preconceito enraizado na alma brasileira camuflado em sutileza incubada em versos toscos que prima pela indecência da segregação regional, cuja autora lamenta profundamente não poder transformar um desafeto baiano em jumento, certamente para suprir alguma carência afetiva ou amorosa.

Em certos lugares, o jumento foi e ainda é um meio de transporte eficaz, haja vista as condições das estradas e a agudeza dos acidentes geográficos que mapeiam o lugar. O fim do mundo não fica muito longe, bastando que se tenha querer e disposição para se chegar até lá montado no lombo de um jumento, claro.

Dizia Luiz Gonzaga que o jumento era nosso irmão. Animal sagrado, por ter carregado o Menino Jesus, dizem que a cruz que tem no costado é o lugar onde Cristo fez xixi. Mas, sagrado ou não, é um animal de falo grande, descomunal, e que enrijece sem o menor pudor ao encontrar uma jumenta no cio. No arraial do Junco houve um jumento que ficou famoso pelas suas peripécias. Chamado de Jegue Barroso, foi, deveras, o jegue mais famoso de toda a história da região. Fama adquirida pela sua sanha devassa e insaciabilidade sexual. A légua de distância, ele sentia o cheiro da fêmea no cio e não sossegava enquanto não consumasse seu intento. Pulava cerca de macambira, se rasgava no arame farpado e atacava as jegas, mesmo que estivessem devidamente montadas, colocando o montador em risco de se machucar com as investidas vigorosas e insistentes do jumento. Não adiantava gritar, ameaçar ou bater. Seu instinto animal era mais forte que a dor.

Era um verdadeiro deus-nos-acuda quando surgia uma jega no cio. Ou um espetáculo para os moleques e devassos; uma vergonha para as moças de família.

- Deus nos acuda! - gritou o padre, interrompendo o cântico.

Nessa ocasião o Junco vivia um prenúncio de estiagem. O vento nordeste soprava seu hálito quente, seco, levantando redemoinho de poeira que vinha da Rua da Bomba até a Praça do Tamarindeiro. A água do Tanque Velho há muito que secara e o Tanque do Município, também chamado de Tanque Novo, fornecia suas últimas gotas. A seca rondava o sertão e os roceiros, apreensivos e angustiados, andavam em procissão, chapéu na mão, pedindo proteção ao Senhor. O padre puxava os cânticos, acompanhado por centenas de vozes graves e agudas.

Avééé, avéé; avemariiiaa! – cantavam em louvor a Nossa Senhora do Amparo, a padroeira, próximo à escadaria da igreja, quando se ouviu um relincho, dois relinchos, três relinchos, tropel de jegue a galope descendo a rua. De repente surgiu uma jega em desabalada carreira em direção ao povo, seguida do jegue Barroso, que tentava montá-la em desespero de causa, ocasionando um verdadeiro alvoroço entre os devotos. O padre, após pronunciar o apelo já citado acima, segurou a barra da batina e subiu as escadas em desespero, se enrolando no cordão batinal, se estatelando no chão. O povo, em pânico, se espremia na porta da igreja, cada um querendo a preferência e não entrando ninguém. O padre, recomposto da queda, excomungou o jegue e todos os seus ascendentes e descendentes. De quebra, amaldiçoou também o seu dono.
Uma hora depois os milicianos conseguiram demover o jegue Barroso de suas intenções libidinosas, afastando sua pretendente para bem longe. O dono do ditoso teve que arcar com o prejuízo de uma multa imposta pelo delegado e por uma penitência de cem pais-nossos e trezentas ave-marias.
Mas isso aconteceu nos tempos que se bebia Grapete e as noites eram iluminadas por lampiões de querosene. O velho arraial vestiu roupa nova e ganhou nome novo e um moderno sistema de transporte. Seca não é mais problema, pois existe um complexo sistema de irrigação e abastecimento d’água. Não é mais aquela terra que candeeiro dava choque. E se lá, hoje em dia, o jumento é peça de museu, por que uma poetisa sulista quer um baiano como jeguinho de estimação?


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