sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Quando as pedras se encontram: Antonio Torres e Heitor Cony em Natal, RN



Escritores Heitor Cony e Antonio Torres conversam sobre o povo

brasileiro em Natal.


De Antonio Torres e Heitor Cony em Natal, RN

Dois dos maiores escritores do Brasil na atualidade estarão em Natal na quinta-feira, 26. Carlos Heitor Cony e Antonio Torres ficarão frente a frente "Conversando sobre o povo brasileiro", no hotel Vila do Mar, a partir das 19h30, em evento que será comandado pelo cientista políticoe apresentador do programa televiso "Espaço Cidadão", Robson Carvalho. O evento marca a nova fase do programa que ao completar seis anos de veiculação ininterrupta, adotará novo modelo de entrevista onde dois convidados debaterão um mesmo assunto sob a mediação de Robson Carvalho. O apresentador também comemora cinco anos de "Repórter 98", na 98 FM, e de quatro anos como colunista de jornal.


O "Espaço Cidadão" vai ao ar toda segunda-feira, às 21h30, ao vivo na Tv União. Tem uma hora de duração e é aberto à participação do público via telefone. O programa é voltado à promoção da cidadania com foco em política, direitos e deveres do cidadão, defesa do consumidor e responsabilidade social e ambiental, entre outros. O programa-debate "Conversando sobre o povo brasileiro" está projetado para receber mil pessoas, entre convidados e público pagante. A venda de ingresso está sendo feita na livraria Siciliano ao preço de R$ 20, o inteiro, e abatimento de 50% para estudante.


Carlos Heitor Cony é carioca e estudou humanidades e filosofia no Seminário de São José. Membro da Academia Brasileira de Letras, trabalha na imprensa desde 1952. Começou no Jornal do Brasil, passou por outros veículos e, hoje, é colunista da Folha de S.Paulo, comentarista da rádio CBN e da Band News.


Cony estreou na literatura ganhando por duas vezes consecutivas o Prêmio Manuel Antônio de Almeida (em 1957 e 1958) com os romances "A Verdade de Cada Dia" e "Tijolo de Segurança". Em 1998, o governo francês, no Salão do Livro, em Paris, condecorou-o com a L'Ordre des Arts et des Lettres. Ganhou os prêmios: Manuel Antônio de Almeida (em 1956 e 1957); Jabuti (em 1996, 1998 e 2000); Livro do Ano (em 1996 e 1998 e 2000); Prêmio Nacional Nestlé (em 1997); e Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de obra, em 1996.


Antônio Torres, baiano de Sátiro Dias, lançou seu primeiro romance, 'Um cão uivando para a Lua', aos 32 anos. Confirmou seu talento na qualidade do segundo livro, 'Os Homens dos Pés Redondos', e experimentou o grande sucesso em 1976, com o livro 'Essa terra', que aborda a questão do êxodo rural de nordestinos para o Sul. O livro ganhou edição francesa em 1984, abrindo caminho para a carreira internacional do escrito, que tem seus livros publicados em Cuba, na Argentina, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Israel, Holanda, Espanha e Portugal.


Torres foi condecorado pelo governo francês, em 1998, como "Chevalier des Arts et des Lettres", por seus romances publicados na França. Em 2000, ganhou o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da sua obra. Em 2001, foi o vencedor (junto com Salim Miguel por 'Nur na escuridão') do Prêmio Zaffari & Bourbon, da 9a. Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, RS, por seu romance 'Meu querido canibal'.


Autor premiado, com várias edições no Brasil e traduções em muitos países, Antônio Torres é um dos expoentes da sua geração. Sua expressiva obra abrange 11 romances, 1 livro de contos, 1 livro para crianças, 1 livro de crônicas, perfis e memórias, além de outros projetos especiais.


Serviço

Seis anos de Espaço Cidadão

Debate com os escritores Carlos Heitor Cony e Antonio Torres

Hotel Vila do Mar

Quinta-feira, 26, 19h30

Inteira R$ 20,00 / Meia R$ 10,00

Vendas na Livraria Siciliano




Consciência Negra: Vista a minha pele*

Por Edna Lopes


De dia da consciência negra





Eu sei que muitos vão dizer que falar de cotas e consciência negra é pregar um racismo às avessas. Dizer que isso é coisa de quem não tem mais o que dizer nem o que escrever. Provavelmente dirão que isso é coisa de gente que se sente inferior e quer se exaltar. Coisa de negro.

Alguns se sentem ofendidos com tanta exaltação. Até feriado os negros têm! Quem raios é esse tal de Zumbi? E como se não bastasse, tem lei que determina o ensino da história da África, estatuto de Igualdade Racial, leis e estudos que defendem a titularidade de terras, que criminaliza a intolerância religiosa.

Provavelmente dirão que consciência negra é balela porque estão convictos que é ficção alguém ser discriminado pela cor. Certamente quem pensa assim nunca foi humilhado, desrespeitado, ofendido por simplesmente não ter a pele clara. Nunca viu ninguém mudar de calçada porque se aproxima, nunca foi mal atendido num restaurante, num bar, numa loja, numa repartição pública.

Quem se ofende, provavelmente não precisou explicar para ninguém que não era a babá ou o motorista dos próprios filhos, não precisou mostrar o documento do veículo e o RG para provar que era seu, não apanhou confundido com o ladrão do próprio carro e nunca foi desrespeitado por cultuar seus ancestrais.


Provavelmente também nunca recebeu olhar de incredulidade quando apresentado por seu ofício ou seu título, não teve o desprazer de lhe ser indicado o elevador de serviço nem ouvir quando atende a porta de sua própria casa: “seu patrão ou sua patroa tá aí”?

E essas são só algumas histórias que ouvi de gente querida e maravilhosa cujo “defeito” é não ter nascido de pele clara. Sei de tantas....já vi tanta maldade em forma de preconceito...Mas, da minha vivência, sei que negritude, consciência está para além da cor da pele. Sei que sou a somatória de tudo isso e, portanto, tenho muito respeito por tudo que se relaciona com o resgate da dignidade a quem um dia foi negado o direito da escolha do ir e vir.

E, para os que questionam, ironizam ou fazem piada com o feriado do 20 de novembro, este país deve a muitos povos, em especial, aos negros, a formação da sua riqueza e da sua cultura. Se, do ponto de vista biológico reconhecemos que A RAÇA É HUMANA, reconhecer, historicamente, a dívida com os negros na história desse país é ter mais que consciência. É fazer justiça. E que o Dia Nacional da Consciência Negra colabore para que todos e todas reflitam aonde guardam seu preconceito.


Vista a Minha Pele
2003, 15 min.

“Vista a Minha Pele” é uma divertida paródia da realidade brasileira. Serve de material básico para discussão sobre racismo e preconceito em sala-de-aula.
Nesta história invertida, os negros são a classe dominante e os brancos foram escravizados. Os países pobres são Alemanha e Inglaterra, enquanto os países ricos são, por exemplo, África do Sul e Moçambique. Maria é uma menina branca, pobre, que estuda num colégio particular graças à bolsa de estudo que tem pelo fato de sua mãe ser faxineira nesta escola. A maioria de seus colegas a hostiliza, por sua cor e por sua condição social, com exceção de sua amiga Luana, filha de um diplomata que, por ter morado em países pobres, possui uma visão mais abrangente da realidade.

Maria quer ser “Miss Festa Junina” da escola, mas isso requer um esforço enorme, que vai desde a superação do padrão de beleza imposto pela mídia, onde só o negro é valorizado, à resistência de seus pais, à aversão dos colegas e à dificuldade em vender os bilhetes para seus conhecidos, em sua maioria muito pobres. Maria tem em Luana uma forte aliada e as duas vão se envolver numa série de aventuras para alcançar seus objetivos. O centro da história não é o concurso, mas a disposição de Maria em enfrentar essa situação. Ao final ela descobre que, quanto mais confia em si mesma, mais capacidade terá de convencer outros de sua chance de vencer.
Indicações de uso:

O vídeo pode ser usado na discussão sobre discriminação no Brasil. É um instrumento atraente, com linguagem ágil e atores conhecidos do público alvo - adolescentes na faixa de 12 a 16 anos. Vem acompanhado de uma apostila de orientação ao professor para sua utilização em sala de aula, elaborada por educadores e psicólogos comprometidos com as questões de gênero e raça.


Ficha técnica:
Duração: 15 minutos
Direção: Joel Zito Araújo
Produção: Casa de Criação
Contato:
Tel.: (11) 6978-8333

Reproduzido do site http://www.piratininga.org.br/videos/discriminacao.html





quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Cambalhotas Para Ninguém

Por Cineas Santos


De Praça do Marquês, Teresina, Piauí. Foto Rhaony Rezende


No final do milênio passado, num arremedo de crônica sobre Teresina, afirmei: ainda não é uma grande cidade, graças a Deus. Ainda há quintais, mangueiras, passarinhos e meninos para persegui-los. Remexendo o baú de “inutensílio”, encontrei a crônica e, consternado, constatei que ela está bem mais velha do que eu. A cidade de que falo parece perdida na poeira de um passado remoto. Hoje, eu diria: ainda não é uma grande cidade, mas, infelizmente, já padece de todas as mazelas que infernizam as metrópoles brasileiras. Trânsito caótico, engarrafamento, poluição sonora e visual e, principalmente, estresse e medo. Aquele medo “que esteriliza os abraços”, de que falava o poeta. A cadeira na calçada deu lugar às cercas elétricas; a pracinha do bairro foi trocada pela praça de alimentação dos shopings, em nome de uma suposta “segurança”. A cidade, numa velocidade desconcertante, vai perdendo aquele ar provinciano que lhe conferia faceirice e graça. A volúpia da novidade parece ter-se apossado dela com reflexos negativos. Na calada da noite, casarões antigos transformam-se em estacionamentos e, a despeito disso, os automóveis ocupam cada centímetro dos espaços destinados aos pedestres. Hoje, é mais fácil comprar um automóvel do que estacioná-lo no centro da cidade...

A exemplo de qualquer grande cidade brasileira, nos semáforos de Teresina, ambulantes pedintes e malabaristas disputam as moedinhas esquecidas no porta-lixo dos automóveis. Para evitar o assédio, os motoristas levantam os vidros ou aumentam o volume do som. À noite, já não é prudente parar em lugar algum, mesmo que isso implique o risco de multa pesada: melhor perder ponto na carteira que a vida. Um amigo cínico explica tudo com sua lógica enviesada: “somos todos reféns da barbárie civilizada”. Falta-me autoridade para contestá-lo.

Mas o propósito dessa arenga não é denunciar o óbvio nem lamentar o que já se perdeu. Quero apenas registrar uma prática lúdica, lírica e espontânea que, pelo menos duas vezes por semana, se repete na Praça do Marquês. Ali, nos finais de tarde, um grupo de garotos de idades variadas (de 8 a 17 anos) se reúne regularmente para praticar um pouco de ginástica: saltos mortais, cambalhotas, brincadeiras. Os mais experientes orientam os mais jovens que, a cada conquista, vibram como se estivessem conquistando pontos numa olimpíada imaginária. Quando erram, repetem o salto com aplicação e redobrado esforço. Como sinal de aprovação, recebem tapinhas dos companheiros. Normalmente, os transeuntes apressados não param para aplaudi-los; é possível que nem se deem conta da presença daqueles moleques vadios que, nas tardes de chumbo de Teresina, dão cambalhotas pra ninguém.

Às vezes, paro e fico espiando as estripulias daqueles garotos pobres que, indiferentes ao rugido furioso dos automóveis, apenas brincam como deveriam brincar todas as crianças da cidade: ao ar livre, sem o olho vigilante dos pais. Espiritualmente, brinco um pouco com eles enquanto, “sem querer saber de mim, a tarde desce”...


quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Para onde nossos pais estão indo?

Por Leila Barros


De Para onde nossos pais estão indo






Fiquei olhando para o meu pai em uma dessas madrugadas em que ele perdeu o sono e queria tomar um leite quente. Olhei para seu rosto um pouco envelhecido (sim, um pouco apenas, a genética lhe foi benéfica) e seu cabelo já embranquecido coberto por um gorro simpático, como o de alguns Rappers.

Falava de coisas simples, comia suas bolachas de água e sal e às vezes suas frases e respostas me surpreendiam pela falta da memória astuta e ágil de outrora. Do signo de Leão, e fazendo jus ao zodíaco, sempre foi um leonino guerreiro e forte, um homem de dignidade e coragem. Procurou passar exemplos de probidade e otimismo em tudo que dizia e diz. E uma das coisas que dizia sempre, é nós não devíamos entrar em campo já perdendo em espírito.

Enquanto ele tomava seu leite e dizia algumas coisas eu me perguntava mentalmente:

- Para onde está indo o meu pai? Que cosmos serão esses que ele visita de vez em quando? Que será feito de sua força voraz? Será daqui para frente uma força que vai e volta? Será que existe algum lugar secreto que ele visita de vez em quando, nos momentos em que se enche desse planeta? Será que ele vislumbra de vez em quando um campo de futebol diferente? Será que visita um futuro mais palpável para ele? Será que sente falta de carregar motor de barco nas costas? Será que sente falta de pescar no Mato Grosso, de caminhar a pé até Bom Jesus de Pirapora, de tomar bagaceira?

Deve ser difícil para ele enfrentar sua própria realidade limitante, mas nessas horas procuro me lembrar da Tônia Carrero, que diz:

“Envelhecer é muito difícil, mas como o outro caminho é morrer...vamos em frente!”

Perguntei-me se haveria recursos médicos e humanos que pudessem amenizar esse processo natural de envelhecimento. Acho que eles existem sim e decidimos aqui em casa que vamos atrás desses recursos.

Não há como impedir a biologia e a força da gravidade de continuarem seus cursos, mas há sempre um jeito novo de se olhar para as coisas. Como meu próprio pai nos ensinou, não vamos simplesmente desistir e ficar olhando tudo com pessimismo e autocomiseração. Se entrarmos em campo, que seja para ganhar e que o Parreira não nos escute!

Estamos nos modificando e aprendendo a conviver com essa nova fase dele. É apenas uma etapa diferente, é a “envelhescência”, como a adolescência e outras. Vamos rir com ele, vamos motivá-lo, vamos incentivá-lo a fazer seus exames médicos, a tomar vitaminas, a praticar sua caminhada diária, vamos fazer com que ele se sinta útil e amado.

Agora eu sei para onde meu pai está indo. Ele segue o caminho lento e natural de todos nós. Mas, para trilhar esse caminho sem machucar os pés e nem o coração, é preciso não ter pressa. E há que se aprender com ele, todas as lições que ele tiver ainda a ensinar. É preciso que desde já comecemos a encher a mochila de otimismo saudável, de práticas de vivência salutares, vitaminas espirituais e físicas.

E para nos fortalecermos para o futuro, vale tudo: dançar, caminhar, ler a vida de Dalai Lama, ler as recomendações de Nuno Cobra, estar com as pessoas, gostar das pessoas, aprender e ensinar, doar um pouco de nós, participar de concursos, nos sentirmos vivos e pulsantes como estrelas esperançosas.

E só assim é que poderemos conviver e partilhar nossos melhores recursos e momentos com nossos pais, que de vez em quando dão uma fugidinha sabe-se lá para onde.

Mas eles sempre voltam porque sabem que nós estamos aqui.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

REMANESCÊNCIAS DA SENZALA


Ou: No Piscinão de Ramos tem água dos navios negreiros


De Navio negreiro e piscinão de ramos


De Navio negreiro e piscinão de ramos


Em Maceió o Censo 2007 ficou emperrado por conta de algumas pessoas terem se negados a receber os recenseadores em suas casas. Apesar da garantia oferecida pelo IBGE, alguns moradores usaram a desculpa da violência urbana para não abrirem as portas aos contadores de gente, geralmente jovens estudantes em busca de rendimento extra.

Com esse mesmo argumento impedem que o mata-mosquito faça seu trabalho de profilaxia da dengue, deixando a população à mercê do famigerado mosquito aëdes aegypti, causador de tantas dores e óbitos. Por ser uma questão de saúde pública, o Ministério Público se aliou à Secretaria da Saúde e prometeu abrir ações processantes contra os disseminadores do grande mal do verão, depois do câncer de pele, claro.

Será que é apenas o medo que faz certas pessoas abraçarem o individual em detrimento do coletivo? Em Alagoas há poucas industrias de grande, médio ou pequeno porte e a mão de obra ativa se aglomera na senzala das usinas. Ainda se pratica a agricultura de subsistência e a monocultura da cana-de-açúcar domina as áreas férteis. Possui um dos IDH mais baixo do país, a menor renda per capita, os mais altos índices negativos e, no entanto, sua capital, Maceió, posa de cidade próspera: todo dia surgem apartamentos luxuosos totalmente vendidos; concessionárias de carros de luxo reduzem a pó as revendedoras de carros populares.

Talvez o medo do amigo do alheio seja só desculpa para não se escancarar publicamente certas riquezas emergentes, sem a devida comprovação da licitude da renda, tal qual a fertilidade e valorização de bois de certo senador e de polpudos honorários a braços armados da elite política.

Em idos tempos, no interior da Bahia, o medo do recenseador tinha outra justificativa. O supervisor do Censo local recebeu reclamação de que um cidadão metido nas brenhas da roça se negava receber o contador de gente. Ou fugia ou se escondia. O superior tomou a si a tarefa. Bateu à porta do jeca total.

- Ô de casa!

- Ô de fora! Quem é? – perguntou uma senhora.

- É do Censo! – respondeu.

- Corre, Benedito! É o homi do Guverno! – gritou desesperada.

Um homem, saído do nada, pulou a janela da sala e saiu correndo pelo descampado do terreiro. Seria o tal Benedito? O supervisor montou no cavalo e foi atrás. Laçou o homem como se laça um boi na caatinga. O capiau estancou, se ajoelhou e implorou:

- Por favor, seu Censo, não tome as minhas terras!


Mas, a cada censo, uma história a ser contada. Não faz muito tempo que se discutia qual era a real cor do brasileiro. Havia brancos, pardos, mulatos, índios, mamelucos, chocolate, café com leite, marrom glacê, as sete cores do arco-íris, menos o preto. Em São Salvador da Bahia, reduto do orgulho afro, o preto deixou de ser preto para assumir a “baianidade nagô” balançando a bundinha na subida do Pelô. Baseada nessa premissa, uma madame chique, em uma padaria chique, no chiquérrimo bairro do Farol da Barra, chamou o balconista, um negro de dois metros de altura por outro tanto de largura:

- Moreno! Ei, moreno! – apelou.

- Moreno, não, sua madame racista! Sou negão mesmo!

Este era um negro orgulhoso de sua raça, disposto a não deixar um branco tingir sua cor, mesmo sendo um simples balconista e ela uma cliente cinco estrelas. Era um senegalês legítimo, altivo, zeloso de sua cor, tal qual o poeta Léopold Sédar Senghor, primeiro presidente do Senegal independente e um dos mais destacados membros da Academia Francesa de Letras.

Poema para meu irmão branco

Léopold Sédar Senghor

Querido irmão branco.
Quando eu nasci, eu era negro,
Quando eu cresci, eu era negro,
Quando estou ao sol, eu sou negro,
Quando estou doente, eu sou negro,
Quando eu morrer, eu serei negro.

Quanto a você, homem branco,
Quando você nasceu, você era rosa,
Quando você cresceu, você era branco,
Quando você está ao sol, você é vermelho,
Quando você está com frio, você é azul,
Quando você está com medo, você é verde,
Quando você está doente, você é amarelo,
Quando você morrer, você será cinza.

Agora, de nós dois,
quem é o homem de cor?

Quem é o homem de cor, cara-pálida? No antigamente de Copacabana, quando as madames caras-pálidas levavam seus cachorrinhos para fazer cocô no calçadão mais famoso do Brasil, algumas vezes paravam para tricotar com algum negro de suas relações. Se flagradas por alguma amiga em conversa iorubana, assim se justificavam:

- Ele é um preto de alma branca!

Pronto: achada a fórmula para se acabar com o racismo no Brasil e no mundo: preto com alma branca. Tão simples quanto uma equação matemática. Tão fácil quanto pescar de bomba em aquário. Na contramão da singeleza desse argumento preconceituoso, escreveu o poeta negro pernambucano Lepê Correia, em seu livro de poesias “Caxinguelê”:


Nego Afoito

Podem me chamar tiziu

Toco preto ou azulão

Toco de lenha queimada

Me chamem de tisna ou tição

De nego da alma preta

Fazedô de confusão.

Podem dizer que sou feio

(Macaco num perde não)

Sou escuro que nem breu

Sou parente de carvão

Que minha alma é suja

Que nem a alma do cão

Que jabuticaba é alva

Se fizer comparação

Que sou tição de fogueira

Depois que passa são João

Que sou borra de cuvitêro

Lá nos confins do Sertão.

Que das coisas pió do mundo

Eu sou a consumação

Que sou briga em fim de festa

Que pareço um boi tungão

Que sou tudo o que não presta!

Mas que tenho a alma branca, NÃO!


Mas não foi por causa deste poema que o preconceito mudou de cor. Os farofeiros suburbanos descobriram simultaneamente sua cidadania e o mar de Copacabana. Assim como os pretos e os paraíbas, também se tornaram a bola da vez dos puros de sangue e cor. Dondocas chateadas reclamam da plástica e da farinha tarada que encarna em seus microbiquinis. Como paliativo, construíram o Piscinão de Ramos para segurar a plebe rude em seu reduto, mas periferia é feito formigueiro e seria preciso mais de mil piscinões para se manter o povo em seus domínios. Serão construídos, duvide não da capacidade dos nossos políticos em governar para a elite. O importante é deixar Copacabana para a nata social, com seus sucrilhos e limonadas geladas.

Quem teve a oportunidade de assistir ao documentário “Faixa de Areia”, sentiu as cores do preconceito na areia de Copacabana e Ipanema. As cineastas Daniela Kallmann e Flávia Lins e Silva expõem cruelmente a face dessa segregação latente e, em tomadas alternadas entre os invasores e os pseudos donos do pedaço, escancaram o apartheid existente nas areias de Copacabana: a demarcação territorial dos gays, das lésbicas, dos farofeiros fugidos de Ramos, dos pretos, dos gordos, dos magricelas desenxabidos e dos adoradores do capim seco.

No Porto da Barra, em Salvador, também campeia o mesmo preconceito suburbano de Copacabana. Quando a Prefeitura criou a linha de ônibus do subúrbio e de bairros populares passando pelo Porto da Barra, as madames também chiaram. E chiam. Hoje, menos. O medo da censura pública e de um processo judicial amordaça o preconceito de muita gente. Mas, no início, a reação era uníssona:

- E agora? Minha praia invadida por farofeiro?

Atentai, almas brancas, para a posse iminente: “Minha praia”! Compra-se uma casa financiada pelo Sistema Financeiro de Habitação, e já se faz dono do pedaço inteiro, mesmo com o oficial de justiça batendo à porta, em penhora de calote à Caixa Econômica Federal.

Xangô, o deus da Justiça, um dia ouviu o clamor dos injustiçados e desceu sua ira com fúria total sobre os sublimados moradores do Porto da Barra e adjacências, ampliando o domínio do carnaval baiano, empurrando para o outrora sossegado bairro do Farol, a axé music e toda sua parafernália eletrizante. Seria o supra-sumo do castigo aos ímpios se o diabo ocidental não tivesse consolado os brancos pálidos e loiras oxigenadas do metro quadrado mais caro da Bahia com seu sádico axioma: preto pobre e suburbano que estiverem no carnaval da Barra, ou estão catando lata ou puxando corda nos blocos de trio.

É por isso que digo, afirmo e confirmo: o Piscinão de Ramos e os blocos de corda de Salvador têm tudo a ver com os navios negreiros.



sábado, 14 de novembro de 2009

Berro Novo é Jessier Quirino de novo, novamente...



Por Edna Lopes







De Edna e Jessier Quirino na Bienal 2009 - Maceió - AL



A primeira vez que ouvi falar de Jessier Quirino foi no programa Manhãs Brasileiras do saudoso radialista e amigo Edécio Lopes. Aliás, não só falar dele como ouvir do próprio um pouco de sua trajetória, de seu trabalho. De um jeito muito peculiar, durante a entrevista, Jessier recitou poemas, contou saborosos causos, antecipando o show que faria à noite.

Fiquei fã de seu trabalho tão especial, pois me lembrou dos programas de rádio das manhãs e tardes sertanejas que ouvia na infância, sempre dedicados ao homem do campo, onde ouvia a música brejeira e as esquetes do “Coroné Ludugero e Otrópe”, a poesia matuta do paraibano Zé da Luz, de Patativa do Assaré e de Catulo da Paixão Cearense.

Encantava-me aquele jeito especial do dizer das coisas mais simples, dos temas tão nossos, os nascidos na roça, nos “arruados”, nas cidadezinhas tão singelas quanto desimportantes, para os muito modernos moradores desta aldeia global.

Ler e ou ouvir Jessier Quirino envolve-me num sentimento de nordestinidade, de pertencimento de um lugar muito especial. Ver e ouvir Jessier num dos seus recitais, recuperando a memória afetiva dos falares, a ingênua curiosidade, o humor maliciosamente, docemente incrustado no viver do matuto é uma experiência única porque reconheço, como se fossemos velhos amigos, cada um de seus personagens.

Não dá para não me emocionar. É meu universo de menina da roça que está lá na sua poesia, na sua prosa tão bem humorada quanto delicada e amorosa com seu povo. Em minha opinião, sua mais poética publicação, seu novo livro - BERRO NOVO - é um deleite. Já na orelha Bráulio Tavares, outro poeta ímpar, arremata: “A poesia matuta, como eu a entendo, é tão variada quanto a poesia urbana. É a mesma orquestra sinfônica, só que com outros instrumentos.”

E assim é. Nas duas últimas Bienais alagoanas do Livro (2007 e 2009) esse poeta plural lançou livro e CDs e, generosamente, brindou com parte de seus recitais seu publico cada vez mais crescente, mais consciente e orgulhoso de suas raízes, de seus sotaques e falares, de sua cultura e seu jeito de ser. Berro Novo – Poesia dita, escrita e musicada, é mais uma publicação da Editora Bagaço que traz de brinde um CD com músicas, causos e declamações. E outro brinde: as participações mais do que especiais de Dominguinhos, Josildo Sá, Maestro Spock (da Orquestra Spock Frevo) e Xangai, artistas também nordestinos da melhor estirpe.

Querendo saber mais do artista vale a pena uma visita no seu endereço eletrônico http://www.jessierquirino.com.br/ para ver os vídeos, as fotos e um “Mini currículo” do qual retiro este fragmento: “(...) Apesar de muitos considerá-lo um humorista, opta pela denominação de poeta, onde procura mostrar o bom humor e a esperteza do matuto sertanejo, sem, no entanto fugir ao lirismo poético e literário.”

Sobre Jessier, disse o poeta e ensaísta Alberto da Cunha Melo: “... talvez prevendo uma profunda transformação no mundo rural, em virtude da força homogeneizadora dos meios de comunicação e das novas tecnologias, Jessier Quirino, desde seu primeiro livro, vem fazendo uma espécie de etnografia poética dos valores, hábitos, utensílios e linguagem do agreste e do sertão nordestinos... Sua obra, não tenho dúvidas, além do valor estético cada dia mais comprovado, vai futuramente servir como documento e testemunho de um mundo já então engolido pela voragem tecnológica."

Ouso dizer que a poesia e a prosa de Jessier Quirino é, atualmente, nossa “Bandeira Nordestina” (título de um dos seus livros). Mas bandeira de quem se orgulha, de quem não nega suas origens e berra aos quatro ventos o valor da alma poética e guerreira de um povo que, mesmo vítima da ignorância e do preconceito, não se rende.




Da Série “Sobre Pessoas” inspirada na publicação do escritor também nordestino Antônio Torres.


sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Sobre Pessoas 3

(Hoje vos apresento a terceira crônica do livro "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres)


Um modo de ser campeão do mundo


De Garrincha - Sobre pessoas 3



Tudo voltou ao normal na redação da Última Hora de São Paulo, assim que, naquele ano de 1962, a sua tropa de repórteres e fotógrafos regressou do Chile, bafejada pela glória de ter sido testemunha ocular da segunda conquista brasileira em uma Copa do Mundo. Na retaguarda, ficaram os que de fato iam fazer o jornal circular, até em edições extras, que esgotavam rapidamente nas bancas. Três deles – entre os quais se incluía o autor destas linhas – ganharam um prêmio de consolação. Uma viagem ao Rio de Janeiro, aonde chegariam ao amanhecer de um dia em que as musas deviam estar despertando para inspirar poetas como Antônio Maria, o de Manhã de Carnaval e Valsa de uma cidade.

Bem, cá estava eu, crente que ia ter tempo para pegar um bronze em Copacabana. E para perder a respiração no Corcovado e no Pão de Açúcar, que só conhecia de cinema ou através dos cartões postais. Para descobrir os templos da bossa nova e do samba do morro. Para cair na gandaia. E eis que, de repente, uma notinha do Jornal dos Sports, o cor-de-rosa, fez cessar tudo que a antiga musa cantava. Não era que Mané Garrincha ia dar uma festa? E sabe onde? Em Pau Grande, lá na Raiz da Serra, em que havia nascido e ainda vivia.

Corri para a Praça da Bandeira, pois a redação da Última Hora carioca ficava naquelas bandas. E, ofegante, cheguei à sala do seu editor de Esportes, um francês gordo e afável – um modo de ser gordo é ser bonachão -, chamado Albert Laurent. Esperava que ele já soubesse que o anjo das pernas tortas, bicampeão mundial, o “Demasiado Garrincha” que tanto fascinava o mundo, a alegria do povo etc, agora ia combater à sombra, longe dos holofotes e do glamour do Rio. Não, ele, o chefe Albert, não sabia de nada. Mas tratou logo de escalar carro e fotógrafo (um outro iria participar da expedição, voluntariamente), para a cobertura do evento, no dia seguinte, um domingo.

Então nós fomos, atingindo o nosso objetivo por volta das 11 horas da manhã, quando descemos de uma Kombi na praça principal de uma vila operária, que gravitava entre um morro e uma indústria de tecidos, a América Fabril. Garrincha morava numa casinha daquela praça, igual a todas as outras. Não foi difícil descobri-la. Era a de maior entra-e-sai da vizinhança, ajudando nas providências do almoço, a ser servido num abrigo, o ponto de encontro da comunidade.

Entregue ao afã de carregar engradados de cerveja e refrigerantes, enquanto as mulheres se encarregavam de copos, pratos e talheres, de vez em quando ele embocava pela casa adentro, para dar uma olhada no leitão que estava assando em sua cozinha, e cujo cheiro sentia-se da porta. Concentrado numa lida que ia do seu espaço privado ao público, ele dava a impressão de não querer perder tempo com conversa, muito menos com quem nem estava convidado. Para todos os efeitos, o ágape fora planejado apenas para os íntimos, ou seja, os da sua tribo e ninguém mais. Apesar disso, ele não se recusou a posar para uma foto, ao lado da mulher, dona Nair, e tendo as sete filhas do casal formando uma espécie de escadinha, da mais velha à última, bem pequenininha. Claro está que bastava esta para pagar a viagem. Na manhã seguinte, tal foto dominaria a primeira página do jornal, tanto na edição de São Paulo quanto na do Rio.

Não tardou a chegar mais um carro, este do Jornal do Brasil, trazendo o Oldemário Toguinhó - um repórter que fez escola e história -, também com um fotógrafo a tiracolo. Concorrência na parada. E mais estranhos no ninho do Garrincha, que continuava de bico calado. Até ver que a mesona posta no abrigo estava totalmente preparada. Então ele olhou em volta e disse: “Chegou a hora”. Não, não era a de avançar sobre o leitão assado. Mas a de subir o morro e bater uma bola, para abrir o apetite. Lá em cima havia um campinho de futebol, onde ele fora descoberto por um olheiro do Botafogo. Era lá que Mané Garrincha ia fazer a sua primeira partida, depois da Copa do Mundo, no Chile. E no mesmo time de outros tempos - com os seus inseparáveis amigos Suíngue e Pincel -, que perdeu de 1 x 0 para o outro, de todos os outros do lugar. E este resultado virou manchete, que a UH noticiou como “furo” nacional, pois naquele tempo o JB não circulava às segundas-feiras.

E assim se conta também, e por tabela, um modo de ser repórter brasileiro.

Ele era a alegria do povo, o anjo torto, a cujos pés se curvava o mundo em duas Copas. A da Suécia, em 1958, e a do Chile, em 1962.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

HORA DA REAÇÃO


Por Cineas Santos



De Hora da reação - Cineas Santos


Dia desses, remexendo um velho baú de “inutensílios”, garimpei uma pepita rara: um CD do Dick Farney com 14 pérolas da MPB. Entre as joias, figuram: “Copacabana”, “Não tem solução”, “Marina” e “Apelo”. Não bastasse isso, Dick dialoga com Lúcio Alves na faixa “Tereza da praia”, de Jobim e Billy Blanco, coisa de tirar o fôlego. Meus três leitores sabem quem foi Dick Farney e o que representa para a música brasileira. Para os mais jovens, uma dica de Ruy Castro: "Poder-se-ia dizer que Dick Farney foi uma espécie de S. João Batista da bossa nova – seu apóstolo e anunciador, o homem que primeiro congregou os fiéis para anunciar-lhes a boa nova e, ele próprio, um pregador suave, mas eloquente”. Para usar a linguagem da galera, na década de 50, Dick Farney era “o cara”.

Feliz como um garoto que acaba de ganhar a primeira bola de futebol, pus o CD no som do carro e deixei que o velho Dick me acariciasse os tímpanos por horas a fio. Parado no semáforo, ouvia “Aconteceu um novo amor/que não podia acontecer/não era hora de amar/ agora o que vou fazer?”, quando senti um abalo sísmico. Meu carro tremia como se sacudido por um terremoto. Nonada, como diria Guimarães Rosa, era apenas uma Hilux, preta azeviche, parada ao meu lado. A caçamba da caminhonete transportava um som capaz de curar a surdez pétrea do velho Beethoven. A música, digo, a laúza era, para variar, um desses “forrós” made in Ceará. No volante daquele bólido de 160 cavalos, um potro saradão, cabelos recobertos de gel, camiseta regata e ar petulante. Por um segundo, pensei em perguntar-lhe: – Moço, meu Dick está incomodando você? Mas, em boa hora, lembrei-me de que esses bem-nascidos desconhecem o sentido da palavra limite e não têm o menor respeito por ninguém, menos ainda por velhos. Limitei-me a levantar os vidros e esperar, aflito, que o semáforo me libertasse daquela tortura. Sinal verde: o moço se foi com seu cometa ruidoso. Naquela noite, a sorte não pegara carona no meu carro. Parei no outro semáforo, Dick sussurrando: “Eu, você, nós dois/ aqui nesse terraço à beira-mar/o sol já vai caindo...”, a terra voltou a tremer, minto, a vibrar. Ao meu lado, num carro médio, duas jovens esbaldavam-se ao som, digo, ao ruído de uma banda de forró, made in Ceará... Não seria a mesma do carro do rapaz? Impossível saber: são todas tão parecidas que, no meio das “músicas”, tem sempre alguém gritando o nome da banda para que se possa distingui-la das outras...

Incomodado, me perguntei: será essa merdalhada toda apenas uma jogada comercial bolada por um "gênio" ou terá algo mais grave por trás disso? Não será parte de um processo de imbecilização posto em prática pela indústria da maldade? Como ainda não encontrei a resposta, resolvi assumir parte da culpa. Explico: alguém já lhe feriu os tímpanos com boa música? Duvido! Quem gosta de música é sovina: ouve baixinho, curte sossegadamente, não divide com ninguém a não ser com a pessoa amada... Pois proponho aqui uma reação em cadeia: vamos botar Gil, Tom, Caetano, Milton, Chico, Elis, Ney, Marisa e até o sussurrante João no volume máximo, a toda brida. Vamos incomodar, com música de qualidade, os viciados em lixo ruidoso. Uma advertência: poderemos ser presos em flagrante por grave atentado ao despudor reinante.



terça-feira, 10 de novembro de 2009

Aos Mestres Com Carinho






Dentre os motivos que se deve ir a uma bienal do livro, destaco as palestras. Mesmo as ruins, são boas.

Numa bienal do livro há palestras e oficinas para todos os gostos, credos e ideologias. Pode-se encontrar padre falando de Padim Ciço Romão Batista, o Padre Cícero de Juazeiro, ou a Maitê Proença negando sua vocação a atriz, decerto, decepcionada com sua performance no vídeo feito em Portugal e que quase gera uma crise diplomática.

Alguns palestrantes decepcionam, principalmente os de autoajuda (essas palavras compostas que perderam o hífen é um saco!), pois geralmente o ouvinte que adentra a esse tipo de palestra vai em busca de aconselhamentos para vencer na vida sem fazer muito esforço. Sai desnorteado com a enxurrada de propaganda do livro do palestrante. Quem quiser saber como ficar rico, primeiro terá que empobrecer na banca do vendedor de livro.

Os palestrantes globais são os mais concorridos. A prova disso foi o que aconteceu na palestra da Maitê Proença: o público quase põe abaixo o auditório onde ela ia conversar abobrinha com o povão. E tiveram que arranjar um espaço maior. Pra variar, ela atrasou quarenta minutos e o zé-povim não reclamou. Só o meu exército revolucionário de dois soldados e eu, perfilado no fundo do auditório, protestamos a favor da igualdade de direitos: se os outros palestrantes tinham que obedecer horário, a Maitê também tinha. Como nossas palavras de ordem passaram a ter ressonância no auditório, uma moça simpática e gentil nos arranjou onde sentar, bem à frente da mesa. E, por causa de três míseras cadeiras, deixamos calar a nossa voz. Mas a Maitê entrou em seguida, de saia justa, quebrando o protocolo, antecipando sua fala à apresentação protocolar de praxe.

Assim, reconsiderei os argumentos dos portugueses quando a chamaram de burra: ela não é burra; é grossa mesmo. Em protesto, fomos para a palestra do Salgado Maranhão (mas nós íamos de qualquer jeito. Estávamos lá só fazendo hora).

Os escritores midiáticos só perdem mesmo numa bienal nordestina para o ícone paraibano da poesia matuta Jessier Quirino. Esse é demais. Na palestra-show do mesmo havia gente vazando pelo ladrão. Em seguida à palestra, formou-se uma fila imensa no stand da Editora Bagaço para comprar (e autografar) seu livro, que vem com um cd de brinde.

Os organizadores da bienal insistem em manter palestras paralelas quando há determinadas atrações populares, como foi o caso do Jessier e da Maitê. Com gente subindo pelas paredes no auditório no dia da apresentação desses dois, sobrou espaço na sala de palestras, que, coincidentemente, eram os meus amigos Maurício Melo Júnior e Salgado Maranhão. É uma pena, pois eles foram ótimos. E no dia do Salgado Maranhão havia também outros poetas não menos competentes: Geraldo Carneiro e esposa.

A do Ignácio de Loyola foi antológica. Vinícius, meu filho de doze anos, saiu maravilhado. Se o Ignácio, que ao longo de sua vida só escreveu para adulto, consegue encantar uma criança numa palestra para gente grande, então está explicado o sucesso do seu livro infantil.



Um agradecimento. Aliás, quatro.
A Maurício Melo Júnior e aos professores Gerson Guimarães e Gorete Amorim e ao meu vizinho Ivânio Cunha por servirem de motorista por conta de minha habilitação estar vencida.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

História, o enredo gosta é de briga - Raimundo Carrero




De Chuva - A história e o enredo - Raimundo Carrero


Narrativa e conflito têm conceitos diferentes embora gerados no mesmo ventre.

Quase sempre a história é confundida com enredo. Ou sempre. Mas são manifestações artísticas bem diferentes. O escritor – iniciante ou não – deve distinguir isso muito bem, de forma a conquistar um aliado técnico, tanto na estrutura interna da intriga, quando na escolha dos capítulos, cenas e cenários. E, é claro, até mesmo nos diálogos. Sempre com muita atenção. As diversas formas de diálogo têm função e efeito.

Uma história não aprofunda os questionamentos nem tem conflitos. Lembra muito o argumento. Alguns autores chegam mesmo a chamá-la de argumento, o que quase não fazemos, porque não acreditamos neles. De cara, entramos nos textos que já queremos definitivos. Não é bem assim. Uma história ajuda a criar enredos, estes, sim, possuidores de confrontos, conflitos, questionamentos, estranhamento, cenas e cenários. Na maioria das vezes significam intriga.

Então podemos dizer, com certeza que:

a) História é uma narrativa linear, sem conflitos, ou sem aprofundamentos de conflitos e confrontos; às vezes com divergências.

b) Enredo é uma narrativa em que os personagens estão sempre em oposição, o que gera conflitos, confrontos, questionamentos.

Exemplo de história:

a) Naquela noite, Maria foi ao cinema mesmo enfrentando uma chuva forte. Podia deixar para outro dia, é claro, mas gostava do barulho da água no teto – ainda era um daqueles antigos e resistentes cinemas de bairro - e por isso saiu decidida. Além disso, sentia-se bem vestindo um pulôver, o que nem sempre fazia, porque morava numa cidade quente. Imitava as heroínas que andavam nos bairros românticos, com os braços cruzados, sonhadoras, quem sabe não surgia na esquina, na próxima esquina, o primeiro namorado? Não havia filas para a compra de ingressos e ela aproveitou para comprar batatinhas. Como estava no intervalo, escolheu, sem pressa, uma cadeira em lugar privilegiado. O ar deixava a sala ainda mais fria. Cochilando, nem percebeu quando o antigo namorada se sentou a seu lado. Tanto que gostaria de beijos e abraços, como nas outras vezes. Levantou-se e saiu. Se ele a acompanhasse, quem sabe, não é? Ainda olhou para trás e não ninguém. Só a rua quieta, solitária.

Exemplo de enredo:

b) Naquela noite, Maria teve que discutir com a mãe, a ponto de chamá-la de velhota retardada, para ir ao cinema, mas a mulher temia um resfriado ou, dramática: até mesmo uma pneumonia, e que a levaria, quem sabe, ao leito de um hospital. Tudo por causa da chuva. Não, não podia ir outro dia e era até bom ouvir o barulho da água no teto, aproveitando o cinema antigo, ultrapassado, um raro exemplo de resistência. Uma sombrinha? Uma sombrinha nada, a chuva ainda era pouca, bastava um pulôver, que era charmoso e quase nunca usava-o, por causa do calor da cidade interiorana. De braços cruzados, viu quando o primeiro namorado cruzou a esquina, talvez pudesse encontrá-lo no cinema, para aquecer um pouco a sala fria. Depois de comprar o ingresso e a batatinha, escolheu um lugar bem discreto, onde eles se sentavam nos bons tempos. Nem percebeu quando o rapaz se sentou ao seu lado. Amor, ouviu, a palavra e pensou que fosse um sonho. Mas não deixou de sentir a mão que passava sobre seu ombro. Acordou no meio da fita. Percebeu que estava sendo amada, aos beijos e abraços. Não faça isso, ela disse. Bobagem, sempre foi assim. Ela se levantou. E saiu. Em casa, reconheceu que a mãe tinha razão. Não por causa da chuva. O perigo estava nas mãos sem luvas. Bateu na porta várias vezes. A mãe não parecia disposta a abri-la. Será? Já na sala, a mãe riu e foi dormir. Incrível: cheia de rancores. Mas não deixou de acrescentar que ela devia se comportar melhor da próxima vez.

No Brasil é fácil encontra “Uma vida em segredo”, de Autran Dourado. Ou no filme de Suzana Amaral. Aliás, Autran tem muita preocupação com isso. Ele diz que enquanto o leitor está distraído com o enredo, o autor lhe bate a carteira. Pensam também na relação entre Charles e Madame Bovary – entre os dois não acontece nada, nenhum conflito Mesmo quando Emma desdenha da imagem de Charles. Entre os dois só há história. E, às vezes, nem isso.

Percebe-se, claramente, a diferença. O motivo da narrativa é o mesmo, mas a história cedeu espaço ao enredo. Quem não sabe que o enredo gosta mesmo é de briga? É preciso que apareçam os conflitos, os confrontos, a oposição entre personagens. “Um coração simples”, de Flaubert, tem história mas não tem enredo, mesmo quando Felicidade sofre uma decepção. Por quê? Porque a decepção é apenas um incidente rápido, não alcança o nível de conflito, ou de confronto, sobretudo do conflito dramático. É, quando muito, um problema – algo que perde a importância logo depois. Aparecem fatos, muitos fatos, que se sucedem e não complicam. Podemos apontar até mesmo esses incidentes, que se revelam banais na estrutura da história. Alguns deles são:

a) O esforço de Felicidade no trabalho;
b) A força de Teodoro e a tentativa de estupro;
c) A fuga de Teodoro;
d) Os filhos da dona da casa;
e) A morte do papagaio, etc.

Por isso, não raras vezes, Flaubert era acusado de ser apenas um autor da epopéia dos comuns. Basta dar uma olhada no ensaio que Henry James escreveu sobre ele. E “A morte de Ivan Illich”, de Tolstoi, é história ou enredo. História, com certeza. Porque o enredo some, restava a situação dramática do personagem. E só. Acontece o mesmo com “O Velho e o Mar”, de Hemingway. É possível dizer o mesmo de “Abril Despedaçado”, de Kadaré? A vida de Gjorg é um intenso drama cheio de conflitos mentais e reais. É brilhante a abertura do romance com o ser ou não ser, preparando a morte do inimigo. Ainda que ocorra uma aproximação com Shakeaspeare.

Não quer dizer, jamais, que uma história é menor ou superior ao enredo. Nem que o enredo é superior à história. De forma alguma. Trata-se, apenas, de uma técnica que o escritor escolhe sobretudo para se exercitar. Isso, para se exercitar. Um escritor precisa se exercitar sempre e nunca esmorecer. Devemos nos lembrar da velha frase de Flaubert, em carta a Louise Collet, depois de trabalhar muito e não conseguir os efeitos desejados: “Hoje sofri muitas decepções comigo mesmo”. Algumas pessoas deixam de escrever porque se decepcionam com o que narram. Logo perdem o ânimo. A coragem. A determinação.

Mas sem nunca esquecer: história revela-se pela linearidade; enredo só quer briga, com várias linhas narrativas, curvas, e sinuosidade.

É claro que tudo isso pode ser mudado. Pode ser alterado. Enfim, o autor tem completa liberdade para escrever a sua obra, ainda que não considere as técnicas. Sempre e sempre: a intuição está sempre em primeiro lugar, depois é que vêm as técnicas. Às vezes, a técnica intuitiva.
Cada autor com sua liberdade e sua ousadia. Mas custa estudar, custa?

sábado, 7 de novembro de 2009

Sobre Pessoas - 2



Atendendo a pedidos, adianto mais uma crônica do livro Sobre Pessoas, de Antonio Torres.

Para este fim de semana, nada melhor que esta entrevista com o imortal cineasta Glaubér Rocha.


De Sobre Pessoas 2 - Glauber Rocha

Dois encontros com Glauber

Gênio ou doido? Agora que o transformaram em personagem mitológico, recordo que o vi de perto (e por duas vezes) e ele se comportou como uma pessoa normal. Foi em São Paulo, no lançamento lá de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Ano: 1964.

Confesso, porém, que quando o ator Geraldo Del Rey me disse que Glauber Rocha havia marcado a entrevista para as 8 da manhã (e de um sábado!), achei que a sua fama de doido tinha algum fundamento. Madruguei para chegar pontualmente à casa do Geraldo, onde ele estava hospedado. Nem acreditava que Glauber, a figura mais discutida daquele momento (um crítico carioca chegara a escrever 25 dias seguidos sobre o seu filme), tão endeusado quanto detratado, e assim atingindo todas as colunas da glória, fosse receber um dos editores (o outro era o Franco Paulino) de uma revisteca chamada Finesse, que lembrava uma marca de papel higiênico. E que ainda por cima fora herdada de um colunista social falido, pelo gerente do hotel em que ele morava, como pagamento da sua hospedagem.

Uma sucessão de acasos fez com que fôssemos convocados por um repórter - de O Cruzeiro -, e poeta que admirávamos, o gaúcho de Rosário do Sul Carlos de Freitas, para tocá-la adiante. O nome da revista era ruim, ele disse, mas podíamos fazer do legado do mosquito de bunda de grã-fino uma folha de rosto da cidade. O hotel garantia os custos da gráfica, pelo direito a um anúncio permanente na quarta capa. O resto era conosco. Mas sem salário. Tudo pela arte.

Topamos.

E fizemos com que a Finesse passasse a circular no eixo boêmio entre o Teatro Oficina, de José Celso Martinez Correia, ao Arena, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri – estendendo-se um pouco mais dali até o Juão Sebastião Bar, de Paulo Cotrim, que comprava uma centena de cada edição, para oferecer a seus clientes mais ilustrados. A tiragem, porém, era modestíssima: mil exemplares. O que isso poderia interessar a um Glauber Rocha, cuja carreira subia como um rojão de São João, em todas as páginas?

Pois acredite. Glauber já estava de pé às 8 horas da manhã daquele sábado. E, pelo visto, era a única pessoa acordada naquele prédio da Rua Santo Antônio, logo ao final, à direita, do Viaduto Maria Paula, e bem próximo do Ferro´s Bar, onde Geraldo Del Rey e sua bela Tânia deviam ter varado a madrugada. Com certeza ainda estavam em sono profundo. Eles e toda a vizinhança. Sinais de gente ali só os das minhas pisadas ao deixar o elevador e me encaminhar à porta do apartamento. E os passos de Glauber Rocha atrás dela. O silêncio permitia perceber que ele rondava na sala, à espera do toque da campainha. Recebeu-me com um formal aperto de mão. E não fez qualquer menção para nos sentarmos. Vai ver uma conversa ali iria acordar os donos da casa, pensei. Então puxei do bolso duas laudas com as perguntas que pretendia lhe fazer.

- Posso deixar isto, para você responder depois? – perguntei-lhe, falando baixo. Ele tinha 25 anos, apenas um a mais do que eu. Daí não chamá-lo de senhor.

Com um gesto de assentimento, acompanhado de um “Hum-hum”, deu uma olhada rápida no questionário datilografado, colocou-o sobre um móvel ao nosso lado, logo à entrada do apartamento, e me convidou para tomar um café com pão e manteiga, no botequim da esquina. Seu mal era a fome, voltei a pensar. Se não, o que havia sido feito da voz daquele cabra que tinha fama de ser falador como o cão? Às 8 horas da manhã, Glauber Rocha não combinava com a lenda noturna a seu respeito, que circulava nos bares de São Paulo. Nem parecia o autor de um texto exuberante – Memórias de Deus e do Diabo em terras de Monte Santo e Cocorobó -, que me provocara um impacto tão forte quanto um conto de João Antônio, o Malagueta, Perus e Bacanaço, publicado na mesma revista, a Senhor, que era editada no Rio, e que todo paulistano “por dentro” lia. Hoje, traduz-se esse “por dentro” como cult, ai! Meus sais!

Mas ora! Ele ia se dar ao luxo de sentar-se diante de uma máquina de escrever para trabalhar de graça para uma revista nanica! E ainda tendo de pagar do próprio bolso o desjejum do seu entrevistador! Era pouco ou queria mais?

Sim, ia ter mais.

De pé, mal-ajambrado nas vestes matinais, a barba por fazer, o cabelo desgrenhado e o umbigo no balcão do botequim, já matando quem o matava, Glauber soltou o verbo. E disse que havia lido todo o último número da tal revistinha. Elogiou o projeto gráfico (também, era de Valdi Ercolani, um diretor de arte top – meus sais de novo! – de linha). Quanto ao conteúdo editorial, tinha críticas a fazer, com um pedido de desculpa por estar se metendo em meu trabalho. “Tenho alguma experiência em jornalismo”, ele disse, modestamente. “Editei cadernos culturais na imprensa baiana e agora colaboro regularmente com a revista Senhor, que é muito bem feita, como você deve saber”. Sim, sabia. Agradeci-lhe pelo interesse, leitura de tudo, comentários que quisesse fazer. Aí ele se sentiu à vontade para criticar os textos da revista, deixando-me embasbacado com sua capacidade de citar de memória trechos e mais trechos deles, não poupando os que considerava bobos.

- Veja se isso é lá uma boa maneira de começar uma frase: “Em sã consciência...” Você devia ter copidescado essa bobagem!

Expliquei-lhe que o autor era uma estrela da imprensa paulista, assim como os demais, todos grandes nomes do jornalismo, das letras e do teatro, que escreviam de graça. A revista era apenas uma curtição, para quem escrevia nela. Nós, os editores, Franco Paulino e eu, não nos sentíamos no direito de mexer nos textos de uma turma com tanto espírito de colaboração.

Foi aí que ele disse:

- Sendo assim, o negócio fica complicado. Mas como paulista escreve mal, hein? Você não acha?

Não. Não achava. Mas o jeito que ele falou isso foi engraçado. Encerramos o nosso café da manhã com pão e manteiga e uma boa risada. De pé. Será que ele nunca se sentava?

Na despedida, Glauber prometeu entregar a entrevista na segunda-feira seguinte, à noite, na porta do cinema, onde me enfiaria para a estréia paulistana de Deus e o Diabo na Terra do Sol.


O segundo encontro

Cheguei lá à hora combinada. E lá estava ele, de barba feita, banhado, escovado e vestido com um paletó azul. E a entrevista num bolso. Fez a entrega dela, em mãos. E me empurrou para dentro cinema.

Vi o seu filme com os pés em suspenso, sem conseguir mantê-los no chão. Grande filho da mãe. Como havia chegado a tanto, mais ou menos na minha idade? Quando os aplausos cessaram, um homem começou a discursar, com a voz inflamada, no mais altissonante estilo revolucionário. Saio. E reencontro o Glauber, andando de um lado para o outro, na ante-sala do cinema. Parece que ele nunca se cansa de ficar de pé, pensei.

Ao me ver, parou. E perguntou:

- O que você achou?

- É o seu filme definitivo.

- Não diga isso. Ainda vou fazer muitos.

Ali fora, dava para se ouvir uma nova saraivada de palmas, em meio a assovios e apupos. Glauber balançou a cabeça de um lado para outro, visivelmente contrariado. Disse:

- Estou preocupado com essa assembléia aí dentro. Pode dar encrenca com os militares.

Então me contou que, naquele ano do golpe militar, ele fora obrigado a exibir o Deus e o Diabo na Terra do Sol para um grupo de oficiais do Exército, para obter a liberação da fita. Numa fala do “capitão” Corisco, interpretada por Othon Bastos – “Homem, nessa terra, só tem validade quando pega nas armas para mudar o destino. Não é com rosário, não, Satanás! É no rifle e no punhal!” -, ele sentiu uma mão bater-lhe no ombro. Apavorado, olhou para trás. E viu um major alagoano, que lhe disse: “Pode botar esse filme nos cinemas, cabra. É um filme de macho!”

Nunca mais o vi, em pessoa. Nunca mais ele teve 25 anos e eu 24. Nunca mais foi tão fácil chegar perto de um homem tão talentoso, já a caminho de tornar-se uma celebridade internacional, com tanta atenção para um qualquer, que tomava o seu tempo a troco de nada, sem que ele se sentisse assim. Glauber Rocha me entregou, numa segunda-feira, as respostas ao questionário que lhe passei, no sábado anterior. E isso num momento em que ele estava envolvido com o lançamento do seu célebre filme, ou seja, em que estava no centro das atenções. Visto isso agora, em retrospectiva, me impressiona tanto a disposição dele em responder a todas as minhas perguntas, quanto a epígrafe que escreveu para a entrevista, que vai abaixo, do jeito que ele fez, entre parêntesis e em letras minúsculas:

(se eu morrê nasce outro,
porque ninguém nunca pode
matar são jorge, santo do
povo – capitão corisco, plano
265, seqüência 446, de um fil-
me rodado em monte santo
e cocorobó, sertão brabo)


Epílogo

A entrevista de Glauber foi endeusada e detratada, como era previsível. Um sucesso! Mas, depois da sua publicação, a revisteca iria ficar com os seus dias contados. Só teve mais uma edição, com destaque para uma reportagem de Eurico Andrade, intitulada “Chapéu de Couro, o Cangaceiro Bossa Nova”.

A última reunião com o patrocinador:

– Um leitor da revista esteve aqui e me fez muitas perguntas - disse o gerente do hotel que bancava as faturas da gráfica. – E nenhum elogio ao trabalho de vocês.

Era um coronel.

Mesmo tendo o seu nome no expediente como diretor-proprietário, aquele gerente (chamava-se Pio) nunca se metera no que estávamos fazendo ou deixando de fazer. Agora estava se metendo, de uma vez por todas. Por medo, o mais humano dos sentimentos, já o disse o sábio Millôr Fernandes.

E assunto encerrado.


A entrevista de Glauber Rocha, aos 25 anos

(Com os devidos agradecimentos ao cineasta Eduardo Escorel, que a guardou, e a Anabela Paiva, que selecionou os trechos que vão aqui, republicados por ela e Regina Zappa, na capa do Caderno B do Jornal do Brasil, em 27 de dezembro de 1997. Não menos: a Franco Paulino).


“Eu esnobo a técnica: não sei mexer em moviola, não manjo nada de som. E acho que câmera tem alma”.

Sobre Deus e o Diabo na Terra do Sol:

“Não tem nada de novo. Desde a criação do mundo que Deus anda de mãos dadas com o diabo. Apenas o velho fica sempre esquecido e por isso quando é redescoberto aparece com ar de novidade. O filme é tão novo como as baladas romanescas da Idade Média, como o Apocalipse, como a tragédia, como o latifúndio que só é novidade (mesmo) no nosso sertão”.

Técnica

“Segundo Alberto Cavalcanti, a técnica esconde o lixo. Eu esnobo a técnica. Pra seu governo, não sei pegar em fotômetro, não sei mexer em moviola, conheço mal o jogo de lentes, não manjo nada de som. Mas sei que a melhor técnica é aquela que expõe aquilo que a gente quer dizer. Assim, eu e o meu parceiro de fotografia, Waldemar Lima, estamos sempre em expectativa, observando os atores, a paisagem, a luz, buscando o clima. O clima vem quando a câmera fica mágica. Câmera tem alma. O negócio é fazer mandinga e esperar o santo descer. Aí então a gente é bem capaz de fazer um take de quatro minutos, na mão, entre luz e sombra, entre foco e fora de foco, balançando ou não. Será possível ir aos infernos de outra maneira?”

Repercussão no exterior

“Esse negócio de repercussão na Europa é conversa típica de gente subdesenvolvida e colonizada. Pra mim, fama na Europa não significa nada. É verdade, falando sério. A crítica francesa, falando bem ou mal, não muda nada. Eu não topo aqueles caras dos Cahiers - um bando de literatos, que vive na superestrutura, falando bobagem. Os italianos são melhores, mas são radicais, historicistas demais. Os ingleses são quadrados e frios. Assim, pouco me interessa o que me digam. Falaram bem de Deus e o diabo mas se tivessem falado mal eu juro que não me abalaria. A única opinião válida para mim é a da juventude e do público. A juventude gostou pra valer, e o público gostou e desgostou. Assim eu acho que vinguei 75% e isto já é muito, e isto me enche de vontade pra jogar pra frente e botar pra jambrar na próxima fita”.

O que Glauber quer?

“Fazer onda. Abrir bate-papo sobre assuntos sagrados. Demolir os figurões, os produtores boçais, os diretores comerciais, os exibidores ladrões. Discutir e achar que o cinema novo, o cinema de autor, é o que vale. Tudo o que digo pode não ter importância um mês depois, mas na hora funciona. Sempre. É por isso que eu tenho muitos inimigos. Mas tem colegas que compreendem e continuam meus amigos. Veja o (Walter Hugo) Khoury, por exemplo. É um autor, um artista sério, pesquisador, firme nos seus propósitos. Eu discordo do cinema dele, mas apenas no plano das idéias. E no fundo admiro a obsessão de um cineasta que procura um objeto difícil mas que, hoje acredito, será alcançado. Digo isso para esclarecer a quem pensa que eu combato o Khoury”.

Arte brasileira

“Não existe ainda a verdadeira arte brasileira. Estamos procurando. O Tom (Jobim) na música, o (Jorge) Mautner no romance, o (Lindolfo) Bell na poesia, o (Gianfrancesco) Guarnieri no teatro e muitos outros – todo mundo procurando, cavando a terra e a angústia, cavando a alma e o sistema social, cavando a estética e a linguagem. Todo mundo está atrás, trabalhando em várias veredas – como no sertão. Acho que a arte brasileira está nascendo desde o teatro de Anchieta – é um processo que vai levar mais 600 anos. A raça, a terra, a natureza – o nacionalismo vem desde aquele horroroso Basílio da Gama. José de Alencar, Lima Barreto, os poetas românticos, Augusto dos Anjos, Machado de Assis, Raul Pompéia, Nepomuceno, Mário de Andrade, Portinari, Volpi, Villa-Lobos, Niemeyer, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, o poeta Vinicíus, Nelson Pereira dos Santos e Zé Kéti – estão todos na jogada. É preciso ter abertura, abertura mesmo, porque todo grande artista é um revolucionário. Arte e liberdade é um corpo só, cangaceiro de duas cabeças, como dizia o capitão Cristino, vulgo Corisco”.

O sertão

“Eu sou do sertão. No sertão tem muitas veredas, como diz o mestre Guima. No sertão, afinal de contas, a gente bebe uma selvagem metafísica. Aliás, sou do sertão, modéstia à parte, como também o mestre Villa-Lobos. Esta é a mistura – o resto é coisa do cão, do demo, do sol, do amor. Está por dentro?”

Público

“O povo entende na medida do possível. Não entendo direito de público. Acho que o negócio é não ser quadrado, isto é, dar chance para todos pensarem. Ser intelectual ou não ser é besteira. Intelectual, pra mim, é um camarada que fica falando em mesa de bar e pichando todo mundo”.

Influências

“Faulkner, Buñuel, Eistein e Joyce, Graciliano Ramos e bate-papo de esquina, a Bíblia e sobretudo Villa-Lobos, Kurosawa e os westerns americanos, Rosselini e Paulo Saraceni, a Bahia e a luz atlântica, o amor, o meu poeta Vinícius, Guimarães Rosa e música do Nordeste e Carlos Drummond, São Jorge, Sebastião, Parsifal, Visconti, Romeu e Julieta, Aquiles e Salomão, Didi, Pelé e Garrincha – sem os quais é difícil fazer com classe, eficiência dramática e malícia improvisadora que destrói os esquemas e transforma a tela em projeção da vida. Eu sou produto da minha vida mesmo e da minha razão que tenta emergir do caos, caos com K, se é que o Mautner aceita”.

Resistência cultural

“Acho que o melhor negócio agora é resistência cultural. O povo precisa de resistência cultural. Muita coisa está errada, os artistas pensavam mas não estavam com o povo. Só deve existir a estrutura pessoal, libertária, rebelde, incomodativa, revolucionária e transformadora do artista falando numa linguagem tão profundamente humana que todos entendam. Se não tivermos resistência intelectual vamos cair na mais negra miséria, vamos cair no fascismo, vamos ver a democracia ser apenas um rótulo demagógico. Quando um povo começa a ser amordaçado, o artista deve abrir a boca bem alto e falar tudo, denunciar. O inimigo da política é a Arte. Você veja na Espanha, veja na Rússia, veja nos Estados Unidos. Quando os caras engrossam de um lado, os artistas engrossam do outro”.

Gênio ou doido?

“Não sou nada disso. Talvez eu seja apenas inconseqüente. Deixa a maturidade chegar para eu ver direito. O que eu acho, como diz o poeta Vinícius, meu irmão mais velho, é que quem de dentro de si não sai entra direto pelos canos. O negócio é câmara na mão e idéia na cabeça”.

Entrevistas

“A gente deve falar pouco, porém firme. Agora, se é para falar mesmo, tem que ser como mestre Villa: os violoncelos tudo doido, as trompas tudo alucinada, os tambores tudo correndo, os travelling, tudo montado sem continuidade. Geraldo Del Rey e (Antônio) Pitanga gritando, Waldemar no rodopio, o mar atlântico rebolando – de uma forma que quando a razão recusa o coração aceita e perdoa. Não é assim no amor?”