De Navio negreiro e piscinão de ramos |
De Navio negreiro e piscinão de ramos |
Em Maceió o Censo 2007 ficou emperrado por conta de algumas pessoas terem se negados a receber os recenseadores em suas casas. Apesar da garantia oferecida pelo IBGE, alguns moradores usaram a desculpa da violência urbana para não abrirem as portas aos contadores de gente, geralmente jovens estudantes em busca de rendimento extra.
Com esse mesmo argumento impedem que o mata-mosquito faça seu trabalho de profilaxia da dengue, deixando a população à mercê do famigerado mosquito aëdes aegypti, causador de tantas dores e óbitos. Por ser uma questão de saúde pública, o Ministério Público se aliou à Secretaria da Saúde e prometeu abrir ações processantes contra os disseminadores do grande mal do verão, depois do câncer de pele, claro.
Será que é apenas o medo que faz certas pessoas abraçarem o individual em detrimento do coletivo? Em Alagoas há poucas industrias de grande, médio ou pequeno porte e a mão de obra ativa se aglomera na senzala das usinas. Ainda se pratica a agricultura de subsistência e a monocultura da cana-de-açúcar domina as áreas férteis. Possui um dos IDH mais baixo do país, a menor renda per capita, os mais altos índices negativos e, no entanto, sua capital, Maceió, posa de cidade próspera: todo dia surgem apartamentos luxuosos totalmente vendidos; concessionárias de carros de luxo reduzem a pó as revendedoras de carros populares.
Talvez o medo do amigo do alheio seja só desculpa para não se escancarar publicamente certas riquezas emergentes, sem a devida comprovação da licitude da renda, tal qual a fertilidade e valorização de bois de certo senador e de polpudos honorários a braços armados da elite política.
Em idos tempos, no interior da Bahia, o medo do recenseador tinha outra justificativa. O supervisor do Censo local recebeu reclamação de que um cidadão metido nas brenhas da roça se negava receber o contador de gente. Ou fugia ou se escondia. O superior tomou a si a tarefa. Bateu à porta do jeca total.
- Ô de casa!
- Ô de fora! Quem é? – perguntou uma senhora.
- É do Censo! – respondeu.
- Corre, Benedito! É o homi do Guverno! – gritou desesperada.
Um homem, saído do nada, pulou a janela da sala e saiu correndo pelo descampado do terreiro. Seria o tal Benedito? O supervisor montou no cavalo e foi atrás. Laçou o homem como se laça um boi na caatinga. O capiau estancou, se ajoelhou e implorou:
- Por favor, seu Censo, não tome as minhas terras!
Mas, a cada censo, uma história a ser contada. Não faz muito tempo que se discutia qual era a real cor do brasileiro. Havia brancos, pardos, mulatos, índios, mamelucos, chocolate, café com leite, marrom glacê, as sete cores do arco-íris, menos o preto. Em São Salvador da Bahia, reduto do orgulho afro, o preto deixou de ser preto para assumir a “baianidade nagô” balançando a bundinha na subida do Pelô. Baseada nessa premissa, uma madame chique, em uma padaria chique, no chiquérrimo bairro do Farol da Barra, chamou o balconista, um negro de dois metros de altura por outro tanto de largura:
- Moreno! Ei, moreno! – apelou.
- Moreno, não, sua madame racista! Sou negão mesmo!
Este era um negro orgulhoso de sua raça, disposto a não deixar um branco tingir sua cor, mesmo sendo um simples balconista e ela uma cliente cinco estrelas. Era um senegalês legítimo, altivo, zeloso de sua cor, tal qual o poeta Léopold Sédar Senghor, primeiro presidente do Senegal independente e um dos mais destacados membros da Academia Francesa de Letras.
Poema para meu irmão branco
Léopold Sédar Senghor
Querido irmão branco.
Quando eu nasci, eu era negro,
Quando eu cresci, eu era negro,
Quando estou ao sol, eu sou negro,
Quando estou doente, eu sou negro,
Quando eu morrer, eu serei negro.
Quanto a você, homem branco,
Quando você nasceu, você era rosa,
Quando você cresceu, você era branco,
Quando você está ao sol, você é vermelho,
Quando você está com frio, você é azul,
Quando você está com medo, você é verde,
Quando você está doente, você é amarelo,
Quando você morrer, você será cinza.
Agora, de nós dois,
quem é o homem de cor?
Quem é o homem de cor, cara-pálida? No antigamente de Copacabana, quando as madames caras-pálidas levavam seus cachorrinhos para fazer cocô no calçadão mais famoso do Brasil, algumas vezes paravam para tricotar com algum negro de suas relações. Se flagradas por alguma amiga em conversa iorubana, assim se justificavam:
- Ele é um preto de alma branca!
Pronto: achada a fórmula para se acabar com o racismo no Brasil e no mundo: preto com alma branca. Tão simples quanto uma equação matemática. Tão fácil quanto pescar de bomba em aquário. Na contramão da singeleza desse argumento preconceituoso, escreveu o poeta negro pernambucano Lepê Correia, em seu livro de poesias “Caxinguelê”:
Nego Afoito
Podem me chamar tiziu
Toco preto ou azulão
Toco de lenha queimada
Me chamem de tisna ou tição
De nego da alma preta
Fazedô de confusão.
Podem dizer que sou feio
(Macaco num perde não)
Sou escuro que nem breu
Sou parente de carvão
Que minha alma é suja
Que nem a alma do cão
Que jabuticaba é alva
Se fizer comparação
Que sou tição de fogueira
Depois que passa são João
Que sou borra de cuvitêro
Lá nos confins do Sertão.
Que das coisas pió do mundo
Eu sou a consumação
Que sou briga em fim de festa
Que pareço um boi tungão
Que sou tudo o que não presta!
Mas que tenho a alma branca, NÃO!
Mas não foi por causa deste poema que o preconceito mudou de cor. Os farofeiros suburbanos descobriram simultaneamente sua cidadania e o mar de Copacabana. Assim como os pretos e os paraíbas, também se tornaram a bola da vez dos puros de sangue e cor. Dondocas chateadas reclamam da plástica e da farinha tarada que encarna em seus microbiquinis. Como paliativo, construíram o Piscinão de Ramos para segurar a plebe rude em seu reduto, mas periferia é feito formigueiro e seria preciso mais de mil piscinões para se manter o povo em seus domínios. Serão construídos, duvide não da capacidade dos nossos políticos em governar para a elite. O importante é deixar Copacabana para a nata social, com seus sucrilhos e limonadas geladas.
Quem teve a oportunidade de assistir ao documentário “Faixa de Areia”, sentiu as cores do preconceito na areia de Copacabana e Ipanema. As cineastas Daniela Kallmann e Flávia Lins e Silva expõem cruelmente a face dessa segregação latente e, em tomadas alternadas entre os invasores e os pseudos donos do pedaço, escancaram o apartheid existente nas areias de Copacabana: a demarcação territorial dos gays, das lésbicas, dos farofeiros fugidos de Ramos, dos pretos, dos gordos, dos magricelas desenxabidos e dos adoradores do capim seco.
No Porto da Barra, em Salvador, também campeia o mesmo preconceito suburbano de Copacabana. Quando a Prefeitura criou a linha de ônibus do subúrbio e de bairros populares passando pelo Porto da Barra, as madames também chiaram. E chiam. Hoje, menos. O medo da censura pública e de um processo judicial amordaça o preconceito de muita gente. Mas, no início, a reação era uníssona:
- E agora? Minha praia invadida por farofeiro?
Atentai, almas brancas, para a posse iminente: “Minha praia”! Compra-se uma casa financiada pelo Sistema Financeiro de Habitação, e já se faz dono do pedaço inteiro, mesmo com o oficial de justiça batendo à porta, em penhora de calote à Caixa Econômica Federal.
Xangô, o deus da Justiça, um dia ouviu o clamor dos injustiçados e desceu sua ira com fúria total sobre os sublimados moradores do Porto da Barra e adjacências, ampliando o domínio do carnaval baiano, empurrando para o outrora sossegado bairro do Farol, a axé music e toda sua parafernália eletrizante. Seria o supra-sumo do castigo aos ímpios se o diabo ocidental não tivesse consolado os brancos pálidos e loiras oxigenadas do metro quadrado mais caro da Bahia com seu sádico axioma: preto pobre e suburbano que estiverem no carnaval da Barra, ou estão catando lata ou puxando corda nos blocos de trio.
É por isso que digo, afirmo e confirmo: o Piscinão de Ramos e os blocos de corda de Salvador têm tudo a ver com os navios negreiros.
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