quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Cambalhotas Para Ninguém

Por Cineas Santos


De Praça do Marquês, Teresina, Piauí. Foto Rhaony Rezende


No final do milênio passado, num arremedo de crônica sobre Teresina, afirmei: ainda não é uma grande cidade, graças a Deus. Ainda há quintais, mangueiras, passarinhos e meninos para persegui-los. Remexendo o baú de “inutensílio”, encontrei a crônica e, consternado, constatei que ela está bem mais velha do que eu. A cidade de que falo parece perdida na poeira de um passado remoto. Hoje, eu diria: ainda não é uma grande cidade, mas, infelizmente, já padece de todas as mazelas que infernizam as metrópoles brasileiras. Trânsito caótico, engarrafamento, poluição sonora e visual e, principalmente, estresse e medo. Aquele medo “que esteriliza os abraços”, de que falava o poeta. A cadeira na calçada deu lugar às cercas elétricas; a pracinha do bairro foi trocada pela praça de alimentação dos shopings, em nome de uma suposta “segurança”. A cidade, numa velocidade desconcertante, vai perdendo aquele ar provinciano que lhe conferia faceirice e graça. A volúpia da novidade parece ter-se apossado dela com reflexos negativos. Na calada da noite, casarões antigos transformam-se em estacionamentos e, a despeito disso, os automóveis ocupam cada centímetro dos espaços destinados aos pedestres. Hoje, é mais fácil comprar um automóvel do que estacioná-lo no centro da cidade...

A exemplo de qualquer grande cidade brasileira, nos semáforos de Teresina, ambulantes pedintes e malabaristas disputam as moedinhas esquecidas no porta-lixo dos automóveis. Para evitar o assédio, os motoristas levantam os vidros ou aumentam o volume do som. À noite, já não é prudente parar em lugar algum, mesmo que isso implique o risco de multa pesada: melhor perder ponto na carteira que a vida. Um amigo cínico explica tudo com sua lógica enviesada: “somos todos reféns da barbárie civilizada”. Falta-me autoridade para contestá-lo.

Mas o propósito dessa arenga não é denunciar o óbvio nem lamentar o que já se perdeu. Quero apenas registrar uma prática lúdica, lírica e espontânea que, pelo menos duas vezes por semana, se repete na Praça do Marquês. Ali, nos finais de tarde, um grupo de garotos de idades variadas (de 8 a 17 anos) se reúne regularmente para praticar um pouco de ginástica: saltos mortais, cambalhotas, brincadeiras. Os mais experientes orientam os mais jovens que, a cada conquista, vibram como se estivessem conquistando pontos numa olimpíada imaginária. Quando erram, repetem o salto com aplicação e redobrado esforço. Como sinal de aprovação, recebem tapinhas dos companheiros. Normalmente, os transeuntes apressados não param para aplaudi-los; é possível que nem se deem conta da presença daqueles moleques vadios que, nas tardes de chumbo de Teresina, dão cambalhotas pra ninguém.

Às vezes, paro e fico espiando as estripulias daqueles garotos pobres que, indiferentes ao rugido furioso dos automóveis, apenas brincam como deveriam brincar todas as crianças da cidade: ao ar livre, sem o olho vigilante dos pais. Espiritualmente, brinco um pouco com eles enquanto, “sem querer saber de mim, a tarde desce”...


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