sábado, 17 de abril de 2010
Crônica Hélio Leite - Luiz Andrioli
O Papagaio
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De Papagaio |
Ao referir-se às entradas e bandeiras nestes sertões brasílicos, vem a tona a lembrança dos paulistas que desbravavam nossas matas e exterminavam as nações indígenas. Porém, os primeiros bandeirantes foram baianos e já realizavam expedições bem anteriormente, partindo da Cidade da Baía (Salvador) em direção ao Rio São Francisco, conhecida região dos Tapuia (denominação que os falantes do tupi davam a todos aqueles que não pertenciam à sua etnia nem falavam sua língua). Thomé de Souza foi um dos incentivadores da “caça ao índio” e oferecia imensas quantidades de terra àqueles que o fizessem. Francisco d’Ávila, proprietário da maior sesmaria em território baiano, foi responsável por sangrentos massacres. Nações "jê" desapareceram. Assim foi com os Paiaiá, primeiros habitantes da região entre os Rios Paraguaçu e Itapicuru – região onde atualmente se situa o Junco. Essa nação foi completamente exterminada logo nos primórdios do Brasil.
Num desses ataques, numa batalha atroz, alguns conseguiram fugir para o mato – não se sabe se conseguiram sobreviver e hoje pertencem àqueles grupos ressurgidos, antes dispersos, cujos membros viveram longos anos do trabalho semi-escravo nas lavouras dos senhores do sertão.
Triste história a dos Paiaiá, que alguns historiadores dizem ser os mesmos Marakaiá, povo guerreiro falante de um idioma do grupo macro-jê, do qual não se tem registro.
Conta-se que apenas um papagaio restou numa das aldeias como sobrevivente à extinção de toda essa nação. Ficara só, único naquelas paragens a repetir frases no idioma dos Paiaiá, desaparecidos, como último representante de uma nação dizimada pelos bandeirantes baianos.
Pousada sobre as ruínas daquela aldeia extinta, solitária e triste, a fiel ave cortava o silêncio daquelas lonjuras solitárias, monologando um idílio, naquela linguagem que ninguém mais compreendia. Era um fantasma diante do qual céleres com suas famílias, vindos do norte, também fugindo do extermínio, passavam os Kiriri, novos povoadores da região.
Extraído do livro "Arraial do Junco: Crônica de sua existência", desse escriba que vos fala.
quinta-feira, 15 de abril de 2010
Dias Inúteis e Dias de Homenagens
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De Beija eu |
Hoje eu acordei com uma novidade sussurrando ao meu ouvido: como se não bastasse tantas invenções inúteis, inventaram também o dia do beijo.
Em boa hora eu me lembrei dos cadernos de confidências das minhas primas, aqueles cujo teor intimista das perguntas, justificava o nome: confidência. Havia de tudo que povoa a inocência da época, desde qual o gosto do beijo ao supra-sumo do erotismo – o beijo de língua. Em alguns, havia a informação de que “o beijo é como o ferro elétrico: liga em cima e esquenta embaixo”.
Mas triste daquele ou daquela que precisa de um dia no ano para beijar. Já nascemos beijando e sendo beijados, e negar-se a tal carinho depois de grande, é, lamentavelmente, triste.
Ninguém inventa nada a troco de nada. Se não receberam verbas governamentais em forma de subsídio para inventar tal inutilidade, no mínimo, pensaram tirar proveito do dia. Eu mesmo estou pensando em montar um stand no único shopping center da cidade para vender beijos, a preços módicos. Como fui surpreendido hoje de manhã, não dá mais tempo de diversificar o estoque, pois só tenho no depósito o beijo do Judas, o beijo da mulher-aranha, o beijo sem sal, o beijo da morte e o famoso beijo de Drácula. Como minha cara-metade – a que me contou a novidade – disse haver infinitos tipos de beijo, quem souber onde posso encontrá-los, fineza deixar recado. Principalmente o tão procurado e tão escasso “beijo amigo”.
O beijo é lenda que virou realidade. Há várias teorias para sua origem, inclusive até de Darwin, mas quem precisa saber disso para beijar e ser beijado? Em compensação, o autor ou autores desse brilhante invento é ou são completamente desconhecidos, sem nenhuma especulação a respeito. Mas, sugerem os meus botões, que foi algum tímido com necessidade de beijar e precisava de um incentivo.
Hoje também se comemora outra data, de suma importância, sem lenda e com autoria. É o dia do Hino Nacional Brasileiro, aquele que toca nos estádios no dia que a seleção brasileira de futebol joga. Você ainda se lembra o que é o Hino Nacional? Mas com certeza nunca se esqueceu do primeiro beijo...
Pois então reavive a memória:
O HINO NACIONAL BRASILEIRO
O hino é a expressão de sentimento coletivo de um povo, a exaltação melódica aos seus heróis, o louvor ufano à sua história, invocação à divindade, em forma de poema ou cântico. Data da antiguidade, em que era composto e cantado em honra dos deuses e dos heróis. O Antigo Testamento é recheado de belíssimos hinos de louvor ao Messias, destacando-se os salmos de Salomão e do seu pai, o rei Davi.
O Hino Nacional Brasileiro é o nosso maior cântico de louvor à Pátria, a emulação de nosso brio patriótico, estimulante do nosso sentimento nacionalista, e, por isso, é executado em solenidades oficiais ou em festividades cívicas e devemos cantá-lo ou ouvi-lo com orgulho, de pé, mão no coração, em demonstração de amor e respeito ao símbolo máximo da nossa nação.
É considerado um dos mais belos hinos do mundo. Sua melodia foi composta em 1822, pelo maestro Francisco Manuel da Silva, para comemorar a Independência do Brasil. Tornou-se popular apenas em 1831, quando ganhou a primeira letra, que continha versos hostis ao imperador D. Pedro I, que acabava de abdicar (Os bronzes da tirania/ Já no Brasil não rouquejam/ Os monstros que a escravizam/ Já entre nós não vicejam). Com a coroação de D. Pedro II, em 1841, foi escrita a segunda letra, e exaltava a figura do novo imperador (Negar de Pedro as virtudes/ Seu talento escurecer/ É negar como é sublime/ Da bela aurora o romper), porém a bajulação ao Imperador foi esquecida pelo povo, que consagrou a música do maestro Francisco Manuel da Silva e esqueceu a letra.
O hino se tornou oficial por força da popularidade, sem que houvesse qualquer decreto nesse sentido. Com o advento da República, em 1889, houve concurso para a escolha de um novo hino, em sintonia com o novo regime. Convidaram o maestro e compositor Carlos Gomes, que se recusou. Venceu a composição de Leopoldo Miguez e Medeiros e Albuquerque, cuja letra canta estes versos adaptados em recente samba-enredo de escola de samba do Rio de Janeiro: “Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós! Das lutas na tempestade, dá que ouçamos tua voz”, porém a mudança do Hino não contava com o apoio do povo e o Marechal Deodoro, em consonância com o sentimento popular, no dia 20 de janeiro de 1890, dia do concurso, oficializou a melodia de Francisco Manuel da Silva como o Hino Nacional Brasileiro. O hino vencedor do concurso, de Leopoldo Miguez e Albuquerque, foi proclamado como o Hino da República.
Em 1909 houve outro concurso para a composição poética que mais se adaptasse à música do Hino Nacional, pois a melodia sem letra é mais difícil de se memorizar. O poeta e jornalista Joaquim Osório Duque Estrada fez uma adaptação da Canção do Exilio, de Gonçalves Dias, inclusive copiando alguns versos, os quais se encontram aspados na letra original (nossos bosques têm mais vida/ nossa vida, [em teu seio], mais amores) e se tornou o grande vencedor. Em 06 de setembro de 1922, cem anos depois da composição musical, após algumas pequenas modificações promovidas pelo próprio autor, o presidente Epitácio Pessoa assinou o Decreto 15.671 oficializando a letra do nosso Hino Nacional, tal qual ela é cantada hoje.
“Ninguém poderá ser admitido ao serviço público sem que demonstre conhecimento do Hino Nacional” (Art. 40º do Decreto-Lei nº 5.700 de 1º de setembro de 1971).
Se forem fazer teste do Hino com os servidores públicos, não sobrará ninguém para prestar serviço à comunidade. Já numa cidade da Bahia, durante a troca de comando de um batalhão do Exército, o novo comandante tentava pôr os soldados em forma para cantar o Hino Nacional.
- Tropa! Para cantar o Hino Nacional, sentido! – ordenou, com o devido vigor de comando.
Os soldados olhavam para ele como se nada entendessem. Falava grego? Repetiu o comando:
- Tropa! Para cantar o Hino Nacional, sentido!
Ninguém mexeu uma palha. Alguma coisa estava errada. Dirigiu-se ao antigo comandante, que tirava suas coisas pessoas da escrivaninha. Contou o ocorrido. O ex-comandante falou:
- Ah! Colega. Aqui não é assim não. Vamos lá!
Chegando ao local em que os soldados estavam em forma, o antigo comandante deu as ordens em baianês:
- Ô, meu rei, durin, durin pra cantar euvirundum!
Imediatamente os soldados se colocaram em sentido e cantaram o Hino Nacional. Ou o “Euvirundum”.
quarta-feira, 14 de abril de 2010
A perigosa busca dos atalhos - Cineas Santos
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De BBB |

Por que volto a esse tema tão repisado? Explico: o caderno Folhateen (05/04/10) trouxe estampada na primeira capa a foto de uma jovem (19 anos de idade) com a língua bifurcada, piercings e tatuagens espalhadas pelo corpo. Uma figura bizarra, para dizer o mínimo. Título da reportagem: Muito Prazer. A matéria de capa relata histórias de garotas, recém-saídas da adolescência, que “faturam com a sensualidade” em shows na webcam. Por um punhado de dólares (reais também servem), as meninas se insinuam, exibem-se e até se masturbam para quem se dispuser a pagar. Nenhuma das entrevistadas é tão pobre a ponto de necessitar de tais expedientes para sobreviver. Na verdade, buscam bem mais que os caraminguás que faturam com esse tipo de prostituição virtual; buscam os holofotes, o brilho, a fama, mesmo que seja aquela efêmera, de apenas 15 minutos, prevista por Andy Wharol. Para a psicóloga Leila Tardivo, “a coisificação de si ou do outro é um problema: o ser humano não é um objeto. Isso pode trazer consequências, elas podem ser vítimas de bullyng, por inveja ou por preconceito. A garota se expõe e pode ser vítima de ataques“.
Vai longe o tempo em que as meninas queriam ser professoras, enfermeiras, advogadas, aeromoças etc. Hoje, sem o menor pudor, meninas de classe média, universitárias, buscam os atalhos, por mais perigosos ou abjetos que sejam. O tempora, o mores!
terça-feira, 13 de abril de 2010
A Feira de Santo Amaro - SP - Leila Barros
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De Santo Amaro |

Agora, imagine um dia de muito calor no centro do bairro de Santo Amaro...
O asfalto parece mais brilhante de tão quente e o burburinho do lugar assemelha-se ao de uma imensa fornalha que se alimenta de ruídos, buzinas, músicas de todos os tipos e os gritos dos lojistas e ambulantes anunciando seus produtos.
Quase não dá para andar no seu centro comercial, que fica no Largo Treze de Maio.
Existem lonas espalhadas pelo chão e em cima delas podemos escolher uma imensa variedade de artigos interessantes, como CDs, meias, cuecas, calcinhas, batons, gorros de times de futebol, entre outros.
Quase todas as lojas colocam um som bem alto, os camelôs gritam o tempo todo, e ainda podemos ouvir a cada dez metros os relógios despertadores, que para chamar a atenção dos “fregueses”, ficam tocando o alarme. Como há muitos nordestinos no bairro, existe todo um universo de produtos típicos da região.
É divertido observar...
As Casas do Norte vendem queijo qualho, ingredientes para feijoada, um biscoito quadradinho e seco que só vejo nessas lojas, umas gelatinas já prontas com umas listas rosadas e brancas, fumo de rolo e outros artigos típicos. Certa vez, vi um cidadão com um carrinho de mão, desses que pedreiro usa para transportar areia e cimento, carregado de camarão seco. Encontrei também uma moça vendendo feijão verde, que ela me disse ser "feijão de corda".
A igreja da matriz está - coitada - tão velhinha e desativada... Eu tenho a impressão de que meus pais se casaram naquela igreja, que naquele tempo devia ser bonita.
Perto do centro comercial há uma Casa de Cultura e de vez em quando aparecem uns gatos pingados cantando com suas violas ou violões, alguns recitando, outros fazendo performance e ainda outros lendo a Bíblia em voz alta, como se a arte pudesse curá-los de toda carência e dureza que eles enfrentam, por morarem em um dos bairros mais carentes de São Paulo.
São eles os verdadeiros heróis, porque estão sempre sorrindo e cantando seus forrós, mesmo enfrentando a chuva, sol, calor, poluição de todo o tipo e o cansaço. E haja farofa, churrasco grego, morenas bonitas, pagodeiros e crianças com as bocas meladas de doces, sorvetes de creme. Tudo é festa para esse povo!
Salve o bairro de Santo Amaro!
E salve esse povo heróico do brado retumbante, e bota retumbante nisso, gente!
segunda-feira, 12 de abril de 2010
Crianças - Monteiro Lobato
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De carro de boi, na cidade de Caetité, Bahia, Brazil |
A gente anda por aí e de vez em quando dá de cara com uma raridade jogada ao léu, olhando pra gente feito cachorrinho abandonado, com aquele olhar pidão de “quero aconchego”. Foi assim que Edna deu de cara com um livro não muito conhecido (ou não muito divulgado) de Monteiro Lobato, porém não menos perspicaz que seus outros livros. Chama-se “Mundo da Lua e Miscelânea”, um verdadeiro achado do diário de Monteiro Lobato. Transcrevo abaixo a primeira estória do diário, por muito se parecer com o arraial do Junco dos meus tempos.
Crianças
As primeiras impressões da vida começada a folhear como a um grande álbum de figuras...
Tem três anos o filho do meu vizinho. Está no período encantado, em que se voltam as primeiras páginas do livro da vida, as páginas de cor onde aparecem o boi, o cachorro o cavalo, os gatos. Adora-os e sempre que pode planta-se à janela à espera de bichos. Bate palmas se avista um longe, e espera-o atento, lábios entreabertos, nesse enlevo das crianças que é metade medo, metade surpresa.
Bois, conhece-os a fundo, visto que mora fronteiro a um armazém onde todos os dias batem carros vindos das fazendas próximas. Mas só os conhece assim – na canga, jungidos ao carro, formando um bloco cheio de pernas, chifres, fueiros e rodas. O boi é, para ele, esse conjunto monstruoso, que anda, muge, roda, rechina.
Ora, aconteceu que passou pela rua uma vaca. O menino empertiga-se, franze a testa, abre a boca e, num pasmo, grita para dentro:
- Mamãe, venha ver um boi sem rodas!...
Lobato, Monteiro. Mundo da Lua e Miscelânea. Editora Brasiliense. 15ª Edição. 1982. P. 15.
domingo, 11 de abril de 2010
Balada para o centenário de Dona Rachel
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De Rachel de Queiroz |

Na ficção, ela pintou, com cores fortes, cenários inclementes, quadros sociais deploráveis, trágicos destinos humanos. E isto, a bem dizer, desde menina, quando, antes de completar 20 anos, estreou nas letras nacionais com um pequeno romance que causou um grande assombro. Tanto que até hoje basta citarmos O quinze para se saber de qual Rachel estamos falando. Aquela que nos legou reflexões como esta:
“A gente nasce e morre só. E talvez por isso mesmo é que se precisa tanto de viver acompanhado”.
Na intimidade, porém, ela era funny, sim, muito engraçada.
Veja-se, por exemplo, o que o escritor Carlos Heitor Cony conta em sua bem humorada crônica Da arte de falar mal, ao recordar-se de “uma amiga famosa, romancista histórica, que me quis tornar imortal como ela”, e que, adoentada, sem poder sair de casa, pediu-lhe, por intermédio de uma sobrinha e secretária, que fosse buscar o voto. “É evidente que fui, pois muito queria vê-la” – escreve Cony, acrescentando:
“Ela me recebeu nordestinamente afável. Sentada em sua cadeira de palhinha, com ares de senhora-de-engenho, esticou-me o envelope branco:
- Toma. Aqui estão os meus votos. Agora não falemos em literatura. Vamos falar mal de todo mundo!”
E eis como Cony conclui esse episódio:
“Saí tarde da sua casa. Não deixamos pedra sobre pedra [...] Só falamos mal dos ausentes, que era o restante da humanidade, pois em sua sala só havia o visitado e o visitante”.
A primeira vez que me vi em frente dela foi num jantar da cearense Madalena Sá, moradora do Leblon, para a cronista Elsie Lessa, que vivia em Cascaes, Portugal, e estava de passagem pelo Rio. A partir de então, passei a invejar a famosa Dona Rachel, por sempre dizer o que lhe dava na telha, sem se preocupar com o que os outros pensassem disso. O que deve lhe ter sido profilático, se considerarmos a sua longevidade, que em muito ultrapassou a média da expectativa de vida geral. Ela beirou os 93 anos, quase sempre em forma, atilada, de língua afiada. Recordo-a ao telefone, quando retornei a ligação de um tradutor francês, seu hóspede, e que não se encontrava, naquele momento. Dona Rachel aproveitou para esticar conversa, informando que o moço havia saído com a namorada, também francesa, com quem iria se casar em breve, ela informava, com surpresa, pois não punha a mão no fogo quanto à masculinidade do seu visitante. Comentava isso de maneira divertida, mas que hoje seria considerada politicamente incorreta.
Ela não perdoava nem os seus mais respeitáveis confrades. Comentando um encontro em Lisboa com um célebre poeta, que lá estava para receber o Prêmio Camões, detonou: “Ele ficou tão bêbado que não teve pernas para ir à cerimônia. O prêmio acabou sendo recebido pelo nosso embaixador”.
Uma vez, em Fortaleza, ela foi entrevistada por Pedro Bial, no palco de um auditório lotado. Pergunta vai, resposta vem, seu entrevistador comentou o desagrado dos paulistas com o trecho de suas memórias sobre Mário de Andrade.
- Ora! – ela exclamou. – Todo mundo em nosso meio sabia o que Mário de Andrade era, e que ele próprio não negava. Agora, só porque eu escrevi aquilo, dizendo que ele era... – e aí ela pronunciou com todas as letras a palavra chula, fazendo a platéia cair na gargalhada, sem sequer esperar a conclusão da sua frase... - São Paulo quer me linchar?
Em síntese: escrevendo, ela era densa, intensa, dramática. Falando, podia ser hilária, por sua arte ao falar mal. Talvez assim ela quisesse as comemorações de seu centenário: com todos os presentes desancando os ausentes, e dando umas boas risadas.
sábado, 10 de abril de 2010
A PALMATÓRIA
quinta-feira, 8 de abril de 2010
Democracia em farrapos, almas arruinadas - Cláudio Canuto
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De Compro voto |

Enquanto pregam isenção ética com o furor de um Napoleão em guerra, certos jornalistas venais buscam um troco oferecendo suas páginas dentro das conveniências do mercado, chamando de vossas excelências, bandidos comuns que se assenhorearam da fragilidade política de nossas instituições para enriquecimento ilícito.
Quanto aos postulantes eleitorais, é duro vê-los outra vez - imunes, pela força vacilante da lei, do último golpe, da última fraude, do último assalto - legitimados por esta massa ignara e disforme que os idealistas chamam povo. Na verdade, alheia ao processo político que lhes guiará o próprio destino. Estes eleitores, corruptos, vendem-se por dez tostões e entregam prazerosamente a seu algoz o chicote de sua própria sordidez e desonra, transformando-se em uma multidão humilhada, desdenhada, subserviente e sem a menor noção da real importância da titularidade do seu voto.
Alguns teóricos ainda encontram certa nostalgia romântica quando falam do povo, sobretudo como forma de representação política autêntica: “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”, ou como a grande promessa de um devenir histórico grandioso:”O povo unido jamais será vencido!”. Ambas as concepções ruem como um castelo de cartas graças ao poder dos cifrões. Esta multidão vai ofertar sua titularidade de representação eleitoral à escória social, aos insensíveis políticos carreiristas, por alguns tostões momentâneos e novamente mergulhar na miséria do seu cotidiano apenas suportável graças ao peso de décadas de privação e miséria, suas únicas heranças.
É doloroso antecipar que os grandes gatunos locais serão mais uma vez alçados a condição de autoridades incontestes, exercendo uma atividade que se esvaziou completamente, desfilando com soberba sua autoridade arrogante e plena de ignorância orgulhosa, colocados por força das circunstâncias a um palmo acima da lei e dos habitantes desta província condenada a sonolência e a insensibilidade.
A assembléia legislativa de Alagoas, um poder fundamental para o exercício pleno da cidadania, virou um valhacouto de salafrários, completamente desvirtuada de suas verdadeiras funções constitucionais. O judiciário os acoberta – o que os estimula -, e o executivo busca encontrar o seu apoio para o mínimo de governabilidade, em uma troca ilícita. Larápios, comandantes de órgãos estatais ineficientes , burocratas que se comprazem em infernizar os cidadãos.
Nós vivemos em um regime sob a égide do capital, que é avassalador, pois tudo pode comprar: glória, honra, poder, a representação divina, o perdão eclesiástico e, claro, o voto – assim como a fiança, este reconhecimento explícito de que a justiça tem um preço . Falsa pudica e morta de vergonha, esta lady dona de lupanar, vendou os olhos horrorizada com a sua própria transformação, evitando mirar-se no espelho onde, refletida, duplicada, impõe-se, tardia e falha, à prova da sua própria ignomínia.
Nota do Blog: Cláudio Canuto é jornalista e professor de Sociologia da Faculdade Integrada Tiradentes, e é o mais novo colaborador do blog.
quarta-feira, 7 de abril de 2010
A Teia da Diversidade - Cineas Santos


De repente, o monumental espaço cultural Dragão do Mar ficou pequeno para comportar tantas e tão distintas manifestações culturais. Num mesmo caldeirão musical, misturavam-se a Orquestra de Câmara Eliezer de Carvalho, banda de pífanos dos Irmãos Aniceto, Jorge Mautner, Dona Zefinha, Fagner, Tambores do Tocantins, Orquestra Popular Meninos da Ceilândia, Chico César, Bloco Afro Ilú Obá de Min, Reisado de Santana, Orquestra de Berimbaus do Morro do Querosene, Carimbó dos Quentes da Madrugada e o escambau. Acrescente-se a isso a troca de experiências, debates apimentados, projetos ousados, mostras de arte e artesanato e muita alegria. Um caldeirão cultural fervilhante de luz, cor, sons, magia... Para o encerramento do encontro, organizou-se o Cortejo da Ebulição dos Libertos, com a participação de mais de 2000 pessoas. A melhor parte: os políticos não tiveram espaço para suas arengas costumeiras. A festa tinha dono: o povo brasileiro.
Ainda é cedo para que se faça uma avaliação adequada do legado do governo Lula para a cultura brasileira. Mas é inegável que, sob a batuta de Gilberto Gil e Juca Ferreira, a cultura dos “grotões, chapadas e morros” pôde mostrar a cara sem medo de ser feliz. Os pontos de cultura propiciaram aos “despossuídos” de todas as aldeias a oportunidade de gritarem ao mundo: ESTAMOS VIVOS! Azar de quem não quiser ouvir.
terça-feira, 6 de abril de 2010
Uma luz na escuridão das almas americanas
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De Luz em agosto - Faulkner |

Ao ler as primeiras páginas daquele candidato a seu discípulo, Anderson anteviu a nascente de um rio largo, profundo, deslumbrante, perturbador, a ser contemplado num misto de exaltação e ultraje, pois sua grandeza chega a dar raiva. Valha-nos Deus! Ainda bem que nós, pobres mortais, já não precisamos abatê-lo às garrafadas. Ele mesmo se encarregou disso, dizendo: “Entre o uísque e nada, escolho o uísque”. O que era uma blague do memorável final de seu Palmeiras selvagens: “Entre a dor e o nada, escolho a dor”.
Tal escolha o levaria a não ver a luz de agosto de 1962. Entrou em trevas totais em 6 de julho daquele ano, à distância de dois meses e dezenove dias para chegar aos 65, que completaria em 25 de setembro. Quem sabe a parodiar-se: “É o uísque, e não a dor, que faz você recordar-se de centenas de ruas selvagens e ermas”.
Não, não foi aí que ele virou um monstro-sagrado. Nem no dia 10 de dezembro de 1950, quando a Academia Sueca lhe entregou o Prêmio Nobel, correspondente ao ano anterior. Muito antes da guerra de 1939, e antes mesmo de conquistar o pleno reconhecimento nos Estados Unidos, Faulkner adquirira uma sólida reputação na Europa, sobretudo na França, onde Jean-Paul Sartre se tornara o seu intérprete e propagandista, considerando-o, ao lado de John Dos Passos, o escritor mais importante e mais original já surgido no século 20. Albert Camus e André Malraux viriam a fazer coro com Sartre. E quando Luz em agosto foi publicado na Suécia, em 1944, todos os jornais locais babaram nas gravatas. Saudaram-no como a revelação de uma arte nova, visceral, ao mesmo tempo primitiva e requintada, e que abria largas perspectivas sobre a condição humana, e na qual se sentia o fim de uma civilização condenada. A do arruinado Sul dos Estados Unidos, que se amargurava pelo fracasso na Guerra da Secessão, incapaz de expiar o seu passado escravista. A decadência levava-o à frustração, e daí à escuridão do fanatismo patriótico e religioso, da intolerância racial, da violência insana, o que o impedia de ver uma luz no fundo de sua alma.
É nesse cenário que se movem os personagens de Luz em agosto, “todos em busca de seu lugar num mundo que reservou para eles apenas um destino trágico”, como escreveu o nosso Marçal Aquino, na apresentação desta nova tradução brasileira, de Celso Mauro Paciornik. E diga-se: sem desmerecer a anterior, de Berenice Xavier (publicada em 1948 pela Editora Globo e, em 1983, pela Nova Fronteira), esta de agora é um tour-de-force admirável. Nela, Paciornik consegue captar o cipoal retórico de Faulkner, em sua prosa polifônica com períodos longos, maneiras de falar no passado e no presente, incluindo o pidgin-english dos escravos e seus descendentes, ritmo tempestuoso, obscuridades verbais, fusão de palavras etc. Mas voltemos a Marçal Aquino: “Há escritores que escrevem grandes livros. Há outros, mais raros, que instauram mundos. William Faulkner pertence a essa linhagem”.
Nem sempre o viram assim. Quando ele ganhou o Prêmio Nobel, o New York Herald Tribune protestou, por preferir um laureado “mais sorridente num mundo que se entristece”. E o Times, de Londres, acusou-o de escrever num “estilo de oráculo”, além de “maltratar as palavras do vocabulário com a maior sem-cerimônia”. Bullshit, deve ter pensado o sombrio Faulkner, dando uma risadinha, enquanto voava para as luzes de Paris, e de várias cidades japonesas, e de São Paulo, Brasil, onde, ao acordar de ressaca, puxou a cortina da janela do hotel e exclamou: Oh, my God, Chicago again?!
Meu Deus! Haverá leitor no mundo que deixe de exclamar isso, diante de uma página de Faulkner? Ele parece ter fundido a Bíblia às obras de Shakespeare, Dostoievski e James Joyce, para transformá-las numa originalíssima fábula americana, ao mesmo tempo tenebrosa e iluminada. Não é à-toa que se tornou um escritor para escritores. Não foram poucos os que se renderam ao poder da sua magia, o que é visível em Carson McCullers (a de Balada do café triste), William Styron (A escolha de Sofia), Gabriel García Márquez, Mário Vargas Llhosa, Juan Rulfo (confira no extraordinário Pedro Páramo), Milton Hatoum, o autor de Cinzas do Norte. Ah, sim: o cineasta Glauber Rocha também o incluía entre as suas influências.
Eis aí. Entre Faulkner e nada, eu também escolheria o Faulkner.