domingo, 11 de abril de 2010

Balada para o centenário de Dona Rachel



Por Antonio Torres



De Rachel de Queiroz


Como no tempo do Serviço de Alto Falantes a Voz do Sertão, quando alguém, com muito amor e carinho, dedicava uma bela página do cancioneiro popular – Tu és/ divina e graciosa... - à moça de azul e branco a passar na calçada da igreja, o autor destas linhas já escolheu a trilha sonora para as comemorações do centenário da inesquecível Dona Rachel, no dia 17 de novembro deste ano de 2010: uma terna balada em louvor à sweet comic Valentine/ you make me smile, ora na interpretação melosa de Frank Sinatra, ora na lancinante versão instrumental do trompetista Miles Davis. E assim o locutor que vos escreve contemplará dois aspectos memoráveis da vida e obra da homenageada. A veia cômica e a força dramática.

Na ficção, ela pintou, com cores fortes, cenários inclementes, quadros sociais deploráveis, trágicos destinos humanos. E isto, a bem dizer, desde menina, quando, antes de completar 20 anos, estreou nas letras nacionais com um pequeno romance que causou um grande assombro. Tanto que até hoje basta citarmos O quinze para se saber de qual Rachel estamos falando. Aquela que nos legou reflexões como esta:

“A gente nasce e morre só. E talvez por isso mesmo é que se precisa tanto de viver acompanhado”.

Na intimidade, porém, ela era funny, sim, muito engraçada.

Veja-se, por exemplo, o que o escritor Carlos Heitor Cony conta em sua bem humorada crônica Da arte de falar mal, ao recordar-se de “uma amiga famosa, romancista histórica, que me quis tornar imortal como ela”, e que, adoentada, sem poder sair de casa, pediu-lhe, por intermédio de uma sobrinha e secretária, que fosse buscar o voto. “É evidente que fui, pois muito queria vê-la” – escreve Cony, acrescentando:

“Ela me recebeu nordestinamente afável. Sentada em sua cadeira de palhinha, com ares de senhora-de-engenho, esticou-me o envelope branco:

- Toma. Aqui estão os meus votos. Agora não falemos em literatura. Vamos falar mal de todo mundo!”

E eis como Cony conclui esse episódio:
“Saí tarde da sua casa. Não deixamos pedra sobre pedra [...] Só falamos mal dos ausentes, que era o restante da humanidade, pois em sua sala só havia o visitado e o visitante”.

A primeira vez que me vi em frente dela foi num jantar da cearense Madalena Sá, moradora do Leblon, para a cronista Elsie Lessa, que vivia em Cascaes, Portugal, e estava de passagem pelo Rio. A partir de então, passei a invejar a famosa Dona Rachel, por sempre dizer o que lhe dava na telha, sem se preocupar com o que os outros pensassem disso. O que deve lhe ter sido profilático, se considerarmos a sua longevidade, que em muito ultrapassou a média da expectativa de vida geral. Ela beirou os 93 anos, quase sempre em forma, atilada, de língua afiada. Recordo-a ao telefone, quando retornei a ligação de um tradutor francês, seu hóspede, e que não se encontrava, naquele momento. Dona Rachel aproveitou para esticar conversa, informando que o moço havia saído com a namorada, também francesa, com quem iria se casar em breve, ela informava, com surpresa, pois não punha a mão no fogo quanto à masculinidade do seu visitante. Comentava isso de maneira divertida, mas que hoje seria considerada politicamente incorreta.

Ela não perdoava nem os seus mais respeitáveis confrades. Comentando um encontro em Lisboa com um célebre poeta, que lá estava para receber o Prêmio Camões, detonou: “Ele ficou tão bêbado que não teve pernas para ir à cerimônia. O prêmio acabou sendo recebido pelo nosso embaixador”.


Uma vez, em Fortaleza, ela foi entrevistada por Pedro Bial, no palco de um auditório lotado. Pergunta vai, resposta vem, seu entrevistador comentou o desagrado dos paulistas com o trecho de suas memórias sobre Mário de Andrade.

- Ora! – ela exclamou. – Todo mundo em nosso meio sabia o que Mário de Andrade era, e que ele próprio não negava. Agora, só porque eu escrevi aquilo, dizendo que ele era... – e aí ela pronunciou com todas as letras a palavra chula, fazendo a platéia cair na gargalhada, sem sequer esperar a conclusão da sua frase... - São Paulo quer me linchar?

Em síntese: escrevendo, ela era densa, intensa, dramática. Falando, podia ser hilária, por sua arte ao falar mal. Talvez assim ela quisesse as comemorações de seu centenário: com todos os presentes desancando os ausentes, e dando umas boas risadas.





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