sexta-feira, 30 de julho de 2010

A mãe, as professoras e os dias de um escritor - Antonio Torres

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", de Antonio Torres

De Aprendendo o ABC



O primeiro foi aquele em que sua mãe lhe mostrou um ABC, passando em seguida a dizer os nomes das letras. Jamais esqueceria o encantamento que o desenho delas lhe provocaram logo à primeira vista. Arrumadas em filas no abecedário, formavam um conjunto enigmático. Cada uma, porém, tinha sua própria identidade e personalidade, como as coisas e as pessoas. E eram elas que davam registro a tudo o que há na Terra e no céu, compreenderia depois, quando aquela senhora chamada Durvalice começou a juntá-las em sílabas - bê-a-bá, bê-e-bé... - e, nos dias seguintes, em vocábulos que passariam ao reino das frases. Ivo-viu-a-uva...

Aquele menino nunca tinha visto uma uva. Agora sabia que se tratava de uma fruta. Mas como é, mãe? Ela também não a conhecia. Seu mundo era o das jabuticabas, murtas, graviolas, muricis, cajás, umbus.

Quando foi para a escola, num mês de março, já sabia ler a cartilha, o que deixou a professora Serafina muito feliz. Então chegou o dia 7 de Setembro. Escolhido para recitar um poema patriótico em cima de um palanque, viu a praça antes empoeirada e deserta apinhar-se de gente. Pensou que ia cair, tal era a tremedeira nas pernas. Ainda assim, soltou a sua voz gasgita: "Auriverde pendão da minha terra/ que a brisa do Brasil beija e balança/ estandarte que a luz do sol encerra/ as divinas promessas da esperança."

O público reagiu com lágrimas, num emocionado preito a uma criança capaz de memorizar todas aquelas palavras bonitas. Dali por diante, se lhe perguntassem o que queria ser quando crescesse, já tinha a resposta: Castro Alves.

Aí chegou outra professora. "Leve os meninos," disse-lhe dona Serafina. Triste notícia. Que graça teria uma escola sem meninas? A recém-chegada chamava-se Teresa, que trazia uma novidade: um livro para ser lido em voz alta, tão encardido e pobrezinho quanto aquele lugar de lavradores. Vinha a ser uma antologia de contos, crônicas e poesias. Para começar, ao personagem desta história coube um texto de José de Alencar, que nunca esqueceria: "Verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia na fronde da carnaúba." Imagine o efeito disso. Ele não fazia a menor idéia de como era o mar.

Também não tinha familiaridade com a chuva, o tema de uma redação, dificílimo, para quem vivia no polígono das secas. Asas à imaginação. Seu desempenho na escrita ganhou fama, levando-o a ser solicitado à realização de serviços mais desafiadores, por exemplo, as cartas dos apaixonados do lugar - e suas respostas. E as das chorosas mulheres dos migrantes. Estas eram de cortar o coração.

E assim iria se fazendo um escritor nascido na roça. As leituras o levaram a trocar a enxada pela caneta, com a qual viria a cavar o seu sustento, pela vida afora. E sempre a olhar as letras com o mesmo encanto com que as viu pela primeira vez.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Pobres meninos ricos... - Cineas Santos




De Futebol de várzea


O moleque ainda se encontra no “ventre das expectativas” e já é observado por olhos rapaces. São os “olheiros” profissionais, gente com faro para descobrir o que pode render bons dividendos. Como não dispõem de capital, trabalham para ex-jogadores de futebol, cartolas, especuladores de todos os naipes. Perambulam pelos subúrbios à caça de garotos com alguma habilidade. Quando descobrem algum, correm para entregá-lo a quem o contratou. A partir daí, o passe ( leia-se a posse) do futuro craque é fatiada entre os que se dispuserem a investir nele. Inicia-se, então, a trama para encontrar um grande clube disposto a contratá-lo. Assinado o primeiro contrato, cada um recebe o que lhe cabe e o garoto vai suar a camisa. Se, porventura, tiver talento e sorte, pode marcar ou defender um gol decisivo. Aí, como num passe de mágica, passa de “promessa” a “revelação”. Sai do anonimato para as páginas dos grandes jornais, com direito a elogios e afagos. No dia seguinte, aparecem o pai (até então, desconhecido), os parentes, os aderentes, os amigos de infância, e as indefectíveis marias-chuteiras. Esse caldo de cultura costuma ser letal. Adiante-se que o garoto-revelação, há bastante tempo, vem adubando seus sonhos de consumo: carrões, joias e louras... Assim, antes de reformar o barraco da mãe, passa a circular, sempre “bem” acompanhado, por lugares badalados.

Antes que um dos meus três leitores esbraveje, adianto: o que acabei de afirmar aqui é uma caricatura grotesca, mas com gotículas de verdade. A pergunta cabível é a seguinte: o que os grandes clubes de futebol estão fazendo para melhorar o nível intelectual dessa molecada pobre, semianalfabeta, que só possui alguma habilidade com os pés? As empresas da construção civil, por exemplo, já se deram conta de que operários instruídos acidentam-se menos e rendem muito mais. Estão investindo na alfabetização dos trabalhadores. Por que os clubes de futebol não fazem o mesmo? Por que, durante o tempo que passam concentrados, os jogadores não recebem aulas de português, de inglês, de ética, de educação sexual, de cidadania? Certa feita, Rachel de Queirós afirmou: “Vida de craque não são rosas”. Tinha razão: jogador profissional passa 80% do tempo concentrado, treinando,viajando ou jogando. O tempinho livre que lhe sobra é dedicado à esbórnia, que ninguém é de ferro.

Alguns, antes da maioridade, são “exportados” para os milionários clubes europeus. No ato da transação, um desses moleques pode embolsar, de uma vez, o que um professor-doutor não ganhará ao longo de toda a vida útil. O que fazer com tanto dinheiro e nenhuma informação? Comprar carrões, piercings de diamantes, correntes de ouro e louras, um harém de louras... Com raras exceções, o desempenho dessas estrelas, em campo, decresce na mesma proporção em que se lhes aumentam os salários. Como conciliar uma carreira que exige disciplina espartana com as tentações do mundo?

Quando “pisam na bola” ( e como pisam!), a mesma imprensa que os diviniza, sataniza-os sem a menor piedade. Num átimo, passam de heróis a vilões e acabam nas páginas policiais. Pensando bem, até por piedade, o país deveria importar-se um pouco mais com o destino desses pobres meninos ricos

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Polícia! Pra que Polícia? - Ronaldo Torres

De Procura-se Polícia



Se gritarem “pega ladrão!” corra para o lado oposto, porque o meliante nunca age sozinho ou de cara limpa. E, no arraial do Junco, Polícia virou vocábulo em desuso.

A delegacia de lá é como “A Casa”, de Vinícius de Moraes: “Era uma casa muito engraçada / não tinha teto, não tinha nada”. Presos não há nela não porque lhe falta um escrivão. Se houvesse segurança institucional conforme manda a Constituição Brasileira, havia superlotação na cadeia, de tantos velhacos e amigos do alheio que pululam na cidade. Sem se falar nos latrocidas de plantão no matagal à espreita do incauto velhinho e seu salário da aposentadoria.

Se faltou craque na seleção de Dunga, no arraial do Junco o crack abunda de tal maneira que uma boa parcela da população já anda de boca torta. Sem polícia para interromper o fumacê, a turma fuma seu cachimbinho na santa paz de Jah. O problema é na hora do acerto de contas com o traficante. Sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes, a solução é enveredar pelo mundo do crime. Quem quiser que cuide em colocar tranca reforçada nas portas ou contratar vigilância particular.

Esse cuidado não teve o cidadão que abriu uma loja de revenda de aparelho celular, pensando em tirar proveito da novidade: uma torre da operadora TIM, que fora obrigada pela Anatel a ligar a caatinga ao restante do mundo. Até que ele teria feito seu pé de meia sem maiores delongas se o ladrão não tivesse descoberto a fragilidade da segurança da loja e a inoperosidade da polícia. Arrombou a porta e fez o rapa, sem deixar um aparelho de remédio, como diria a minha avó.

Mas houve um tempo que existia lei no arraial do Junco. Eu era menino, mas me lembro da noite que o delegado teve o prazer de inaugurar a cela e a palmatória da cadeia, que, aliás, não era nem cadeia nos padrões normais, mas uma casa alugada pela Prefeitura, cujos quartos serviam de abrigo aos meliantes. Era um garoto o tal do ladrão, quase da minha idade, que fora flagrado roubando umas miudezas na feira. O delegado, um cidadão comum da cidade investido do cargo, convocou a população para dar testemunho do seu método científico em fazer o ladrão de galinhas cantar. Como havia muita gente e não cabia na casa, ele colocou o malfeitor na calçada, pegou a palmatória e deu tantos bolos no ladrão que, se vivo ainda for, deve chorar toda vez que se lembra desse episódio. No dia seguinte o agente da Lei abriu a porta da cadeia e o soltou, com a recomendação expressa de nunca mais aparecer por lá.

O meu avô materno também foi um homem da Lei, nomeado por um político de alta patente. Não exibia uma estrela de xerife à moda do Velho Oeste, mas sentia orgulho como tal. Como os fora-da-lei passavam ao largo da cidade e ele ia torrar seu mandato sem nenhuma ocorrência policial de relevância reconhecida, resolveu então prender um petroleiro que passava no carro da Petrobrás e, ao avistá-lo montado em seu alazão, buzinou em saudação. O cavalo se assustou, empinou e jogou o cavaleiro ao chão. Ato contínuo, levantou-se, sacudiu a poeira, montou no cavalo e se dirigiu ao acampamento da Petrobrás, onde deu voz de prisão ao infeliz. O motorista delinquente passou três dias na cadeia e só foi solto depois que o cabo de turma garantiu que ele seria transferido.

Nos anos oitenta havia um delegado e um destacamento da Polícia Militar na cidade. Dava para o gasto se o Banco do Brasil não tivesse inaugurado a sucursal do Inferno em pleno sertão: hora e outra era assaltado sem a menor desfaçatez dos assaltantes, pois coincidia da polícia e do delegado estarem em diligência noutras paragens. Mas um aprendiz de ladrão de cavalos não teve a mesma sorte. Roubou um cavalo no pasto e foi para a cidade fazer negócio, se imaginando o rei do crime insolúvel. Era dia de feira e não seria difícil passar o animal adiante. Ao primeiro que ofereceu, recebeu voz de prisão: era o delegado e, por azar, o dono do cavalo.

Por exigência constitucional, delegados, agora, só de carreira. E nomeados por concurso. É que muitos xerifes, à moda do Oeste americano, se rendiam facilmente ao poder local, normalmente se agregando ao prefeito que era, na verdade, o responsável por sua nomeação. Como o acontecido no arraial do Junco. A cidade festejava mais um ano de emancipação política quando um arruaceiro foi preso. Correram ao prefeito pedindo soltura, pois era filho de um cabo eleitoral importante. O prefeito, de cima do trio elétrico onde vendia simpatia, tomou o microfone do cantor e mandou a polícia soltar o rapaz. Os agredidos se sentiram mais agredidos ainda e subiram no trio. Eram muitos. O prefeito voltou atrás e mandou a polícia levar o desordeiro pro xilindró. Outros amigos do preso intercederam. Era só um mal entendido. O prefeito mandou soltar. E nesse vai e vem, um soldado subiu no trio, pegou o microfone, e implorou:

– Seu prefeito, resolva logo: é pra prender ou pra soltar?

Hoje, infelizmente, é para se prender os autores de outros tipos de delitos, mais perniciosos e até crimes de morte. Mas... cadê a Polícia?

Ah! O prefeito?! Vai bem, obrigado.



sábado, 24 de julho de 2010

Desvio de Donativos em Alagoas: Indigna - Ação - Edna Lopes




De Ação


"Sou humano, e nada do que é humano me é estranho”. Mais de uma vez durante esta semana, essa frase atribuída ao sábio Terêncio me veio ao pensamento, por várias razões, todas elas refletindo sobre atos e fatos divulgados pela imprensa.

Não estranho quando um HUMANO se revela capaz de por em risco a própria vida para salvar um pássaro nem poupa esforços para ajudar um “estranho” vítima de um acidente de trânsito, como também não estranho quando outro HUMANO se mostra capaz de roubar os donativos das famílias que perderam entes queridos, tudo que tinham de material e aos poucos perdem a dignidade, submetidos à condições abjetas de vida.

Enquanto uma ação me emociona e mantêm acesa a esperança e a fé que tenho na humanidade, a outra me indigna, me envergonha sobremaneira. Como pode alguém descer tão baixo? Como pode alguém ser tão torpe?

No final da semana passada, quando as primeiras denúncias de desvios ventilaram na imprensa, ouvi estarrecida, alguns relatos da desfaçatez de alguns que são pagos com nosso dinheiro para nos roubar. Acobertados sempre pela impunidade, não fazem cerimônia quando a questão é “se dar bem”, lucrar, mesmo as custas da miséria alheia.

Jamais incorreria no erro de generalizar! Transcrevo aqui um comentário de alguém num dos sites que publicou a notícia e faço minhas cada palavra: “Sabedoria em 23/07/2010 às 19:19 comentou: Justiça! O povo quer justiça e garanto a vocês que os Bombeiros Também! A luta desses homens nos Salvamentos e Resgates efetuados nestes dias, não pode ser manchada com esses eventos de alguns que não merecem estar com a camisa vermelha e a fênix em seu peito. GP.”(sic)

Outro comentário que me chamou a atenção: “bombeiro em 23/07/2010 às 18:26 comentou: Fico muito envergonhado por fazer parte do corpo de bombeiros nessas horas, mas isso que aconteceu é um mal necessário, pois todo mundo sabe da corrupção que existe dentro da instituição, vários coronéis e demais oficiais são verdadeiros larápios, de combustíveis, licitações, notificações e vistorias em prédios e empresas etc. e quando as denuncias são feitas por integrantes da corporação, os punidos são os denunciantes que são penalizados devido à hierarquia nojenta que favorece a corrupção e o abuso de poder... essa era uma ótima oportunidade para de fazer uma auditoria nos quartéis do interior onde se faz verdadeiras fortunas com o dinheiro dos trabalhadores. essa é a hora MP, PF e SEDES.”(sic)

Diante da minha desolação, meu filho, ainda um menino, comenta frustrado: “Mãe, como as vezes tenho vergonha de ser brasileiro...”

Desculpa, meu filho. Sem forças para contra-argumentar... Quisera eu nos poupar disso também...

“Que criatura agradável é o homem, quando ele é um homem”


Se alguém quiser ler a notícia:

http://www.tudonahora.com.br/noticia/maceio/2010/07/23/104825/tres-militares-sao-presos-por-desvio-de-donativos



quinta-feira, 22 de julho de 2010

As três notas musicais - Luís Pimentel



De O trio



A técnica do Nogueira

Conta o folclore da música brasileira que o grande e compositor João Nogueira cumpria temporada de shows pelo Nordeste do Brasil, quando atendeu pedido de entrevista de uma estagiária de jornal.

Pergunta da moça:

– João, como você consegue cultivar essa voz tão sua, tão marcante, tão impostada e ao mesmo tempo tão suave? Que técnica você usa?

Resposta do malandro:

– Muito conhaque, muita cerveja e cigarros Hollywood à vontade.

João Nogueira, um dos maiores cantores da MPB em todos os tempos, nasceu no Rio de Janeiro, no bairro do Méier, no dia 12 de novembro de 1941. Aos 27 anos gravou sua primeira composição: Espera, oh nega. Três anos depois, entrou para a ala dos compositores da Portela e teve músicas gravadas por Elizeth Cardoso e Clara Nunes.

Um dos maiores defensores do gênero, na década de 1970 fundou o Clube do Samba. Parceiro, entre outros, de Paulo César Pinheiro, entre suas composições mais conhecidas estão Nó na madeira, Espelho, Um ser de luz e Clube do samba. Morreu no ano 2000.

Quem foi Adiléia?

Com esse nome, talvez ninguém identifique: Adiléia da Silva Rocha mais tarde trocou o nome para Dolores Duran. Dolores nasceu em 1930 e começou a carreira artística ainda menina – e ainda Adiléia – no popularíssimo programa Calouros em desfile, pilotado pelo já famoso compositor Ary Barroso, na Rádio Tupi. Estreou com nota máxima, caiu na simpatia do pouco simpático Ary e voltou para casa com um prêmio de 500 mil réis e o sonho de virar cantora profissional. Tinha 12 anos.

Da rádio, Adiléia – já Dolores – pulou para o Teatro Carlos Gomes, onde participou do elenco das peças infantis Mãe d´água, Primavera, O gaúcho e Aladim e a lâmpada maravilhosa. Cantora de voz doce e cálida, Dolores Duran foi também excelente compositora, como provam os destaques de sua obra Se é por falta de adeus, A noite do meu bem, Castigo e Fim de caso. Morreu vítima de um infarto fulminante, no dia 23 de outubro de 1959.

O gato do João

São inúmeras e variadas as notas do folclore envolvendo o cantor, compositor e super-instrumentista João Gilberto. A mais repetida em mesas de bar é a do gato. Dizem que João, morando sozinho em Nova Iorque, trancou-se no estúdio para preparar novo disco. Sozinho, não. Havia o gato do João.

Contam ainda que João trancou porta e janelas do estúdio, e durante 17 dias e 17 noites, sem parar para ir sequer à padaria, tocou seu fabuloso violão, sem parar, sem parar, sem parar, em busca dos arranjos cada vez mais redondos, do acorde cada vez mais perfeito. E o gato ali, sentadinho na cadeira, ouvindo, ouvindo, ouvindo.

Pois contam também que, finalizado o trabalho, João Gilberto finalmente escancarou as janelas. Era um décimo terceiro andar, mas o bichano não quis saber: atirou-se pela janela, para a morte que a livraria de tantas melodias.

João Gilberto, gênio inconteste e admirado pelos grandes nomes da MPB, considerado por muitos o pai da bossa nova, nasceu em Juazeiro (BA), em 1931. Quando gravou seu primeiro disco, em 1958, seu estilo de cantar, intimista, contrastava com tudo o que se fazia na época em termos de música. Influenciou cantores como Gal Costa e Caetano Veloso, que na década de 1960 iniciavam suas carreiras. Alguns de seus grandes sucessos são Chega de saudade, Bim-Bom, Samba de uma nota só e Desafinado.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Moacyr, o Matador

De O matador

Ele tem por nome de batismo Moacyr de Tal, mas, a depender da pessoa e do momento, também atende por Chupa-Cabra, Jurubeba e seu Madruga, o pitoresco personagem do soup ópera Chaves, pai da Chiquinha e que, invariavelmente, apanha de dona Florinda.

Seu Madruga, digo, Moacyr não é cearense dos olhos amarelos, mas se orgulha de já ter matado seis pessoas, seis “desinfelizes” que tiveram a audácia de duvidar de sua macheza, na sua cidade natal, Paulo Jacinto, a oitenta quilômetros de Maceió. Se bem que, dos seis, três morreram de susto, dois de raiva e um, cujo relato farei adiante, teve uma originalidade burlesca e ele foi obrigado a fugir de sua cidade para não morrer nas mãos dos irmãos e parentes do desencarnado, que queriam beber o morto com o sangue do seu carrasco.

O seu pai foi morto em uma briga de faca nos primeiros anos de sua existência e a sua mãe, sem ter como arranjar trabalho, fora obrigada a enrolar fumo em Arapiraca, posteriormente se mudando para lá em uma camionete paga por um político local. Moacyr viveu brincando em uma plantação de fumo até os dez anos, quando a sua mãe arranjou um amante e o mandou de volta para acabar de ser criado por um irmão do seu pai. Instalado na casa do tio, em Paulo Jacinto, desconjurou a mãe, brigou com o tio e foi morar com um fazendeiro, o antigo patrão do seu pai. Cuidava das tarefas domésticas e, nas folgas, treinava para ser vaqueiro ou ia para o centro urbano brincar de mocinho e bandido com uns amigos. Como já havia matado cinco, e a sua fama de mal corria cidade afora, ele só fazia papel de bandido.

Ele, e mais todo o pessoal que descia da roça, eram os bandidos contumazes nas brincadeiras, pois o roceiro, em qualquer situação, é discriminado pelos moradores da urbe.

Um dia Moacyr resolveu montar o seu acampamento de bandido na mata circundante da periferia. Na primeira laçada que jogou, prendeu um “mocinho”, arrastou para o seu acampamento, amarrou o moço em uma árvore, colocou uma mordaça nele para que não alertasse os outros e saiu à procura de mais “mocinhos” para fazer prisioneiro e assim ganhar a parada. Andou cauteloso pela periferia, se escondendo nos postes ou atrás dos muros, até que avistou a turma animada em uma rodada etílica em um cacete armado. Moacyr chegou de surpresa, rendendo todos, mas foi informado de que a brincadeira acabara e que a nova modalidade era o jogo de porrinha e ele estava convidado a participar. Uma rodada valia cachaça, outra cerveja, e a outra, qualquer tira-gosto da visgueira: sardinha ou salsicha em lata.

Lá para as tantas, sem atinar coisa com coisa, Moacyr montou em sua jumenta e pegou o rumo da roça. Quinze dias depois picou esporas para a cidade e procurou a turma para uma nova brincadeira. Os amigos não quiseram brincar. Estavam preocupados, pois um deles havia desaparecido desde o dia da última brincadeira. E ninguém tinha a menor pista. Moacyr levou a mão à testa, preocupado. Entretido na cachaça e no jogo da porrinha, esquecera o colega amarrado em seu acampamento. Foram todos ao local e encontraram o corpo do amigo em adiantado estado de putrefação.

Antes da chegada da polícia, saiu de fininho, sorrateiro, sonso, pegou um ônibus para Maceió e nunca mais ninguém soube de Moacyr, o Matador.

domingo, 18 de julho de 2010

A musa da Copa e as cerejeiras de Curitiba - Luiz Andrioli

Crônica falada de Luiz Andrioli


Tributo a um comunista - Antonio Torres

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres






Não, ele não espetava padres nem comia criancinhas, conforme a lenda apregoada pelos párocos em seus sermões dominicais, que transformavam os da sua classe em bichos-papões, sangüinários arautos do medo e do terror, todos condenáveis hereges. Cruz credo!

As exéquias a Apolônio de Carvalho me fizeram lembrar do comunista que conheci longe dos fervores religiosos. E em nada ele se assemelhava a um monstro. A bem dizer, foi o meu anjo da guarda. Descobri isso no meio de uma conversa que tivemos num banco de uma praça, na cidade de Alagoinhas, Bahia. Ano: 1959. Eu estava lá pensando na vida, sem saber o que fazer dela. Havia terminado o curso ginasial e o serviço militar. E estava sobrevivendo com o salário-mínimo de vendedor-pracista de uma indústria de bebidas.

Cansado de rodar o dia inteiro em cima de uma bicicleta com uma pasta na garupa, recheada de mostruários, um talão de pedidos e um maço de promissórias vencidas, sentei-me naquele banco para fazer um balanço. Estava preocupado com as vendas que fizera para bodegueiros endividados, aos quais já me afeiçoara, a ponto de me render aos seus desesperados apelos: se ficassem sem mercadorias, aí é que não iam poder pagar as contas atrasadas. Essa, porém, não iria ser a lógica do patrão, que naturalmente me poria a correr em busca de outra ocupação, já que como vendedor não passava de uma nulidade.

Foi então que chegou o comunista, com um pacote do jornal Novos Rumos, que lhe era enviado daqui do Rio para distribuição naquelas bandas. Chamava-se Mário, figura de utilidade reconhecida por se tratar do dono de uma mecânica e borracharia, tão socialmente aceitável quanto os espíritas, os crentes e os maçons. Ele sentou-se ao meu lado. Acendeu um cigarro, deu uma baforada nele, pigarreou e puxou assunto.

Depois de dizer que havia lido uns artigos que eu vinha escrevendo para uma gazetinha da cidade, perguntou-me se tinha algum plano para o futuro. ''Escrever.'' Não se mostrou surpreso com a minha resposta. ''Quer ser jornalista?'' Não foi a sua pergunta o que me surpreendeu, mas a sua garantia de que, se era isso o que eu queria, ele poderia me abrir uma porta. Na capital!

No dia seguinte, às 9 horas da manhã, aquele borracheiro que vivia todo sujo de graxa, estava à minha espera na estação ferroviária, de acordo com o combinado. De banho tomado e vestido num impecável terno branco. E já com dois bilhetes para o trem mais caro e mais bonito, tanto que era chamado de Marta Rocha, em alusão à beldade baiana que por duas polegadas a mais ou a menos (já não me lembro) não conquistou o cetro de rainha da beleza universal.

Ao chegar a Salvador, logo nos vimos diante de uma recepcionista. ''Quem deseja falar com o doutor João Falcão?'' Não foi preciso anunciar o nome. Uma voz veio lá de dentro: ''É você, Mário?''. Em questão de minutos atravessamos uma rua. E chegamos ao prédio do Jornal da Bahia, na companhia do seu dono.

Lá fiquei. Mário se foi. Deixando-me um forte motivo para querer bem aos comunistas.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O Salão das Crianças - Cineas Santos





Como já afirmei em outras oportunidades, o Salão do Livro do Piauí já nasceu grande. A primeira edição, realizada em julho de 2003, atraiu milhares de pessoas e a programação atendeu às expectativas do público presente. Ainda assim, faltava alguma coisa: o oxigênio da alegria que só as crianças possuem em doses elevadas. Como o Salipi se realizou em julho, mês de férias, os alunos da rede pública de ensino não se fizeram presentes. Por sugestão nossa, mudamos a data para a primeira semana de junho e, graças a uma parceria costurada com o SETUT, levamos a meninada para adonar-se do Salão.

Uma tarde, enquanto os ônibus despejavam mais uma enxurrada de crianças no Centro de Convenções de Teresina, uma cidadã bem-nascida fez o seguinte comentário: “Só podia mesmo ter saído da cabeça de jerico do Cineas a ideia de encher o Salipi de meninos sujos e barulhentos que malinam em tudo e não compram nada”. Como esse tipo de comentário anda velozmente, cinco minutos depois, lá estava eu tomando satisfação com a madame. Fui exato e preciso: Minha senhora, desculpe o mau jeito. Convidamos essas crianças da periferia por uma razão de ordem sentimental, digamos. É que fui um menino exatamente assim: pobre, feio, estudante de escola pública, que, por falta de uma biblioteca pública na cidadezinha onde nasceu só pôde ler o primeiro romance aos 17 anos de idade. Isso, como a senhora pode ver, não o impediu de estar à frente de um evento como este. Tenho certeza de que muitas dessas crianças, se tiverem acesso ao livro na hora certa, chegarão bem mais longe do que eu. E mais não disse porque a cidadã já se desmanchava em desculpas e salamaleques.

Por oportuno, vale lembrar que o principal objetivo do Salipi é formar novos leitores. Não por acaso, trabalhamos os dois polos mais visíveis da educação formal: os professores a quem oferecemos o seminário Língua Viva e os estudantes aos quais propiciamos uma programação rica e variada. Parece-nos que a estratégia vem surtindo os efeitos desejados.

Fazer o SALIPI é sempre um desafio que nos deixa esgotados, mas felizes. Ver crianças, aos milhares, ocupando cada espaço do Salão é algo que nos anima a continuar tentando. Vale lembrar aqui um comentário do escritor Moacir Scliar, que já esteve conosco: “Filho de família muito pobre, a única oportunidade em que minha mãe me permitia gastar o que não tínhamos era no dia da visita à Feira do Livro de Porto Alegre. Eu passava o ano inteiro contando os dias que faltavam para a visita à Feira”, afirmou. É possível que pelo menos uma dessas crianças que visitam o Salipi venha a tornar-se um(a) grande escritor(a). Se isso não acontecer, não tem a menor importância. Basta que se torne um bom leitor: a Nação agradece.

sábado, 10 de julho de 2010

O Casamento da Rosinha - Ronaldo Torres








PANIS ET CIRCENSE
S

“É preciso repensar o São João de Sátiro Dias”, assim se expressou o prefeito do arraial do Junco, um pequeno ponto no mapa das carências, a esse escriba que vos fala, numa manhã chuvosa de Alagoinhas, antevéspera do são João.

– Estou gastando trezentos mil reais com a contratação de duas bandas, fora as exigências de contrato.

“Pelo preço, deve ser Chiclete Com Banana”, pensei cá com meus botões. Não era. Tratava-se dessas bandas de forró eletrônico chamadas “oxent-music” que proliferam no Nordeste e ninguém sabe a diferença de uma para outra.

– Trezentos mil... esse dinheiro daria pra construir quantas casas, prefeito?
– Mas é o povo que quer.

O povo quer comida, saúde, escola para os filhos.

– Aqui em Alagoinhas, quando o prefeito Joseildo acabou com a farra dessas bandas e empregou o dinheiro na cidade, o povo reclamou no primeiro ano; no segundo, todo mundo lhe deu razão e ele foi reeleito com mais de setenta por cento dos votos.
– Ah! Mas o povo de lá não pensa assim não.

Quem não conhece, pensa que o arraial do Junco é uma cidade rica, que tem dinheiro sobrando e pode se dar ao luxo de promover mega eventos por pura vaidade. Não. O IDH é um dos mais baixos do Brasil, o desemprego é alto, o que força o êxodo, a Saúde é precária, Educação, idem, Segurança Pública inexiste e a zona rural é desassistida e em alguns povoados o povo bebe água salobra porque a Prefeitura alega falta de verba para consertar as bombas d’água que bombeariam a água dos poços artesianos. Mas, faça-se justiça: o prefeito tem conseguido um grande avanço na melhoria da qualidade de vida da população.

Como não sou afeito a esses agouros que a linda juventude chama de música, torci o nariz para a programação junina que a Prefeitura do arraial do Junco promoveu até as vésperas do São João. Viajei no dia 24, dia do Casamento da Rosinha, uma invenção do meu primo Arizio para tirar o povo do marasmo e que deu certo. A cidade e a roça se mobilizam em torno desse evento e durante todo o dia a diversão é garantida ao som do autêntico forró pé de serra, banda de pífano, bumba-meu-boi e o desfile de bonecos gigantes. A multidão acompanha o cortejo a pé, de carro, de cavalo, de jegue ou de carroça pelos becos e ruas da cidade, parando na Praça central onde acontece o dito “casamento”. Este ano, completou o 31º desfile.

Cheguei ao Junco na certeza de que o povo irradiava felicidade por conta das atrações tão cantadas nos jornais da Bahia, mas o quê! Só ouvi reclamação, principalmente pela ideia um tanto estranha de se contratar banda de reggae para tocar em noite de São João numa cidade em que o povo é genuinamente forrozeiro. Uma das bandas do cachê exorbitante fora rebatizada para “Dejafui”, em referência ao nome “Dejavú”.

A minha leitura é pouca para entender os notáveis da terrinha. Nesse preço, e sem agradar nem a gregos nem a baianos, dou razão ao prefeito quando ele diz que é necessário repensar os festejos juninos principalmente depois que lhe fiz outra pergunta, ainda em Alagoinhas:

– Quanto a Prefeitura destinou para o Casamento da Rosinha?

Ele alargou um sorriso de satisfação, daqueles de quem pratica o grande ato da Suprema Bondade, o realizador de sonhos impossíveis, o patrocinador das grandes causas, cuja falta de ajuda não seria possível se realizar.

– Dei um mil reais pro Casamento da Rosinha.
– !?!?!?


O Piauí é logo ali... - Cineas Santos



De Barra de São Miguel


De Praia do Francês


1994: ainda ressoava no ar o grito dos tetracampeões. Por sorte, à época, ainda não existia vuvuzela, ou melhor, ainda não havia a palavra, quase tão chata quanto o ruído produzido por essas malditas cornetas de plástico. O país voltava à normalidade e já sobrava algum tempo para que se contassem os mortos por acidentes de carro, cachaça, brigas, enfartos, etc. Aproveitando uma semana de férias, resolvi conhecer Alagoas, estado que, segundo Graciliano Ramos, com seu humor rascante, deveria ser transformado num imenso golfo. Por oportuno, vale lembrar: o velho Graça era alagoano.

Vista do alto, Maceió me pareceu um navio encalhado entre o verde dos canaviais e o azul do mar. Mas, mesmo com o cheiro nauseabundo do Collor em cada esquina, a cidade é bela e acolhedora. As praias de Maceió são famosas, uma delas, a do Francês, é o reduto preferido dos turistas europeus. Pois bem: depois de visitar a Barra do São Miguel, onde os índios caetés comeram, perdão, devoraram o bispo Sardinho, resolvi conhecer a mais famosa praia da cidade. Com algum sacrifício, encontrei uma nesguinha de sombra (minha cota de sol já curti toda no sertão do Caracol) sob uma barraquinha de lona. Mal me aboletei, já me apareceu a primeira dupla de violeiros cantando loas às belezas das Alagoas (a rima é intencional). Depois vieram os cegos sanfoneiros, as ciganas, os meninos vendedores de queijo assado na brasa (uma delícia), de amendoim, de água de coco, de picolé, de protetores solar, de bonés, de pipas... E, por toda parte, os gringos, às centenas, vermelhos como camarões, encharcando-se de caipirinha e espichando os olhos no rumo das belas nativas... Aquilo me pareceu a Feira de São Cristóvão, com o mar bramindo por perto. Em pouco tempo, bati em retirada: excesso de barulho para um catingueiro do meu naipe.

Na hora de pegar o carro no estacionamento, uma cena que pagou a viagem. Com enorme desenvoltura, lobrigando entre os automóveis, um garotinho sarará, entanguido, recoberto de sardas, recolhia os caraminguás que os turistas lhe davam e agradecia em todos os idiomas conhecidos, inclusive em aramaico. De repente, um argentino, meio bêbado, deu-lhe una platita novinha. O garoto exibiu o seu melhor sorriso e agradeceu em portunhol: “Gracias, sinhô! Os miró é Romário e Maradona”. A simples menção do nome de são Maradona fez o argentino derreter-se de felicidade. Eu, que a tudo assistira, não me contive e comecei a sorrir. De repente, o garoto virou-se para mim e disparou: “E usted?”. Ainda sorrindo, respondi: Piauí, meu filho! O sararazinho ficou sério, concentrou-se por uns segundos e sapecou: “Já sei: Piauí é ali bem pertinho do México”. Acertou em cheio! Por essas e outras, viajo pouco, mas sou forçado a admitir: viajar é ilustrar-se...

quinta-feira, 8 de julho de 2010

A Viagem - Luís Pimentel



De Pau de arara



O rapaz entrou em casa como quem entra no bar. Sentou em uma cadeira e estirou as pernas sobre o tamborete. Pegou a garrafa de cachaça no móvel ao lado da mesa e um copo na bandeja cheia de copos que ficava ao lado da garrafa. Serviu-se e tomou duas doses, uma seguida da outra, depois acendeu um cigarro. A sala estava na penumbra, iluminada apenas pela luz azulada da televisão que o pai assistia. O clarão do palito de fósforo iluminou o rosto do rapaz e o pai observou que ele tinha a barba por fazer.

O pai viu que os sapatos do rapaz estavam sujos, largando tufos de terra sobre o tamborete, mas não reclamou. Apenas perguntou você vai mesmo e ele disse vou.
O pai quis saber se ele estava aborrecido com alguma coisa e ele disse que não. O pai então perguntou por que resolvera partir assim, tão de repente? Ele respondeu que era para não perder a oportunidade, o caminhão alugado pela empresa sairia de manhã bem cedo, levando todos os candidatos ao emprego. Queria aproveitar para não ser obrigado a ir depois, sozinho, ainda tendo que pagar a passagem.

Que tipo de trabalho é esse, meu filho?, o pai quis saber.

O rapaz não respondeu e amarrou a cara. E se serviu de mais uma dose.

O pai insistiu, me diga ao menos onde é. Respondeu que era na capital. A contragosto. O pai perguntou ao filho se já tinha separado todos os documentos, sem esquecer identidade e carteira profissional, e ouviu um muxoxo como resposta: não sou abestalhado, meu pai. O pai disse eu sei, filho, é só uma preocupação.

Está levando algum dinheiro?
Estou. O pouco que tenho.
Precisa de uma ajuda?
De jeito nenhum. Guarde suas economias, para as necessidades.

O pai perguntou se o filho sabia quanto ia ganhar e ele respondeu que não. Sabia ao menos se o ganho seria suficiente para as despesas? Ele respondeu que sim. Derramou mais uma dose de cachaça no copo e o pai disse pare de beber, vá se alimentar. Vá fazer essa barba e tomar um banho. Depois descansar, de manhã cedo precisa estar preparado para encarar a estrada.
Não sou eu quem vai dirigindo, reagiu o rapaz.
Mesmo assim, disse o pai.

O rapaz perguntou pela mãe e o pai respondeu que estava no quarto, onde mais estaria? Melhora nenhuma?, perguntou. Melhora nenhuma, foi a resposta. O pai disse vá se despedir dela, já que você vai sair bem cedo, e o rapaz disse que preferia não se despedir. Disse não quero olhar para a mãe daquele jeito que ela está. O pai disse você é quem sabe e reparou que o filho tinha os olhos molhados. O pai se levantou para desligar a televisão e o filho observou que ele também tinha os olhos molhados.

O pai disse vou dormir e já estava até mesmo de pijama. O rapaz desejou um bom sono. Pode aguardar que mandarei notícias. E não se preocupe com nada. O pai disse me despeço de você amanhã. O rapaz respondeu que ia madrugar.

Não tinha importância. O pai estaria acordado.

Bem cedo estava em pé diante do fogão, preparando café e esquentando na chapa umas bolachas que tirava do saco de papel. O rapaz acabava de colocar as roupas na sacola e penteava o cabelo diante do espelho do banheiro. O pai apontou o corte abaixo do queixo e o filho disse que fora gilete cega. O pai ofereceu uma loção pós-barba. Gosto mais de passar álcool mesmo, disse o rapaz, mas dessa vez sem qualquer impaciência.

Quer ovos quentes, para forrar bem o estômago?, o pai quis saber. O rapaz disse que não era preciso. Aí o pai lembrou que talvez ele não conseguisse comer nada tão cedo e o rapaz disse deixe, pai, que eu me ajeito. O deixe, pai soou de maneira carinhosa. E foi com mais carinho ainda que o pai acabou de esquentar as bolachas.

O pai ficou olhando para o filho, enquanto ele tomava café, acendia o cigarro, entrava e saía do banheiro, conferia as peças de roupas na sacola, olhava para o quarto da mãe, parecia entrar no quarto, se afastava, bebia água do filtro que estava no canto, ao lado do fogão, olhava para o quintal e depois para as paredes, assoviava para o passarinho, coçava a cabeça do cachorro.

O pai ficou olhando para o filho enquanto ele fechava o zíper da sacola, dizia até breve, pai, fique com deus e se afastava.

E assim o homem desconhecido que bateu na porta dois dias depois encontrou o pai. Era um fim de tarde e ele tomava uma cachaça no copo que o filho gostava de usar, olhando ora para a porta por onde o filho saiu e ora para o quarto onde o filho não entrou para se despedir da mãe.

O moço perguntou o senhor é o pai dele? Falou calmamente do acidente com o caminhão, como foi e como não foi, quem teve culpa e quem não teve, que o motorista da carreta é que descia a ladeira dirigindo desembestado, e foi falando tanta coisa que o pai não conseguia mais ouvir nem entender.

Por fim o moço disse como o pai deveria proceder para retirar o corpo, as roupas e os documentos do filho do instituto médico legal de não sei onde. Que outro caminhão da empresa estava à disposição para trazer todos os corpos de volta, mas que o pai tinha que ir até lá tal dia e tal hora, para aproveitar o carreto.

E do jeito que entrou, o moço saiu. Falando sem parar, agora já dizendo coisas como meus sentimentos, isso acontece, é da vida, descansou, deus chamou, era um rapaz tão jovem, tão forte, tão bom e outras falas que o pai já não conseguia ouvir, pois só queria que ele fosse logo embora, para entrar no quarto escuro e abafado da doente e dar de uma vez por todas a notícia que estava para dar há quarenta e oito horas: o nosso filho viajou.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Policarpo Quaresma para jovens - Antônio Torres


“O primeiro contato com um clássico, na infância e na adolescência, não precisa ser com o original. O ideal mesmo é uma adaptação bem feita e atraente”. É o que ensina a escritora Ana Maria Machado em seu livro Como e por que ler os clássicos universais desde cedo, publicado em 2002, pela Objetiva. Trata-se de um guia precioso para a educação literária e sentimental de crianças, jovens, e também de adultos, no qual ficamos sabendo que o Brasil é um país bem servido de adaptações. “A começar pela genialidade de Monteiro Lobato, que instituiu uma via de mão dupla entre o Sítio do Picapau Amarelo e a Grécia Antiga, criando assim uma excelente forma de iniciação infantil a esse universo”, ela nos recorda, acrescentando: “Poucos países tiveram tanta sorte em ter um privilégio destes”. Mas, o que significa exatamente adaptar uma obra clássica? Torná-la mais acessível a um universo de leitores ainda em formação, de qualquer idade, condensando-se a narrativa e, por vezes, se recriando a história em linguagem mais coloquial. Não têm sido poucas as iniciativas editoriais nesse sentido. E bem sucedidas. Basta lembrar uma antiga coleção de bolso da Ediouro, sempre a cargo de grandes nomes das nossas letras, entre eles Carlos Heitor Cony, que para tanto se valeu do seu múltiplo talento de romancista, cronista e autor de livros infanto-juvenis. Haveria, então, a necessidade de se adaptar também alguns clássicos nacionais, mesmo que sua distância no tempo nem de longe possa se comparar aos três mil anos dos mitológicos gregos, ou mesmo aos quatro séculos de um Dom Quixote? Uma resposta afirmativa acaba de ser dada pelo professor Arnaldo Niskier, figura pública na área da educação, membro da ABL, da qual já foi presidente, e autor de livros para crianças. Depois da sua adaptação da história do engenhoso fidalgo da Mancha, e, antes, de O alienista, de Machado de Assis, ele apresenta agora uma edição para jovens de O triste fim de Policarpo Quaresma, o célebre romance de Lima Barreto, pela editora Consultor, com ilustrações de Mário Mendonça.
Ao contrário de uma posposta anterior, visando a levar o livro mais conhecido de Lima Barreto às salas de aula, da Companhia Editora Nacional (Série Lazuli Clássicos), com texto integral, mas com anotações e comentários de Nivaldo Carvalho, o educador Arnaldo Niskier evitou as notas de pé de página, optando por uma adaptação de certos trechos do livro, reescrevendo-os de maneira simplificada, e por uma atualização ortográfica, o que inclui as grafias que caíram em desuso (cousa = coisa, por exemplo). Seja como for, adaptado ou em versão original, O triste fim de Policarpo Quaresma é para ser lido e relido, em qualquer tempo e lugar, e por qualquer tipo de leitor. Ambientado no Rio de Janeiro da virada do século 19 para o 20, e marcado por dois acontecimentos decisivos do país (a abolição da escravatura e a proclamação da República), o romance mais conhecido de Lima Barreto é uma sátira a uma visão romântica da pátria e ao nacionalismo retumbante da Primeira República, sobretudo no governo do marechal Floriano Peixoto. Dividido em três partes, Policarpo Quaresma conta a história de um modesto funcionário público, em diferentes momentos de sua vida. Primeiro: o seu dia-a-dia burocrático. Segundo: sua mudança para a vida no campo, como proprietário rural. Terceiro: seu engajamento como soldado voluntário das tropas de Floriano Peixoto, na luta contra a Revolta da Armada, de 1893, ou seja, bem nos primórdios da República. Cada um desses períodos o leva a uma confrontação de suas idealizações com o país real, até mergulhar, com irônica e trágica lucidez, no desfecho patético de seu destino: A pátria que quisera ter era um mito, era um fantasma criado por ele no silêncio de seu gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a intelectual, nem a política que julgava existir, existe. A releitura do Policarpo Quaresma agora, na oportuna adaptação do professor Arnaldo Niskier, traz à lembrança um ensinamento do escritor inglês George Orwell, aqui encaminhado a mestres e alunos: “Aquele que tem o controle do passado, tem o do futuro”.

domingo, 4 de julho de 2010

Crônica da Tragédia Anunciada - Ronaldo Torres

De Dunga e os 11 anões



“Eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou!” (Hino Oficial da Seleção Brasileira na era Dunga e os onze anões)

Chegou ao fim, melancolicamente, a Era Dunga, assim como aconteceu com a Era Parreira, Lazzaroni e, antes que acontecesse com o Capitão Coutinho, um militar linha dura a serviço da Ditadura e que só jogava bola quadrada, ele se antecipou e nos deu o título de campeão moral, que deve servir tanto o quanto o de Campeão da Copa das Confederações.

Mas há males que vêm pra bem. Em copa do mundo de futebol o brasileiro se entorpece com as palavras de Galvão Bueno e libera geral, sem dar bola pro azar, desde que o azar não dê bola pra bola a nosso favor. Assim, enquanto todo mundo ficava de olho na televisão procurando novidades da seleção brasileira, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, o Tinhoso STF, passavam a rasteira na lei do ficha limpa, liberando alguns sacripantas dos rigores da Lei.

Felipe Melo era a crônica da tragédia anunciada e não vi novidade alguma no que ele fez ou deixou de fazer. Ele era aquilo, só sabia fazer aquilo, mas mesmo assim estava lá, ao vivo e a cores, servindo de boi de piranha. Ele não pediu pra ser convocado, não pediu pra jogar, mas a arrogância do técnico Dunga sobrepujou a sapiência e a inteligência do povo varonil do nosso Brasil.

Acreditava que na Copa do Mundo se convocava os melhores jogadores, mas não foi o que se viu. Vários atletas, que no Brasil ficariam no banco de reserva do Íbis de Pernambuco, o pior time do mundo, estavam a posar de heróis nacionais só porque eram artilheiros na Arábia Saudita e Kuzequistão. Kaká foi convocado doente, com a promessa de ficar bom, não ficou e também não perdeu a condição de titular. Enquanto isso, dezenas de jogadores vendendo saúde foram jogadas na sarjeta, com a desculpa de que não tinham experiência na seleção. Culpados? Somos todos nós que sempre damos um voto de confiança e quando a casa cai nos conformamos com o já desgastado bordão: “daqui a quatro anos tem mais”.

Em verdade, em verdade vos digo: quem jogou um futebol chifrin diante de um time chamado Azeibarjão e amarelou com os amarelos da Coréia do Norte, não merece passar das oitavas de final. Seleção que quem faz gol é um lateral, quem arma as jogadas é um beque central, não merece chegar as quartas de final. E chegamos, não por mérito, mas pelo medo estampado na cara da seleção chilena que entrou em campo disposta a não levar goleada. Como todos nós brasileiros, eles também acreditaram em Galvão Bueno.

E o Presidente Lula, do alto de sua importância política, vem nos consolar com palavras sábias de filósofo de botequim: “Dunga acertou mais que errou”. Errado, Senhor Presidente. O objeto de cobiça dos brasileiros é a Taça da FIFA, e não a Copa América; o objetivo dos quatro anos de treinamento é a Copa do Mundo e não a Copa das Confederações. O que adianta nadar, nadar, nadar e morrer afogado na praia? Para que serviu dar cinco a zero em Portugal, em jogo amistoso, e faltar futebol na hora da cobra fumar?

Senhor Presidente, em vez de sair por aí falando besteiras e criando novo título de campeão moral, junte-se à nação futebolística num grito único de protesto:

– Cala a boca, Galvão Bueno!

sábado, 3 de julho de 2010

Em Frente ao Espelho - Eduardo Proffa




- Não! Não! Não!

Negarei três vezes que não choro por mim... Que não choro pelo fim, ou pelo novo recomeçar...

Choro pelo trajeto de catástrofes naturais que ocorreram nestes últimos meses...

Choro pela falta de consciência política...

Choro pelo grande índice de analfabetismo...

Choro pelo pífio salário que recebemos...

Choro pelas drogas, mortes, estupros, prostituição infantil, pedofilia...

Choro por uma equipe palpável, e que com toda certeza tinha todas as condições de conquistar o hexa-campeonato...

Choro por tanta coisa, porém choro pelas perspectivas latentes que existiam em um “zilhão” de brasileiros...

Acredito que fizemos o nosso melhor e não posso entender que um locutor, ou comentarista que tenha condutas tão negligentes interfiram em nossos conceitos...

Execro pessoas que torçam contra seu país, seus irmãos e seus pares...

Nosso mundo cego e medieval ainda é conduzido por regras definidas pela oligarquia e clero constituído, porém não podemos nos deixar levar. Existem coisas mais importantes:

Nosso filho que vai nascer...

Nosso cônjuge e família...

Nosso trabalho...

Nosso amanhecer...

Nosso entardecer...

Nossos amigos...

Nossa poesia de viver...

Conduzir o barco no maremoto é que são elas!

Na vida tudo é mais importante do que tudo, é questão de prioridade... Então, levanta sacode a poeira e dá a volta por cima...

Pensando direitinho: terça, tenho que trabalhar o dia inteiro...

Putz! Fazer o quê? Quem mandou acreditar em personagem de contos de fada... E, ainda tinha o pé frio do Mick Jagger...


Nota do Blog: Eduardo Proffa é poeta, compositor, cantor e professor de Educação Física na rede pública do estado das Alagoas.