sábado, 21 de agosto de 2010

Vozes da Cidade - Cineas Santos




Dia desses, um político de carteirinha, desses cevados nos gabinetes da República, me fez a seguinte pergunta: “Professor, por que o final da letra do Hino de Teresina é tão pra baixo?“. De imediato, lembrei-me de uma coluna criada pelo Millôr Fernandes, denominada “Ministério das perguntas cretinas”. Engatilhei uma resposta condizente, mas segurei o freio de mão. Respondi: Talvez tenhamos ideias diferentes do que seja “para baixo”. Vejamos a última estrofe do hino: “Teresina, eterno raio de sol,/ Manhãs de claro azul num céu de anil;/ És fruto do labor da gente simples,/ Humilde entre os humildes do Brasil”. Pensando bem, o político tem razão: para um arrivista capaz de vender a alma ao diabo para chegar ao poder, os adjetivos simples e humilde devem soar depreciativas. Não bastasse isso, convém lembrar que os hinos, com raras exceções, são marchas marciais que conclamam os cidadãos a morrerem pela pátria. Até mesmo os hinos dos clubes de futebol, além de cantarem glórias e conquistas, incitam os torcedores a morrerem e matarem “pelas cores do time”. E como matam e morrem...

No caso de Teresina, há um dado curioso: a cidade passou 145 anos sem ter um hino, fato incomum. Pode-se argumentar que, a despeito disso, a capital cresceu e prosperou, o que é verdade. Mas, por oportuno, vale ressaltar que o homem é um animal que constrói sua identidade com símbolos. Alguém é capaz de imaginar o Cristianismo sem a imagem da cruz? Um hino, por pior que seja, é um símbolo e, como tal, deve ser entendido. Não por acaso, a autoestima do teresinense anda quase sempre ao rés do chão.

Como entrei nessa história? Bem: em 1997, a prefeitura de Teresina instituiu um concurso público para a escolha do hino da cidade. O músico Erisvaldo Borges compôs uma melodia e, sabendo do meu amor à cidade, pediu-me que escrevesse a letra. Na hora, retruquei que, em matéria de hino, o único que conhecia era o do Flamengo que, ainda hoje, mais choro do que canto. Por insistência do músico, encarei a empreitada. Nossa canção acabou sendo a escolhida e tornou-se o Hino de Teresina.
Na hora de iniciar a composição, pensei: vou cantar o essencial. E o essencial, em qualquer lugar do mundo, é Povo, o mais é paisagem. O Hino de Teresina é uma louvação ao cidadão comum, humilde, generoso e trabalhador. O que mais poderia cantar? O sol, os rios e o verde que, infelizmente, vai minguando a cada dia. Nada além. Não me cabia inventar guerras, feitos heroicos, grandes conquistas. A cidade sempre foi pacata, ordeira e acolhedora.

Talvez o ilustre político tenha considerado “pra baixo” justamente a louvação do povo simples, humilde e trabalhador, que lhe paga o salário e lhe garante um gabinete junto ao poder onde trama, alinhava conchavos e brinca de ser poderoso.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

AS FÉRIAS DO BRÓDER MARCÃO

Para o amigo Marcos Cunha,
Poeta de alta cepa.


De Morro de são Paulo



Marcão entrou em duplas férias: trabalho e faculdade. Aproveitou a oportunidade para conhecer Morro de São Paulo e suas turistas maravilhosas. Fez as malas, deu um beijo de despedida na mulher – que virou a cara em protesto gemente compreensivelmente humano de “na volta a gente se acerta!” –, deu um beijo na filha e entrou no táxi, rumo à Companhia Baiana de Navegação, vizinha ao porto de Salvador e em frente ao Mercado Modelo, onde embarcaria no “Catamarã” até Valença e de lá seguiria de canoa ou barco até a maravilhosa ilha, tão cantada em versos e prosas.

Viagem para Valença somente duas horas depois. Enquanto aguardava, resolveu jogar conversa fora na barraca do Miranda, no Mercado Modelo, regada a cerveja e tira-gosto de lambreta e pititinga, um peixinho tão miúdo que mal cabe na ponta do palito.

Em Salvador tem dessas coisas: quando você quer testar a baianidade de uma pessoa, leva-a ao Mercado Modelo. Chegando lá, se pedir uma dose de cachaça Januária e uma porção de lambreta, pode apostar que é baiano dos bons; caso contrário, é um impostor.

Passadas as duas horas, Marcão, ou melhor, Marcos Cunha, operador de processo metalúrgico da Caraíba Metais, embarcou para sua viagem encantada pela Baía de Todos os Santos, via mar de Itaparica e depois costa sul baiana.

Não descreverei o percurso, pois ele era marinheiro de primeira viagem e só conseguiu sair do banheiro quando o navio parou em águas calmas de Valença e não fica bem se falar do líquido verde que saía de sua boca quando o seu estômago não tinha mais nada para vomitar.

Em Valença, acertou com um barqueiro, atravessou a faixa que separa o continente do paraíso e, duas horas depois, andava sem rumo pelas ruas de Morro de São Paulo à procura de uma hospedagem. Em todas que batia, apenas uma resposta: lotação esgotada.

Procura daqui, procura acolá, já noite fechada, conseguiu uma esperança:

– Há uma cama vaga em um dos quartos, mas lá está dormindo um cidadão que ronca muito, muitíssimo, e alto, que interfere até nos quartos vizinhos e os outros hóspedes vivem reclamando.

– Não tem problema não. Sou acostumado a dormir na área da Caraíba, onde o barulho é ensurdecedor, quanto mais um ronquido à toa.

– Então a responsabilidade é toda sua. Depois não venha me dizer que não lhe avisei.

Marcão pegou a chave e foi para o quarto. No outro dia levantou-se disposto e, ao sentar-se à mesa para o café da manhã, o dono da hospedagem foi até ele. Sorridente, indagou:

– Como é que você conseguiu, cara? Pela primeira vez, desde que esse cidadão chegou, que todos dormiram sossegados, sem ouvir o ronco. O que foi que você fez? Que milagre foi esse?

– Eu não fiz milagre nenhum. Simplesmente, quando voltei pra dormir, o tal “roncador” se encontrava deitado de bruços. Puxei o lençol, dei um beijo na bunda dele e disse: “Que bundinha mais linda, meu Deus! Se dormir, eu traço! Há muito tempo que não vejo uma bundinha dessa!” Aí ele deu um pulo da cama, aterrorizado, se sentou num banquinho e passou a noite lá, sentado, me vigiando, com medo de fechar os olhos e dormir.


N.A. Qualquer semelhança com piada de botequim é mera coincidência.

Trio Irakitan na Tourada de Madri

Essas coisas raras que de vez em quando a gente acha na internet e não podem ficar perdidas no universo cibernético. Uma cena do filme nacional "Garota Enxuta" de JB Tanko, de 1959", com Grande Otelo e a participação do Trio Irakitan, interpretando a marcha carnavalesca "Touradas de Madri", de Braguinha. Vale a pena ver.

sábado, 14 de agosto de 2010

Para Lennon e McCartney - Luís Pimentel



– A maneira de escrever não era assim que nem a do meu nome, não. Está aportuguesado, escrito conforme o nosso linguajar. O João, por exemplo, é John. O Leno se escreve, na verdade, de outro jeito. Dois enes, um agá e coisa e tal. Marcarte quer dizer Mc Cartney, de Paul Mc Cartney.
– Sei.
– Sabe coisa nenhuma. Estou perdendo o meu tempo te explicando essas coisas. Tu não tem a menor idéia sobre os caras de que estou falando.
– E preciso ter? Nem sei para que tanta informação. Eu só perguntei como era o teu nome completo.
– É João Leno Macarte da Silva.
– É esquisito pra cacete.
– É uma homenagem, mané. A dois caras muito importantes. Lennon e Mc Cartney, astros principais dos Beatles. Os músicos mais badalados, os melhores cantores e compositores. Sacou? Saca os Beatles?
– Não é do meu tempo. Mas já ouvi falar.
– Jesus Cristo também não é do teu tempo. Já ouviu falar, não já? Tem essa não, cara. Os Beatles. O conjunto de rock mais importante da história do universo.
– Mais que os rolinstones?
– Pô! Deixa no chinelo.
– Só lembro da música. Era um garoto, que como eu, amava os bitos e rolinstones.
– Isso aí. Meu nome vem daí. Meu pai juntou os nomes dos dois caras.
– E o da Silva?
– Da Silva é de família mesmo.
– E por que os teus pais fizeram essa sacanagem contigo? Leva a mal não, mas o teu nome ficou muito esquisito.
– Eles eram loucos pelos Beatles, além de loucos mesmo, no geral. Meu pai tomava porre, botava o disco dos caras na vitrola e se deitava no chão, abraçado com a caixa de som, babando na barba e acompanhando o som dos caras. Sabia todas as letras, principalmente as do John Lennon.
– E a tua mãe?
– Minha mãe curtia o Paul.
– Quem?
– Paul Cartney, o outro. Ela achava o cara lindão. E era mesmo. Outro dia vi o malandro na televisão. Tá velhaço, mas um velho bem apanhado. Minha mãe até fugiu com um sujeito que trabalhava no restaurante da esquina, só porque ele se parecia com o Paul.
– E o teu pai?
– Ficou com o John. Deitando no chão, abraçado à caixa de som, babando na barba.
– E ele?
– Ele quem?
– O Jon. Tá velhaço também?
– Morreu.
– De que?
– Meteram umas balas nos cornos dele.
– No morro? Era envolvido com tóxico?
– Claro que não, meu irmão. Foi um maluco que apagou ele. Um fã. O cara tá preso.
– E tu?
– Que tem eu?
– E por que tu veio parar aqui, no Frei Caneca?
– Me pegaram com uma arma e não tenho porte. Tomaram a arma e ainda me enfiaram aqui.
– E pra que tu queria a arma? Ia assaltar?
– Deus me livre. Sou do bem. Eu ia matar um cara.
– Aqui mesmo?
– Não. Na Inglaterra.
– Quem?
– O outro. O que sobrou. O tal do Paul.


quinta-feira, 12 de agosto de 2010

A primeira ninguém esquece - Cineas Santos

De Pescador de piaba



A cidade era uma leseira só. A monotonia só se quebrava no período dos festejos do padroeiro, quando morria um dos bem-nascidos ou quando chegava algum cirquinho extraviado. No mais, a vida escorria lenta como um rio de águas viscosas... Para mim, que não conhecia outra cidade, tudo estava conforme: havia passarinhos e disposição para persegui-los; havia os campinhos de monturo e bola de meia; havia, principalmente, as piabas rutilantes no açude, que chamávamos de tanque. Pescá-las, no entanto, exigia alguns apetrechos básicos, paciência e alguma habilidade. Os arremedos de anzóis eram feitos de alfinetes, cuidadosamente, curvados, com uma leve inclinação para direita. Para distingui-los dos anzóis de verdade, criamos um neologismo: gués. Frágeis, só serviam para pegar piabas. A linha-zero, presa a uma varinha de pereira, não podia ultrapassar a medida de metro e meio. Pronto o gué, era preciso preparar a isca. Os mais apressados recorriam a miolo de pão ou beiju. Os expertos (modestamente, eu me incluía entre eles) usavam uma isca especial denominada bolo. Preparar o bolo era quase um ritual: farinha de mandioca pisada no pilão, uma pitada de goma, uns fiapinhos de algodão e água fervendo. Depois, era usar as mãos para manipular a massa até torná-la homogênea e consistente. Isto posto, bastava escolher o local e o horário adequados. Para quem não sabe, piaba tem hora de alimentar-se. O amanhecer e o final da tarde são os melhores horários. Um inconveniente: não se pesca piaba sem doar um pouco de sangue às muriçocas: a vida é feita de escambos...

Diariamente, armado dos apetrechos necessários, eu me dirigia ao velho tanque e, sem maiores sacrifícios, pescava uma enfiada de piabas. A pior parte – limpá-las e tratá-las – ficava por conta da Bia, minha irmã querida. Postas para secar numa folha-de-flandres, estavam prontas para serem fritas na gordura quente. Comê-las era sempre a melhor parte. Entre os comensais das minhas piabas, figurava seu Pojucã Aragão, com seu narigão de árabe e o cheiro de nicotina que o denunciava a distância. Seu Pojucã degustava as piabinhas fritas com cachaça Claudionor Carneiro. Só pagava a bebida: o tira-gosto era uma “cortesia” da tia Purcina. Todos os dias, antes do almoço, o ritual se repetia como se fosse uma devoção.

Vai que um dia, por um motivo qualquer, não fui pescar. No horário de sempre, o cidadão chegou, pediu uma talagada de cana e ficou à espera das piabas. Ao saber que não as teria, ficou bastante desapontado. Com ar de inquisidor, perguntou-me: - Você não foi pescar por quê? Como, desde pequeno, não gosto de dar satisfações a ninguém, mesmo correndo o risco de pegar uns cocorotes de dona Purcina, nem titubeei: Porque não quis! O cidadão percebeu que no grito nada conseguiria. Cordato, me fez a seguinte proposta: - Amanhã, se você pescar cem piabas, lhe dou uma camisa. Para encurtar a arenga, no dia seguinte, ao meio-dia, 102 piabas, salgadas e sequinhas, estavam à sua disposição. Homem de palavra, cumpriu o combinado. Foi assim que, aos nove anos de idade, comprei minha primeira camisa. Ganha um doce quem adivinhar a cor...

Por que me lembrei disso agora? Bem: na semana passada, fui a São Raimundo Nonato na companhia do violonista Josué Costa. Por falta de coisa melhor, levei-o ao velho açude para pescar piabas. Josué, que nunca pescara nada na vida, ao fisgar a primeira piaba, fez tamanho alarido que escorraçou as demais. Pediu-me que o fotografasse, exibindo a piabinha que, como uma pequena placa de cristal, debatia-se no ar. Aos olhos dos passantes, a cena poderia parecer patética. Aos meus, não. Sei, por experiência própria, que a primeira piaba ninguém esquece.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Um Causo de Arrepiar - Ronaldo Torres

De fogo-fátuo sertanez
Era noite de breu e o vento açoitava nas frestas das janelas tirando um som agudo e arrepiante. Parecia um gemido de almas penadas ou vozes vindas do Além, espectros em busca de um médium para se manifestar para os vivos. Os ponteiros se aproximavam da meia-noite, os meus irmãos e eu não conseguíamos dormir. Éramos três a dividir o medo e o mau presságio, cada um fantasiando e interpretando ao seu modo as variações sonoras do vento. Guidório, o mais velho, aproveitou o nosso medo para contar uma história verídica de assombração, acontecida com o nosso primo França, lá para as bandas do Arraial do Junco. “Era uma noite de lua cheia, de céu límpido e transparente, e dava até pra ver São Jorge lutando contra o dragão na Lua.” – disse-nos ele. “No Junco, nas noites de lua cheia, as crianças se sentam à porta de casa para ouvir os mais velhos contar estórias de além-mar, de Pedro Malasarte, ou estórias de assombração, de zumbis, fogo-fátuo, visagens, lobisomens e mulas-sem-cabeça. Vocês sabiam que a mula-sem-cabeça é o castigo de Deus para a mulher que transa com padre? E que o filho que bate na mãe vira lobisomem na quaresma?” Não. Não sabíamos. “O Junco” – prosseguiu – “é cheio de crendices e superstições, fruto da miscigenação indígena, e por isso é forte o temor ao sobrenatural, às coisas do Além. Nossos tataravôs eram portugueses casados com índias; como os filhos ficavam a maior parte do tempo com as mães, foram passados para os filhos seus presságios, lendas, crendices e todo o medo e respeito do índio ao sobrenatural. E os seus filhos passaram para os filhos que passaram para os filhos e estamos nós aqui, na quarta ou quinta geração, com medo do vento assobiando lá fora.” “O nosso primo França, nessa noite de lua cheia, estava voltando do seu roçado para sua casa, na cidade. Perdera a claridade do dia por causa de uma rês desgarrada que ele teve que ir atrás. Quando conseguiu trazê-la de volta para o seu pasto, já era noite fechada. Não se preocupou, pois a lua iluminava o caminho como se fosse a luz do sol e o cavalo seguia em trote leve, depois de um dia de labuta. De repente, França avistou um clarão vermelho ao longe e o seu coração acelerou descompassado:” “– Um facho! – gritou assombrado.” Facho, como vocês sabem, é como se chama o fogo-fátuo lá para aquelas bandas. E o fogo-fátuo nada mais é do que a combustão espontânea de gases de matérias orgânicas em decomposição, principalmente em cemitérios, e, por causa disso, pensa-se que seja uma aparição do sobrenatural, uma alma penada em busca de um corpo para reencarnar. E França, que muitas e muitas vezes ouvira falar do fogo-fátuo – ou do facho, conforme se chamava – estava tendo sua primeira experiência com o sobrenatural e não sabia como se defender. Rezou o Pai-Nosso, o Credo, a Ladainha de Nossa Senhora, oração para o anjo da guarda e quando esgotou seu acervo de orações, passou a inventar algumas, porém o facho parecia determinado em sua aparição e se aproximava dele no mesmo passo do andar do cavalo. Ora desaparecia, ora ficava piscando e quando França tomou ciência de que o encontro seria inevitável caso continuasse em sua marcha, encostou o cavalo em um arbusto, apeou, se escondeu em outro, e passou a noite ao relento, de cócoras, olhando as estrelas e aguardando o dia amanhecer para seguir viagem. Ao surgirem as primeiras barras da manhã, tomou as rédeas do cavalo, montou e picou esporas no caminho da cidade. Estava doido para chegar à venda de Luiz de Roxinho, molhar a garganta e contar a sua primeira experiência com o sobrenatural. Ao olhar em direção de onde tinha visto o facho, seu coração pulsou acelerado e o corpo retesou: o facho continuava a lhe perseguir. “Não pode!”, pensou, suando frio. Todos sabem que o “facho” não aparece no amanhecer, e como é que aquele estava lá? Aprumou as vistas em direção da assombração e então uma surpresa quase o fez cair do cavalo: o tão temido facho não passava da luz de sinalização da torre de telefone, no alto do Cruzeiro dos Montes, e sua aparição intermitente se devia ao trotar do cavalo que elevava a sua visão sobre os arbustos.” Meu irmão Guedes e eu disparamos em gargalhada que rompeu o silêncio da noite e vazou até o quarto dos nossos pais, que nos ameaçaram de surra caso o nosso irmão caçula acordasse. Abafamos o riso e então ouvimos um grito desesperado vindo da cozinha. Um, não; vários, e ainda com pedido de socorro. Levantamo-nos às pressas e corremos para ver o que estava acontecendo. Deparamo-nos com nossa irmã Zuleide em estado de choque, ofegante, trêmula, sem falar coisa com coisa. O velho chegou empunhando uma arma, pensando tratar-se de ladrão. – O que foi, Zuleide? – perguntou. – U’a alma! U’a alma penada! – balbuciou. – Onde? – Ali. No quintal! – e apontou porta afora. Olhamos para o quintal. O vento balançava as árvores e as folhas cantavam uma melodia arrepiante. Mais ao fundo um vulto branco parecia flutuar no ar, balançando de um lado para o outro. O meu coração disparou. Guedes se agarrou à barra da saia de nossa mãe e não quis largar, por mais que ela forçasse. O velho mandou Guidório dar um sumiço na bendita alma, pois não queria saber desse negócio de assombração no quintal. Que procurasse outra casa para assombrar. “Fantasmas desvalorizam o imóvel”, foi o que disse antes de retornar ao seu quarto. Guidório desapareceu no breu do quintal e Zuleide pedia, histérica, para ele voltar. Tempos depois vimos sua sombra se aproximar do espectro, confabular, fazer uns gestos e, espantados, o vimos ser engolido pela alma penada em questão de segundos. Zuleide gritou lamentosa: – A alma tomou o corpo dele! A alma tomou o corpo dele e vem vindo em nossa direção! De fato o fantasma caminhou em passos largos em nossa direção, com o gingado de capoeira peculiar de Guidório, um discípulo do mestre Pastinha. Tomara a forma do seu corpo. Quem seria essa alma desgarrada dos mortos, vagando pelo mundo dos vivos, em busca da transmigração? Será que nos faria algum mal depois de se apoderar da matéria carnal do nosso irmão? Antes que estas perguntas fossem respondidas e que nossa irmã desmaiasse de medo, Guidório se rematerializou e jogou um lençol branco sobre a mesa.

sábado, 7 de agosto de 2010

A concessão do evangélico - Antonio Torres

Crônica do livro "Sobre Pessoas", de Antonio Torres


De E a vida continua


Naquele dia, um passageiro das linhas urbanas Copacabana-Centro estava cheio de pressa. Decidiu que o melhor a fazer era pegar um táxi. Entrou num conduzido por um motorista jovem, mulato, impecavelmente vestido com uma camisa branca de mangas compridas, e que ouvia uma música, bem baixinho. Deu-lhe o destino: Paço Imperial, na Primeiro de Março. "É aquele prédio onde ficam os deputados?" Respondeu que era logo ao lado. E brincou: "Você compraria um carro usado daqueles homens?" Ao que o taxista replicou: "Há gente honesta lá. Nem todos são corruptos."

Por razões que não vêm ao caso, o passageiro levava um CD dentro de uma pasta. E nele havia uma voz de mulher, que poderia ser consoladora para as tensões do tráfego e da vida, com suas inexoráveis urgências. Perguntou ao seu condutor se se incomodaria de trocar o que estava ouvindo por aquele outro. Ele quis saber qual era o conteúdo do disco. O gênero musical - falou assim. Bem falante. Os esclarecimentos foram dados, com ênfase na beleza das canções, escritas por Vinícius de Moraes. O moço ao volante sabia vagamente de quem se tratava. Ainda assim, sentenciou:

- Só ouço música evangélica.

Imposição da sua igreja? Não, o que ia no banco traseiro não se atreveu a indagar isso ao da frente, que já acedia:

- Mas vou fazer uma concessão - disse, pondo o disco em movimento.

O passageiro agradeceu-lhe e calou-se. Passou a pensar nas suas dificuldades de lidar com religiosos fervorosos que fazem de suas crenças as únicas verdades terrestres. E cósmicas. Historicamente, as religiões levam à intolerância, que leva às guerras. No entanto tinha de respeitar a fé alheia, tábua de salvação neste mundo pós-utópico, sem nenhum projeto coletivo em que crentes e descrentes possam se agarrar. E também precisava reconhecer que o evangélico ali estava sendo tolerante.

Conheceria ele os princípios filosóficos de Lutero e Calvino, que fundamentaram o protestantismo? Mas não seria exigir demais de quem vivia em trânsito permanente?

Ao final da corrida, o motorista confessou que havia gostado do disco. "Quem canta aí?"

Era Elizete Cardoso, da qual nunca tinha ouvido falar.

Ao saltar nas barbas do Palácio Tiradentes, pensei: será que ele estava se referindo aos deputados evangélicos, quando disse que nem todos eram desonestos? Vai ver admitindo que alguns fazem suas concessões. Ao demônio.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Presente de Grego - Cineas Santos

De cavalo de tróia


Antes mesmo do aniversário de Teresina (16 de agosto), a cidade recebe e agradece o “presentão”, louvado na mídia local como algo extraordinário. Engana-se quem, porventura, estiver pensando no tal mirante da ponte estaiada, na vigésima “reinauguração” da Potycabana ou em coisa parecida. A cidade está exultante com a inauguração de mais um supermercado na zona leste da cidade. Novidadeiro como ele só, o teresinense atendeu ao chamado do “progresso”: lota o gigantesco estacionamento e faz filas para conferir mercadorias, preços e prazos. Segundo uma cidadã bem-nascida que ostenta, com orgulho, um sobrenome pomposo, “Teresina, finalmente, ganha ares de cidade moderna, livrando-se do rótulo provinciano de Cidade Verde”. Acertou em cheio. Para a construção do novo templo do consumo na capital, derrubaram-se dezenas de árvores centenárias. Da noite para o dia, mangueiras, jaqueiras, oitizeiros e cajueiros foram reduzidos a pó. Onde, até bem pouco tempo, havia um dos clubes mais tradicionais de Teresina, com piscina, campo de futebol e espaçosa área verde, ergueram-se galpões modernosos, com cores berrantes, abarrotados de quinquilharias. Este parece ser o destino de todos os clubes da capital (Flamengo, River, Piauí, Tabajara, Classes Produtoras, etc). Neste ritmo, em dois ou três anos, não sobrará um.

É extraordinário o esforço que os teresinenses vêm fazendo no sentido de despir a capital do tal rótulo “Cidade Verde”, cortesia do escritor Coelho Neto, na década de trinta. Até onde sei, ainda não se fez um levantamento de quantas árvores são derrubadas em Teresina a cada dia. O tal “cinturão verde” da capital, há muito, tornou-se um amontoado de “vilas”, eufemismo usado para designar as favelas da capital. Quintais e chácaras dão lugar a edifícios de nomes sofisticados ou condomínios fechados que usam como chamariz o anzol da “segurança”. O que se vende não é um produto, mas uma ideia, uma grife, uma expectativa que não se cumpre. “Morar bem”, segundo o conceito dos expertos, é enjaular-se num apartamento com ar condicionado em cada um dos cômodos, circuito interno de televisão, porteiro eletrônico, toda a parafernália que engorda o faturamento da indústria do medo.

Compreensivelmente, todas as praças de Teresina estão às moscas, exceto as dos shoppings onde existem ar refrigerado e “segurança”. O teresinense já não consegue viver ao ar livre e, a cada dia, vai-se tornando refém do “clima artificial” e do medo que, como diria o poeta, “esteriliza os abraços”. Só assim se explica a sofreguidão com que recebe de braços abertos os presentes de grego que nos chegam a cada dia. Brava gente. Pobre gente.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Arraial do Junco sitiado pelo medo

De violência urbana


Na semana passada escrevi aqui sobre a violência que tomou de assalto a pacata população do arraial do Junco, incentivada pela ausência de investimentos em segurança pública e pela falta de ações sociais junto às comunidades carentes e aplicações de recursos em geração de emprego e renda. Como diz o ditado popular: mente desocupada é oficina do Diabo.

Some-se a isso a impunidade que permeia nas varas e tribunais, onde os ladrões do colarinho branco sempre se safam dos crimes de lesa-pátria. Ou de assalto aos cofres públicos. No arraial do Junco, com raras exceções, entram prefeitos pobres ou remediados e de uma hora pra outra se tornam grandes fazendeiros ou empresários, sem que se justifique tamanho aumento de patrimônio. E passam incólumes pelos tribunais fiscalizadores. De vez em quando um ou outro é apanhado por não ter como justificar tamanha roubalheira, mas aí a Câmara de Vereadores legaliza o desvio de conduta e o butim.

Hoje peço licença aos leitores do blog para publicar uma carta da professora, escritora e também colaboradora desse blog, Cristiana Alves, feita sob a tutela do medo, hoje de manhã, quando o Banco do Brasil do arraial do Junco foi tomado de assalto e a mesma lecionava em frente ao banco, de onde ouviu o tiroteio e a gritaria.

Sem polícia, sem delegado, os bandidos fizeram a festa.
Fiz uma revisão rápida no texto, apenas ajustando palavras desencontradas pelo medo.



Carta de Cristiana Alves


“Querido!

" A vida permanece em mim, e eu nela; o amor permanece em mim e eu nele..."



Se estiver lendo... ora, reza, pensa em coisas positivas. Tem um assalto em frente ao lugar que trabalho... estou com medo de alguém sair ferido... muitos tiros... reféns... Estou trancada no laboratório... tem muita gente lá fora... Não tenho noticias dos acontecimentos... vou ficar bem, mas temo por quem não está dentro do colégio... Há reféns no banco, não sei quem são. Por favor, perdoe-me por ficar te escrevendo agora , mas é que preciso me manter calma, a única forma é escrevendo. Sei que há violência em todos os lugares, mas assusta ver perto de nós.

Eu não diferencio tiros de bombas, pensei que eram fogos dentro da sala. Os alunos estão contidos, embora nervosos. Quem está no colégio está protegido. Liguei para minha casa; estão quase todos em casa... Não sei onde está meu pai, mas acredito que ele esteja na fazendo...

Estou aqui, mas fico preocupada com quem pode estar ferido.... Não consigo parar de escrever... Sinto paz em pensar em ti... sinto vontade de chorar também, mas NÃO POSSO, TÊM ADOLESCENTES ESPERANDO QUE EU SEJA FORTE E NÃO CHORE... Fico pensando o quanto somos impotentes, o quanto o que fazemos não resolve, precisamos de ações sociais mais efetivas, mas ignoramos as diferenças sociais.

Esta era uma cidade na qual se podia dormir com as janelas abertas, as portas e varandas não precisavam de fechadura, hoje transformam-se em presídio, estou trancada num “sair ou ficar eis a questão”, melhor ficar presa, por trás das grades de um colégio, lugar de liberdade, como se fosse um presídio e esperar que os tiros nesta floresta da violência não atinjam aqueles que nela percorrem entre ruas de calçadas que se transformam em selvas do animais que são considerados civilizados.

Pessoas que parecem iguais, não sei onde se desviam do humano, uns reféns de armas, outros reféns sociais, não sei o que se passa na cabeça das pessoas, escrevo de fluxo, não sei mais o que penso ou o que sinto neste momento.

Tenho informações que lá fora os tiros cessaram, a bordo de uma carro estão pessoas, semelhantes iguais, uns com armas na mão, outros com a vida por um fio, todos vivendo num carrossel que não para de girar, todos vivendo um mundo que há pouco parecia irreal...

Quando minha vida cessar que ela se vá escrita com algo que remeta paz, não gosto de chorar lágrimas sobre palavras, não gosto de ver o lugar em que cresci transformado numa selva em que animais como eu, são predadores de homens...

Projéteis por todo lado, vidros quebrados, as pessoas falam ao meu redor, eu não consigo deixar este teclado, estou paralisada em frente a uma tela de computador, sinto vontade de chorar, não choro com lágrimas, mas com palavras que saltam da minha mente em fluxo, não escrevo com nexo, faço uma carta a alguém especial, CONFIRO SE MINHA FAMÍLIA ESTA EM CASA, QUANDO EU ME DESPEDIR DA VIDA NÃO QUERO IR COM MAGOAS, QUERO TER A CERTEZA DE QUE AMEI E FUI AMADA DE DIFERENTES FORMAS, AOS MEU AMIGOS, nenhuma saudade, apenas a certeza de que vivi e fui feliz ao lado deles. É difícil ver a possibilidade de morrer em um minuto, penso que se eu estivesse lá fora correria riscos...não sei o que acontece... Espero que não tenha feridos, penso que em pouco tempo o que escrevo estará noticiado de outra forma em jornais, falando de vítimas e assassinos, ladrões, entretanto neste momento eu só penso nas pessoas...

Porque a vida tem que se esvair, porque a necessidade de assaltos, porque ferir, machucar, tirar vida... a criminalidade cresce o uso de drogas também, com ele o trafico, pessoas morrem e dizem que vão fecham o foram...

Estamos em terra de ninguém... Agora preciso ir ter noticias do mundo lá de fora...

Estou bem, acabou este capítulo do pesadelo, chuva de tiros, assalto a banco... mas há reféns ainda não sei quem são.

Ficarei bem, tentarei chorar com lágrimas quando chegar em meu quarto ou num banheiro escuro, não quero guardar este sentimento que me aperta o peito, quero na próxima escritura te falar de amor, de um poema ou um sonho bonito, quero uma " Poesia lírica", quero as notas de uma canção, quero dar e receber carinho e proteção, não quero falar de tiros, não quero ver corpos feridos, nem almas dilaceradas, quero uma canção mais bonita. Se eu tivesse partido hoje minhas últimas palavras teriam sido para você.

Quero escrever belas canções para os poemas vivos do meu viver, não um lamento ou canto de dor, por isso continuarei a escrever sempre coisa que desejo viver, mas não estou afastada da realidade, não sou cega vejo o mundo lá fora, as na partitura da sinfonia de tiros não vejo harmonia alguma.

Não esquece: vale cada instante em que estamos juntos, vale a vida, vale os sonhos... vale cada coisa que eu, você, as pessoas que conhecemos, filhos, irmãos, amigos, amores, pais, pessoas próximas, pessoas distantes nos proporcionaram de vida. Façamos valer a vida...

Beijos!

Cris


Desculpe-me os deslizes na gramática neste momento escrevo o que sinto sem tempo para revisão. Viver é como escrever este texto, um rascunho sem revisão.”

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Você acha que o brasileiro tá ficando burro?

Sobra criatividade ao brasileiro, mas lhe falta decoro na hora de votar. O vídeoclip abaixo é um verdadeiro tapa na cara da nossa indiferença com os resultados das urnas.


Edna Lopes - Combate à Corrupção: Uma Tarefa de Muitos

De FOCCO


Cada vez que os noticiários, tanto em nível local como nacional, divulgam atos de corrupção ativa ou passiva que envolve, em especial, representantes de órgãos públicos, cobrem de vergonha e indignação quem pauta sua vida de forma correta e não tolera qualquer tipo de ilicitude.

Quem acompanha esses mesmos noticiários sabe da ciranda de escândalos que “pipoca” de tempos em tempos em Alagoas. As operações da polícia federal com nomes sugestivos (Taturana, Guabiru...) tem desbaratado quadrilhas especializadas em dilapidar o erário. Merenda escolar, medicamentos, sinistros, donativos... aliás, tudo que pode representar lucro fácil tem sido alvo das quadrilhas que se organizam com a rapidez de água morro abaixo.

Cansado de ver, ouvir e ser enxovalhado e/ou olhado com desconfiança em qualquer lugar que chega, pois até nas redes sociais já se criou comunidade para disseminar preconceitos, o povo alagoano se organizou para dizer NÃO a essa praga que parece corroer o cerne da máquina pública daqui. No final de 2008 foi criado O FOCCO-AL - Fórum de Combate à Corrupção de Alagoas, para abrigar entidades da sociedade civil e órgãos em defesa do/a cidadão/ã , da aplicabilidade das leis e do combate a corrupção. A coordenação local está sob a responsabilidade do promotor Ubirajara Ramos, que representa o Ministério Público Alagoano.

As ações do FOCCO - AL desde então tem sido pedagógicas, de prevenção, mas também de fiscalização e monitoramento das políticas públicas no estado. Chega de ser motivo de piada e chega de impunidade! Essas ratazanas que agem na calada da noite contra a população, dilapidando os recursos públicos precisam ser denunciadas e punidas.

Por ocasião da tragédia que se abateu sobre 19 cidades, com chuvas e enchentes destruindo total ou parcialmente alguns lugares, este fórum tomou para si algumas tarefas tais como a de acompanhar, prestar orientação e dirimir dúvidas sobre o processo de compras, contratações de obras e serviços na aplicação de recursos destinados aos municípios em situação de emergência e calamidade pública. Para isso lançou uma cartilha orientando compras e contratos emergenciais.

Todas as entidades e órgãos participantes deste fórum têm a obrigação de acompanhar a aplicação dos recursos nas obras de recuperação das cidades por isso convidar os prefeitos dessas cidades para que os responsáveis pelas ações de repasse de recursos prestem conta, além de orientá-los nas licitações e nos próximos passos a serem dados, foi muito bem visto por todos.

A ação de “prevenir” possíveis erros é pedagógica. Cabe a cada um de nós nos colocarmos a disposição para exercer o papel do controle social. Não basta contatar que TUDO está errado e lamentar quando o ERRO é denunciado. É preciso participar efetivamente orientando, cobrando, exigindo punição quando algo está errado.

Resgatar a dignidade passa pelo caminho da participação cidadã. Como cidadã e educadora, participante de um conselho de direito que se sentou à mesa de abertura representando todos os conselheiros deste estado lembro a cada um e cada uma que nossa tarefa mal começou.

Mais uma vez cito o poeta africano Agostinho Neto: “Não basta que seja pura e justa a nossa causa. É necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós.”


O FOCCO-AL é integrado por 32 órgãos públicos e entidades da sociedade civil organizada. São elas: Advocacia Geral da União (AGU), Associação Alagoana de Magistrados (Almagis) Arquidiocese de Maceió, Associação dos Membros do Ministério Público de Alagoas, Comitê 9840, Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos, Controladoria Geral da União (CGU), Controladoria Geral do Estado, Central Única dos Trabalhadores (CUT) Defensoria Pública Estadual, Defensoria Pública da União, Delegacia da Receita Federal, Departamento de Polícia Federal/AL, Federação das Pestalozzi de Alagoas, Fórum de Conselhos de Direitos-(Facond), Fórum Permanente Pela Vida e Pela Paz (FORVIDA), Instituto Silvio Vianna, Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal, Movimento Social Contra a Corrupção e a Criminalidade (MSCC), Ordem dos Advogados do Brasil em Alagoas (OAB/AL), Secretaria de Estado da Fazenda de Alagoas, Serviço de Auditoria do Ministério da Saúde em Alagoas, Sindicato dos Jornalistas de Alagoas (Sindjornal), Sindicato dos Médicos de Alagoas (Sindmed), Sindicato dos Policiais Federais de Alagoas (Sinpofal), Sindicato dos Servidores do Tribunal de Contas do Estado. De Alagoas (Sindicontas), Sindicato dos Trabalhadores de Educação de Alagoas (Sinteal), Tribunal de Contas do Estado de Alagoas, Tribunal de Contas da União (TCU), Tribunal Regional Eleitoral e Universidade Estadual de Alagoas (Uneal) e Tribunal de Justiça de Alagoas.

domingo, 1 de agosto de 2010

Luís Pimentel: No Dia em que eu vim me embora

De O seminário


A vida de um homem se borda no amor ou no desamor. No afeto ou na indiferença. Pode ser a soma de todas as sobras, de tudo aquilo o que não teve, da indelicadeza de uma mãe, o bigode de um pai, a ausência de um cachorro. Também se desenha e se borda em um diálogo assim:

– Você se apresse que não tenho todo o tempo do mundo para ficar à sua disposição.
– Quase pronto, pai. Mas posso saber para onde vamos?
– Já disse. Para o tal do seminário.
– E por que o senhor resolveu que tenho que ir para um seminário?
– Não resolvi nada. É coisa de sua mãe. Idéia lá dela.

Meu pai falava tudo assim, de um jeito próprio, parecia escarrar e cuspir as
frases, sem muito cuidado com as palavras.

Entendi, mas fiz que não. Com o pé, fiz um carinho no cachorro que parecia estar tão triste quanto eu. Meu pai percebeu.

– E para que essa cara de tristeza? Parece um bezerro a caminho da castração. Não é o fim do mundo.
– Porque não é o senhor que está deixando sua casa para ir não sei para onde.
– Você não vai para não sei onde. Vai para um seminário, estudar para se tornar um homem sabido e temente a Deus.
– Grande coisa!
– Você está sendo mal-agradecido.
– Eu não queria, pai.
– Sua mãe decidiu.
– Eu sei.
– Tá decidido.
– Eu sei.
– É assim que a banda toca. São assim as coisas neste mundo.
– Vou poder levar o meu cachorro?
– Não. Eles não aceitam bicho lá.

O sol sempre intenso naquele pedaço de mundo parecia mais intenso ainda no dia da minha partida.

Subimos na carroceria do caminhão que nos levaria até a rodoviária da cidade mais próxima, onde tomaríamos o ônibus. Minha mãe me entregou a sacola de couro com o que chamou de “minhas coisas”: um sapato surrado, alpercatas, camisas mal engomadas, duas ou três calças curtas. O cachorro não veio. Minha mãe me deu um beijo na testa e disse secamente “se cuide”. Meu pai não disse nada. Nem eu.

Era muito cedo ainda e fazia frio. Quando nos acomodamos nos bancos de madeira da carroceria, meu pai esfregou a mão em minha perna, para me esquentar. Mordia o lábio inferior e apertava com os dentes os fios mais compridos do bigode.

– Vai ser bom para você – ele disse.
– Fingi que não ouvi e tentei me distrair contando as árvores que passavam correndo na estrada, na direção contrária à do caminhão.
– Você vai aprender a ler, conhecer todas as histórias bonitas que existem nos livros, e vai ter comida nas horas certas.

Voltei minha atenção para a conversa dos outros homens sentados nos bancos, os companheiros de viagem. Eles fumavam, sorriam mostrando os dentes estragados e falavam sem parar de gado, de porco, de cabras, cercas e falta de água nas cacimbas.

– Vai ter roupas sempre limpas, filho. E no fim do ano vem passar as férias em casa.
– Não venho – reagi.
– Não vem?

Meu pai apertava mais os lábios, coçava a barba e tinha um olho que parecia tremer sem parar. Devia estar triste, nervoso, com saudades de minha mãe.

Continuei impiedoso:

– Não venho.
– Eu busco você.
– Mas não me traz de volta. Não piso nunca mais os pés em sua casa.

No ônibus que nos levava para o seminário, ele tratou de voltar ao assunto. Eu repeti toda a mal criação.

A paisagem era mais verde do que na estrada anterior. Uns pingos de chuva dançavam no vidro da janela. Eu via o céu, as árvores passando, e o perfil do meu pai refletindo no vidro da janela do ônibus. Ele estava triste, mas tentou novamente ser gentil:

– Pensando na morte da bezerra?
– Em meu cachorro.
– Sua mãe vai cuidar bem dele.
– Minha mãe não cuida bem de ninguém nem de nada neste mundo.
– Eu cuido dele.
– O senhor não tem tempo.
– Vou cuidar muito bem do seu cachorrinho, você vai ver. Como é o nome dele?
– Não tem. É cachorro mesmo.
– Vou cuidar muito bem de Cachorro – repetia meu pai, enquanto me entregava com a sacola de couro à recepcionista, que me levou até o quarto onde já estavam uns quinze meninos, que me mostrou o banheiro coletivo e a toalha de banho, que tentava sorrir para mim e que me trouxe de volta até a recepção do seminário quando eu disse, aos prantos, que estava arrependido por não ter aceitado o abraço nem o beijo de despedida que o meu pai deixou parado no ar.

Daí em diante, foi contar os dias até a chegada das primeiras férias, para ficar parado horas no portão, esperando a chegada do meu pai, os olhos compridos na direção da estrada e as calças cada vez mais curtas.

Mas quem veio foi minha mãe e disse que eu iria com ela para o período de férias em casa, que podia desmanchar a pose de enfezado e parar de esperar pelo meu pai porque ele não viria. Meu pai morreu pouco tempo depois de me deixar no seminário. Não avisaram para evitar sofrimentos desnecessários.

Cumpri orgulhosamente minha promessa de não voltar nunca mais. Hoje, que já abandonei o seminário e me perdi no mundo, lembro de pouquíssimas coisas daqueles dias: os dentes estragados dos homens na carroceria do caminhão, o olho comprido e acho que molhado do meu pai pesando em minha nuca, enquanto eu acompanhava a recepcionista pelo corredor, e a saudade imensa que eu sentia do meu cachorro.



sexta-feira, 30 de julho de 2010

A mãe, as professoras e os dias de um escritor - Antonio Torres

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", de Antonio Torres

De Aprendendo o ABC



O primeiro foi aquele em que sua mãe lhe mostrou um ABC, passando em seguida a dizer os nomes das letras. Jamais esqueceria o encantamento que o desenho delas lhe provocaram logo à primeira vista. Arrumadas em filas no abecedário, formavam um conjunto enigmático. Cada uma, porém, tinha sua própria identidade e personalidade, como as coisas e as pessoas. E eram elas que davam registro a tudo o que há na Terra e no céu, compreenderia depois, quando aquela senhora chamada Durvalice começou a juntá-las em sílabas - bê-a-bá, bê-e-bé... - e, nos dias seguintes, em vocábulos que passariam ao reino das frases. Ivo-viu-a-uva...

Aquele menino nunca tinha visto uma uva. Agora sabia que se tratava de uma fruta. Mas como é, mãe? Ela também não a conhecia. Seu mundo era o das jabuticabas, murtas, graviolas, muricis, cajás, umbus.

Quando foi para a escola, num mês de março, já sabia ler a cartilha, o que deixou a professora Serafina muito feliz. Então chegou o dia 7 de Setembro. Escolhido para recitar um poema patriótico em cima de um palanque, viu a praça antes empoeirada e deserta apinhar-se de gente. Pensou que ia cair, tal era a tremedeira nas pernas. Ainda assim, soltou a sua voz gasgita: "Auriverde pendão da minha terra/ que a brisa do Brasil beija e balança/ estandarte que a luz do sol encerra/ as divinas promessas da esperança."

O público reagiu com lágrimas, num emocionado preito a uma criança capaz de memorizar todas aquelas palavras bonitas. Dali por diante, se lhe perguntassem o que queria ser quando crescesse, já tinha a resposta: Castro Alves.

Aí chegou outra professora. "Leve os meninos," disse-lhe dona Serafina. Triste notícia. Que graça teria uma escola sem meninas? A recém-chegada chamava-se Teresa, que trazia uma novidade: um livro para ser lido em voz alta, tão encardido e pobrezinho quanto aquele lugar de lavradores. Vinha a ser uma antologia de contos, crônicas e poesias. Para começar, ao personagem desta história coube um texto de José de Alencar, que nunca esqueceria: "Verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia na fronde da carnaúba." Imagine o efeito disso. Ele não fazia a menor idéia de como era o mar.

Também não tinha familiaridade com a chuva, o tema de uma redação, dificílimo, para quem vivia no polígono das secas. Asas à imaginação. Seu desempenho na escrita ganhou fama, levando-o a ser solicitado à realização de serviços mais desafiadores, por exemplo, as cartas dos apaixonados do lugar - e suas respostas. E as das chorosas mulheres dos migrantes. Estas eram de cortar o coração.

E assim iria se fazendo um escritor nascido na roça. As leituras o levaram a trocar a enxada pela caneta, com a qual viria a cavar o seu sustento, pela vida afora. E sempre a olhar as letras com o mesmo encanto com que as viu pela primeira vez.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Pobres meninos ricos... - Cineas Santos




De Futebol de várzea


O moleque ainda se encontra no “ventre das expectativas” e já é observado por olhos rapaces. São os “olheiros” profissionais, gente com faro para descobrir o que pode render bons dividendos. Como não dispõem de capital, trabalham para ex-jogadores de futebol, cartolas, especuladores de todos os naipes. Perambulam pelos subúrbios à caça de garotos com alguma habilidade. Quando descobrem algum, correm para entregá-lo a quem o contratou. A partir daí, o passe ( leia-se a posse) do futuro craque é fatiada entre os que se dispuserem a investir nele. Inicia-se, então, a trama para encontrar um grande clube disposto a contratá-lo. Assinado o primeiro contrato, cada um recebe o que lhe cabe e o garoto vai suar a camisa. Se, porventura, tiver talento e sorte, pode marcar ou defender um gol decisivo. Aí, como num passe de mágica, passa de “promessa” a “revelação”. Sai do anonimato para as páginas dos grandes jornais, com direito a elogios e afagos. No dia seguinte, aparecem o pai (até então, desconhecido), os parentes, os aderentes, os amigos de infância, e as indefectíveis marias-chuteiras. Esse caldo de cultura costuma ser letal. Adiante-se que o garoto-revelação, há bastante tempo, vem adubando seus sonhos de consumo: carrões, joias e louras... Assim, antes de reformar o barraco da mãe, passa a circular, sempre “bem” acompanhado, por lugares badalados.

Antes que um dos meus três leitores esbraveje, adianto: o que acabei de afirmar aqui é uma caricatura grotesca, mas com gotículas de verdade. A pergunta cabível é a seguinte: o que os grandes clubes de futebol estão fazendo para melhorar o nível intelectual dessa molecada pobre, semianalfabeta, que só possui alguma habilidade com os pés? As empresas da construção civil, por exemplo, já se deram conta de que operários instruídos acidentam-se menos e rendem muito mais. Estão investindo na alfabetização dos trabalhadores. Por que os clubes de futebol não fazem o mesmo? Por que, durante o tempo que passam concentrados, os jogadores não recebem aulas de português, de inglês, de ética, de educação sexual, de cidadania? Certa feita, Rachel de Queirós afirmou: “Vida de craque não são rosas”. Tinha razão: jogador profissional passa 80% do tempo concentrado, treinando,viajando ou jogando. O tempinho livre que lhe sobra é dedicado à esbórnia, que ninguém é de ferro.

Alguns, antes da maioridade, são “exportados” para os milionários clubes europeus. No ato da transação, um desses moleques pode embolsar, de uma vez, o que um professor-doutor não ganhará ao longo de toda a vida útil. O que fazer com tanto dinheiro e nenhuma informação? Comprar carrões, piercings de diamantes, correntes de ouro e louras, um harém de louras... Com raras exceções, o desempenho dessas estrelas, em campo, decresce na mesma proporção em que se lhes aumentam os salários. Como conciliar uma carreira que exige disciplina espartana com as tentações do mundo?

Quando “pisam na bola” ( e como pisam!), a mesma imprensa que os diviniza, sataniza-os sem a menor piedade. Num átimo, passam de heróis a vilões e acabam nas páginas policiais. Pensando bem, até por piedade, o país deveria importar-se um pouco mais com o destino desses pobres meninos ricos

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Polícia! Pra que Polícia? - Ronaldo Torres

De Procura-se Polícia



Se gritarem “pega ladrão!” corra para o lado oposto, porque o meliante nunca age sozinho ou de cara limpa. E, no arraial do Junco, Polícia virou vocábulo em desuso.

A delegacia de lá é como “A Casa”, de Vinícius de Moraes: “Era uma casa muito engraçada / não tinha teto, não tinha nada”. Presos não há nela não porque lhe falta um escrivão. Se houvesse segurança institucional conforme manda a Constituição Brasileira, havia superlotação na cadeia, de tantos velhacos e amigos do alheio que pululam na cidade. Sem se falar nos latrocidas de plantão no matagal à espreita do incauto velhinho e seu salário da aposentadoria.

Se faltou craque na seleção de Dunga, no arraial do Junco o crack abunda de tal maneira que uma boa parcela da população já anda de boca torta. Sem polícia para interromper o fumacê, a turma fuma seu cachimbinho na santa paz de Jah. O problema é na hora do acerto de contas com o traficante. Sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes, a solução é enveredar pelo mundo do crime. Quem quiser que cuide em colocar tranca reforçada nas portas ou contratar vigilância particular.

Esse cuidado não teve o cidadão que abriu uma loja de revenda de aparelho celular, pensando em tirar proveito da novidade: uma torre da operadora TIM, que fora obrigada pela Anatel a ligar a caatinga ao restante do mundo. Até que ele teria feito seu pé de meia sem maiores delongas se o ladrão não tivesse descoberto a fragilidade da segurança da loja e a inoperosidade da polícia. Arrombou a porta e fez o rapa, sem deixar um aparelho de remédio, como diria a minha avó.

Mas houve um tempo que existia lei no arraial do Junco. Eu era menino, mas me lembro da noite que o delegado teve o prazer de inaugurar a cela e a palmatória da cadeia, que, aliás, não era nem cadeia nos padrões normais, mas uma casa alugada pela Prefeitura, cujos quartos serviam de abrigo aos meliantes. Era um garoto o tal do ladrão, quase da minha idade, que fora flagrado roubando umas miudezas na feira. O delegado, um cidadão comum da cidade investido do cargo, convocou a população para dar testemunho do seu método científico em fazer o ladrão de galinhas cantar. Como havia muita gente e não cabia na casa, ele colocou o malfeitor na calçada, pegou a palmatória e deu tantos bolos no ladrão que, se vivo ainda for, deve chorar toda vez que se lembra desse episódio. No dia seguinte o agente da Lei abriu a porta da cadeia e o soltou, com a recomendação expressa de nunca mais aparecer por lá.

O meu avô materno também foi um homem da Lei, nomeado por um político de alta patente. Não exibia uma estrela de xerife à moda do Velho Oeste, mas sentia orgulho como tal. Como os fora-da-lei passavam ao largo da cidade e ele ia torrar seu mandato sem nenhuma ocorrência policial de relevância reconhecida, resolveu então prender um petroleiro que passava no carro da Petrobrás e, ao avistá-lo montado em seu alazão, buzinou em saudação. O cavalo se assustou, empinou e jogou o cavaleiro ao chão. Ato contínuo, levantou-se, sacudiu a poeira, montou no cavalo e se dirigiu ao acampamento da Petrobrás, onde deu voz de prisão ao infeliz. O motorista delinquente passou três dias na cadeia e só foi solto depois que o cabo de turma garantiu que ele seria transferido.

Nos anos oitenta havia um delegado e um destacamento da Polícia Militar na cidade. Dava para o gasto se o Banco do Brasil não tivesse inaugurado a sucursal do Inferno em pleno sertão: hora e outra era assaltado sem a menor desfaçatez dos assaltantes, pois coincidia da polícia e do delegado estarem em diligência noutras paragens. Mas um aprendiz de ladrão de cavalos não teve a mesma sorte. Roubou um cavalo no pasto e foi para a cidade fazer negócio, se imaginando o rei do crime insolúvel. Era dia de feira e não seria difícil passar o animal adiante. Ao primeiro que ofereceu, recebeu voz de prisão: era o delegado e, por azar, o dono do cavalo.

Por exigência constitucional, delegados, agora, só de carreira. E nomeados por concurso. É que muitos xerifes, à moda do Oeste americano, se rendiam facilmente ao poder local, normalmente se agregando ao prefeito que era, na verdade, o responsável por sua nomeação. Como o acontecido no arraial do Junco. A cidade festejava mais um ano de emancipação política quando um arruaceiro foi preso. Correram ao prefeito pedindo soltura, pois era filho de um cabo eleitoral importante. O prefeito, de cima do trio elétrico onde vendia simpatia, tomou o microfone do cantor e mandou a polícia soltar o rapaz. Os agredidos se sentiram mais agredidos ainda e subiram no trio. Eram muitos. O prefeito voltou atrás e mandou a polícia levar o desordeiro pro xilindró. Outros amigos do preso intercederam. Era só um mal entendido. O prefeito mandou soltar. E nesse vai e vem, um soldado subiu no trio, pegou o microfone, e implorou:

– Seu prefeito, resolva logo: é pra prender ou pra soltar?

Hoje, infelizmente, é para se prender os autores de outros tipos de delitos, mais perniciosos e até crimes de morte. Mas... cadê a Polícia?

Ah! O prefeito?! Vai bem, obrigado.